No álbum de família de Walter Areia, cada fotografia é revelada em melodias, acordes, lembranças e amores. O músico luso-brasileiro de 52 anos, nascido no Recife e radicado em Lisboa, tem construído no último ano, com paciência, carinho e talento, as memórias afetivas e auditivas das relações familiares dele e também da relação que une o Brasil a Portugal.

O projeto intitulado “Reabraço” foi a maneira que Walter Areia escolheu para homenagear os pais, filhos, a irmã e a companheira que o acompanharam nesta estrada. Cada composição tem sido gravada “no seu tempo e com o carinho que merece” e publicada nas plataformas digitais, com a intenção de que no fim ganhe uma versão analógica, prensada em vinil.

Walter Areia, Rui Poço na guitarra portuguesa e o pianista Giordanno Barbieiri, no estúdio para gravar mais uma fotografia para o álbum de família Foto: Carlos Menezes.

Até então, o álbum de família in progress conta com duas fotografias, “Sol e o Girassol“, dedicada à irmã Solange, ou “Sol“, e também “Bibi na Fontainha“, composta para a mãe do músico, poucos dias antes da morte dela, em março. A terceira, “Som do Seu Sorriso“, tem lançamento previsto para 23 de maio e vai “retratar” a relação de Walter com a esposa, Raquel Areia.

Reabraço é o quarto disco do músico, mais um passo na longa carreira que começou aos 15 anos de idade, quando o ainda adolescente Walter decidiu viver da música. “Desde então, nunca mais fiz nada na vida”, diz.

Um profissional considerado entre os pares um virtuoso no contrabaixo, um dos poucos, senão o único contrabaixista em Portugal a manter-se fiel à conceção original do instrumento, tocado com três cordas – e não quatro.

O contrabaixo com três cordas honra a versão original do instrumento. Foto: Carlos Menezes.

Cordas que, também como na versão original do contrabaixo, são confecionadas a partir de “tripa animal”, e não de metal, o que confere ao instrumento uma fidelidade semelhante aos primeiros contrabaixos construídos pelo luthier italiano Gasparo da Salò, no século 15. 

Um instrumento que pode chegar aos 1.80 metros de altura e pesar cerca de 15 quilos. E que exige de quem o toca não só a destreza com acordes, notas e timbres, mas também determinação e força à altura – e peso – do desafio que é manuseá-lo.

Uma homenagem à mãe e a Portugal

A mais recente fotografia musical deste álbum foi dedicada à mãe, a portuguesa Maria Brígida Machado, a Bibi, uma imigrante que na segunda metade do século passado deixou a pequena vila de Argozelo, no município de Vimioso, fronteira com Espanha, para viver no Recife, onde acabou por conhecer o pai de Walter Areia, também ele Walter – o “Seu Vavá“.

Uma canção batizada de “Bibi na Fontainha“, o registo da memória materna numa vila como Argozelo, suspensa no tempo e de convenções sociais bem peculiares, quando o namorico entre raparigas e rapazes, sem o recurso de cinemas, snack bars e redes sociais, girava na órbita de uma fontainha da vila e de uma maneira nada ortodoxa.

“A minha mãe contava que, na adolescência, as meninas em Argozelo iam à fontainha pegar água e os meninos escondiam-se para atirar pedras e partir as ânforas que levavam à cabeça. Então, elas tinham que voltar para casa e regressar de seguida à fontainha. Era nesse vem e vai que a paquera acontecia”, explica Areia.

A fotografia musical foi revelada em fins de fevereiro, poucos dias antes da Bibi morrer, aos 87 anos, em Atlanta, nos EUA, onde vivia na companhia da irmã do músico. “Ainda deu tempo de tocar para ela, que gostou da música”, conta Walter, que em meados de março voltou a Argozelo para depositar as cinzas maternas no cemitério da vila.

A viagem até a cidade natal materna foi também para o músico um reencontro com o passado português e parentes distantes emigrados para a França, após um acidente selar o futuro da família. “Meu avô Armando trabalhava na extração de volfrâmio em Argozelo quando uma derrocada na mina partiu–lhe a coluna e o deixou paralisado”, lembra. 

O acidente na mina que partiu a coluna do patriarca dividiu também os cinco irmãos, três deles com destino a França e Bibi, então com 17 anos, e uma irmã, para o Brasil. Um reencontro que tem acontecido de forma póstuma, no cemitério de Argozelo, situado justamente em frente à mina onde o patriarca trabalhava, hoje desativada e transformada num centro de memória.

Uma família nova, inspirada no Seu Areia

A próxima fotografia de Reabraço, a quarta das seis previstas para o álbum de família musical, será o Som do Seu Sorriso, dedicada à mulher do músico, a jornalista Raquel Areia, cuja gravação foi acompanhada pela reportagem da Mensagem, num estúdio caseiro no Campo de Mártires da Pátria, em Lisboa. 

Gravação da música Som do Seu Sorriso, do disco Reabraço, do brasileiro Walter Areia. Imagem: Carlos Menezes / Edição: Álvaro Filho.

A sessão contou com músicos convidados, como o pianista brasileiro Giordanno Barbieri – presente nas gravações anteriores – e o português Rui Poço na guitarra portuguesa, com produção do francês Gilles Cardoni – cuja trajetória igualmente peculiar como o “autor de mais de mil músicas” já foi contada na Mensagem.

Um toque curioso é que a família Areia “não existia” até há pouco tempo: o sobrenome surge de uma decisão do casal Walter e Raquel em começar uma “nova linhagem”. Assim, o primogénito Nuno é o primeiro Areia registado em documento, seguido pela irmã, Lis. O nome de família, uma homenagem ao pai do contrabaixista, o Seu Vavá, o próximo a ser “fotografado”.

“O meu pai sempre foi muito de dar opinião sobre tudo e quando os amigos da minha irmã, que eram jornalistas, reuniam-se lá em casa, gostavam de ouvir o que ele pensava das coisas. Mas o meu pai sempre foi meio pessimista e achava que tudo ia terminar mal. E os amigos da minha irmã diziam: ih, lá vem Seu Vavá botar areia na história”, conta.

Como no Brasil, “botar areia” é uma expressão que designa uma personalidade muito crítica. Seu Vavá acabou virando Seu Areia e o filho, a partir daí, o Walter Areia.

Na música, porém, Seu Areia voltará a ser o Seu Vavá. “Ainda está a ser construída, no tempo dela, com o carinho que merece, mas vai chamar-se A Zündapp de Vavá”, conta Walter, a memória dos tempos em que o pai do músico desfilava aos domingos todo faceiro pelas ruas do bairro de Campo Grande, no Recife, montado na icónica mota alemã Zündapp.

O velho companheiro na nova vida em Lisboa

Ao contrário de Seu Vavá e de sua mota alemã, Walter Areia tem circulado por Lisboa a carregar o seu contrabaixo em transporte público. O músico garante que, na maioria das vezes, não tem tido problemas para se locomover, embora já tenha sido proibido de entrar com o instrumento em elétricos e autocarros. “Alguns motoristas de aplicativo também se recusam”, conta.

Walter Areia migrou definitivamente para a versão acústica do baixo quando migrou para Lisboa. Foto: Carlos Menezes.

Embora hoje empunhe o contrabaixo acústico, foi com a versão elétrica do instrumento que Areia pagou as contas por mais de duas décadas e deu a volta ao mundo, a maioria das vezes na companhia dos Mundo Livre S.A., uma das bandas que formaram o mítico movimento musical brasileiro Manguebeat.

Foi com o Mundo Livre S.A. que Walter Areia acabou condecorado com a Ordem do Mérito Cultural pelo então ministro da cultura Gilberto Gil, ainda no primeiro governo do presidente Lula, e tocou num dos palcos mais icónicos do mundo, o Lincoln Center, em Nova Iorque. 

A migração definitiva da versão elétrica para a acústica deu-se nos últimos sete anos, acompanhando a migração física do músico e da família do Recife para Lisboa. “De alguma forma, pensei que o mercado de música português e europeu comportava o contrabaixo, ao contrário do Brasil, onde é um instrumento basicamente de orquestra”, conta.

A diferença do contrabaixo empunhado por Walter Areia está no número de cordas, três, um a menos do que a maioria dos instrumentos tocados pelos demais contrabaixistas. “Talvez, só os músicos das orquestras de câmara ainda mantenham um contrabaixo com três cordas da versão original”, arrisca Areia.

No vídeo, o próprio músico explica o porquê da escolha pelo baixo com três cordas.

O músico Walter Areia explica a escolha pelas três cordas no contra-baixo acústico. Imagem: Carlos Menezes / Edição: Álvaro Filho.

Após cumprir o percurso básico de um músico imigrante em Portugal e tocar na rua, Walter Areia aos poucos conseguiu impor o seu trabalho e hoje é convidado e também convida outros músicos para projetos em duetos, como o que mantém como pianista da Martinica, Karlos Rotsen, entre outros.

Além dos projetos a solo, Walter Areia é o contrabaixista do projeto Rua das Pretas, uma experiência comandada com êxito pelo músico franco-brasileiro Pierre Aderne, que além das apresentações regulares em Lisboa, teve até agora duas temporadas produzidas pela RTP.

Uma agenda apertada como a de qualquer imigrante disposto a vencer no país que escolheu viver, mas que não tem impedido Walter Areia de retribuir o apoio de quem esteve sempre do lado dele nesta caminhada, compondo música a música, retrato a retrato, um álbum que é ao mesmo tempo musical e de família.

Feito com o amor pelo músico, dono de um coração do tamanho do instrumento que toca.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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2 Comentários

  1. Toda minha admiração a esse ser iluminado, bela e merecida matéria.

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