Vídeo: Carlos Menezes

Paulo Ramos palmilha as ruas da freguesia da Ajuda e aponta para o chão. Estas são as ruas que o viram crescer e que ele sempre soube esconderem túneis – são minas de água, debaixo da terra.

“Há aqui um túnel onde eu estive e que vem desembocar neste bairro”, diz ele, à medida que percorre a rua Guarda Nacional Republicana. “Era pelas minas que brincávamos!”, confirma o seu amigo Álvaro Madeira.

Há até histórias de crianças que ali se perderam.

Paulo Ramos e Álvaro Madeira cresceram a brincar nos túneis da Ajuda. Foto: Carlos Menezes

Para quem sempre viveu na Ajuda, a existência destes túneis nunca foi segredo. Mas aquilo que todos sabiam não estava protegido. Nem sequer estudado. E, com os anos, chegou mesmo a ser destruído. Talvez por isso, por serem património esquecido, ligado às memórias das gentes desta freguesia, é que o historiador Nuno Ludovice decidiu debruçar-se sobre estes tesouros. E dar-lhes o registo que há muito pediam.

Aquilo que começou por ser uma “carolice” sua, acabou por se tornar num projeto de investigação promovido pela Junta de Freguesia, em parceria com a Universidade Lusíada. Um projeto que uniu o historiador à arqueóloga Elisabete Barradas, à arquiteta Fátima Silva e a mais duas alunas de arquitetura numa verdadeira viagem à Júlio Verne – por baixo da terra.

Por dentro dos túneis da Ajuda. Foto: Carlos Menezes

A arca que marcou o início da aventura

Juntos, viajaram por túneis, foram batizados pelas águas do Jardim Botânico e, finalmente, encontraram um bem precioso: uma arca de água na famosa mina do Palácio da Ajuda.

arca d'água mina do palácio Ajuda
A arca de água no Palácio da Ajuda. Foto: Nuno Ludovice

“A mina do Palácio da Ajuda vai dar a uma arca de água lindíssima, que parece o interior de uma Igreja, com arcadas”, conta Nuno Ludovice.

Sobre ela, havia sido construído um barracão em alvenaria e cimento. Aquela arca secreta estava, pois, em risco. E a equipa decidiu, então, submeter um pedido junto da Direção-Geral do Património Cultural para a classificar.

Foi o primeiro passo para se reconhecer o valor destas minas de água votadas ao esquecimento.


A história por detrás do mito

São muitas as histórias que correm a Ajuda sobre estas minas, que terão sido construídas antes do século XVIII e que seguramente serão pelos menos sete, diz Nuno Ludovice. Histórias como aquelas que ligam a existência dos túneis a um ataque perpetrado ao rei D. José I, e a uma amante que fugia pelas galerias. “Era o que me contavam os meus avós!”, diz Paulo.

minas de água Ajuda
Plantas das minas de encanamento de águas do Almoxarifado da Ajuda do século XX. Fonte: Actas Colóquio/Ajuda: O espaço, o tempo, a sociedade

Se a amante do rei fugia pelas minas, nunca saberemos. Mas a verdadeira história não será bem assim: para a percebermos, é preciso recuar no tempo, até esses dias longínquos em que se vê nascer a freguesia da Ajuda, na transição do século XV para o século XVI.

A Ajuda, um território vasto, que ia desde a ribeira de Alcântara até à ribeira de Algés, limitado a norte pela serra de Monsanto. Um território onde surgem conventos, igrejas e casas senhoriais com as suas quintas.

E o que é absolutamente imprescindível nestas construções?

A resposta é simples: água.

“Tudo aquilo que se construía, construía-se a pensar na água”, diz Nuno Ludovice. “A água é o princípio da civilização”.

Os proprietários destas quintas construíram minas que faziam as águas subterrâneas viajar para abastecer as quintas e o Paço Velho, hoje o posto da GNR.

O historiador Nuno Ludovice está a desvendar a história dos túneis da Ajuda. Foto: Carlos Menezes

O terramoto que traz a corte (e a água) para a Ajuda

O mítico terramoto de 1755 abala Lisboa por completo. Lisboa, com exceção de uma zona: a Ajuda. Não terá sofrido “grandes danos devido às suas características geológicas, calcárias e basálticas”. “É uma estrutura mais rígida”, explica o historiador.

E era precisamente no Palácio de Belém que se encontrava o rei D. José I quando Lisboa tremeu. Perante a calamidade, tomou então uma decisão: mudar-se para o Alto da Ajuda.

É lá que, com medo de uma réplica, manda construir um complexo luxuoso de tendas, a Real Barraca da Ajuda. “Esse primeiro Paço Real trouxe um desenvolvimento enorme para a Ajuda: vem a corte, vêm as secretarias, vêm os aquartelamentos…”. 

Esse Paço Real ergue-se ali também por um outro motivo: o rei sabia das minas urbanas que serviam o Paço Velho, e que passam a abastecer a Real Barraca. A Ajuda transforma-se, com uma ópera, um picadeiro, cavalariças…

A Real Barraca. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Mas tanta movimentação traz, mais uma vez, uma necessidade maior: água.

A pergunta era: onde a ir buscar? E a resposta estava, afinal, num outro lugar: em Monsanto, lugar de minas periurbanas que serviam as suas quintas.

Na época, que ficou também marcada pela construção do Aqueduto das Águas Livres, percebeu-se que seria possível encaminhar as águas dessas minas para a Ajuda e para o Paço Real. Criava-se assim todo um sistema de abastecimento na Ajuda que seria mais tarde incorporado na construção do Palácio Nacional da Ajuda.

“Belém, Ajuda e Alcântara são zonas que têm um abastecimento subsidiário, diferente, e que não é do Aqueduto das Águas Livres, mas sim das minas de Monsanto que forneciam essas águas”, explica o historiador.

Algumas das minas mais conhecidas:

Mina do Palácio

Com a sua nascente situada para lá da Estrada de Monsanto. Esta mina chega ao Palácio da Ajuda, ligando-se à arca, de onde saem dois encanamentos de ferro: um primeiro que alimentava o jardim do pátio das Damas, as cozinhas da real Barraca e, mais tarde, a cozinha do Palácio da Ajuda; um segundo que segue paralelo a montante da rua do Mirante, atravessando a Calçada da Ajuda, e que se destinava a abastecer as cavalariças reais.

minas de água Ajuda
Minas a sul do Palácio. Fonte: Actas Colóquio/Ajuda: O espaço, o tempo, a sociedade

Mina das Sardinheiras 

Nas proximidades do cemitério da Ajuda, integra a captação e adução de várias nascentes, dividindo-se em vários ramais, um deles que abastecia o cemitério. Tem uma derivação num ramal que abastece o lago no extremo poente do Jardim Botânico, descendo ainda pela ilharga poente do jardim, fazendo o reforço do abastecimento do bairro da Memória, ligando-se a um fontanário entre a Calçada da Memória e a rua do Jardim Botânico.

minas de água Ajuda
Minas de água a norte do Palácio. Fonte: Actas Colóquio/Ajuda: O espaço o tempo a sociedade

Mina do Páteo das Cozinhas

Em frente à fachada poente do Palácio da Ajuda, alimentava o “Pátio das Senhoras” da antiga Real Barraca, seguindo numa canalização de ferro para alimentar os lagos central e nascente do Jardim Botânico. Apresenta uma derivação da qual sai uma canalização com ponto terminal em bica, no cimo da Calçada da Ajuda.


Uma mina descoberta num café

Estas minas foram sendo esquecidas pelo tempo.

De tal forma que se construiu sobre elas, sem qualquer cuidado – como aconteceu com a arca de água no Palácio da Ajuda.

Elsa Bastos, que gere a página de Facebook Imóveis Abandonados de Lisboa, teme aliás que estes túneis sejam destruídos com a construção de um condomínio privado naqueles que eram terrenos públicos na zona de proteção do Palácio da Ajuda.

É que há exemplos dessa destruição pela Ajuda, até mesmo em lugares insólitos, como no café “Coisas Caseiras”, na Calçada do Mirante à Ajuda. Lá dentro, há um segredo bem guardado. Mas é preciso ir além do balcão e entrar na cozinha para o descobrir.

Para lá da banca, do lava-loiça e dos fogões, há um pequeno esconderijo onde um pequeno armário e utensílios tapam aquela que é a entrada de uma mina de água – um troço da mina do Palácio da Ajuda. Mas um troço que está obstruído.

O troço da mina no café “Coisas Caseiras”. Foto: Carlos Menezes

“Há cerca de três anos, a mina ficou entupida e a água vem cá para dentro”, explica o responsável pelo café, Henrique Monteiro. “As águas corriam normalmente, mas entretanto já se criaram muitos obstáculos, fizeram-se obras. Criou-se uma barreira ao curso de água, e as águas deixaram de se movimentar.”

João Gonçalo, da Junta de Freguesia da Ajuda, diz que a situação já está sinalizada na Câmara Municipal de Lisboa para ser resolvida. “Não há de ser uma solução fácil, interrompeu-se uma mina de água e a água tem de escoar”. Neste momento, Henrique Monteiro aguarda um relatório técnico. À Mensagem, a Câmara Municipal não respondeu aos pedidos de esclarecimento quanto aos procedimentos seguintes.


Que papel podem estas minas ter na gestão da seca no país?

Entretanto, enquanto a equipa de investigação aguarda o parecer da DGPC para a classificação da arca de água, já se perspetiva a adaptação do trabalho técnico para um livro, com ilustrações, recolhendo ainda as memórias daqueles cujas vivências se cruzam com as minas de água.

Com a classificação, espera-se não só a defesa do património, mas também a defesa de um bem raro e escasso: a água.

“A prioridade é a mina do Palácio”, explica Nuno Ludovice. “Mas a ideia é torná-la um testemunho da importância da água e retirar ilações do ponto de vista ambiental para a urgência do aproveitamento destas águas, que tem de ser pensado e estudado.”

Ou seja, para além da preservação destas minas de água, esta equipa de investigação propõe o aproveitamento das águas para a lavagem de ruas, para a rega de jardins:

Há esta preocupação com a proteção e preservação do património, mas também com o aproveitamento das águas. Não podemos ter água a passar por debaixo de nós em períodos de seca e de crise energética“, diz João Gonçalo, da Junta de Freguesia da Ajuda

Para já, estes túneis ainda são apenas a memória de vários moradores, dos mais ancestrais aos mais contemporâneos. Como Paulo e como Álvaro, que há anos esperam ver levadas a património as minas de água onde brincaram, onde se perderam e tomaram banho. “Essa é uma componente fundamental: a das memórias que as pessoas têm”, resume Nuno Ludovice.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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12 Comentários

  1. Olá, bem eu começo pôr dizer que nasci na Rua do Cruzeiro junto ao cruzamento com rua do Casalinho .Nesse local passava um ribeiro, que desaguava no Rio Seco, junto a esse ribeiro, existia um terreno que tinha uma entrada para as minas, existia um caminho que dava para ir até ao Monsanto, que tinha um desvio no qual passava muita água. Água essa que servia muitas vezes para a malta ir ao banho. Dizia-se que havia ligação ao palácio mas também se poderia chegar até Benfica, corríamos todos os túneis a luz das velas. Sei que apanhamos alguns sustos, porque os mais velhos muitas vezes iam para dentro dos túneis para nós assustar . Um grande abraço e bom trabalho.

  2. Percuri essas grutas com 8 anos mais ou menos até deixar de ser miúdo, andava ás escuras e ninguém me encontrava já fui á junta a uma sessão sobre a mina do Cruzeiro e o que dizem agora a maior parte das coisas é treta A mina só tem uma entrada..na altura deixei o meu contacto e fiquei á espera de toda a maneira, isto é só um comentário de quem conhece a mina melhor que ninguém, Boa Noite

  3. No Cruzeiro também há uma mina. E no Rio Seco. Na zona do Casalinho penso que também, se a minha memória não falha. E naTapada.

  4. Cara Ana, adorei a matéria que trata de dois assuntos muito importantes: preservação da história é da água.
    Obrigado por trazer à luz o estudo realizado por esses profissionais pesquisadores.

  5. É natural que a Serra do Monsanto seja a origem de algum depósito e respectivo caudal descendente de agua, que com os anos, tenha. diminuido, alterado o percurso.
    Ao lado da rua do cruzeiro, haviam umas grutas, que chegaram a estar “habitadas”, por onde havia uma certa passagem de água, até ao Casalinho da Ajuda. No descendo a rua Aliança Operária (havia o Rio Seco), e na Junqueira, uma densa quantidade de juncos.
    Tudo isto sugere que da serra do monsanto houve uma toalha de água
    que sofreu “acontecimentos”.
    As “cavernas do cruzeiro estarão secas”, “o rio seco à muito que secou” e os “juncos da junqueira” deixaram o nome.
    Isto é o que me sobra do tempo em que vivi na Ajuda, no alto da ajuda.
    Bom trabalho
    manuel lourenço

  6. Vivi dos 2 aos 19 anos na rua do Cruzeiro junto à desembocadora do Casalinho da Ajuda. Anos depois morei nesse sitio do Casalinho. Mas quando era criança ouvia muias vezes os rapazes estarem a combinar ir explorar a mina ou as minas. Quase segredo, pois sabiam que as mães se oporiam Mas diziam que tinha andado nos túneis. Eu como menina pouco podia saber. Toda a encosta entre o Casalinho e o Monsanto segundo eles estava cheia de túneis. À volta disto contavam muitas histórias de bruxas e almas doutro mundo… As bocas das minas testemunhava que havia pelo menos água que corria para o Rio Seco que passava num pequeno vale que já está tapado segundo vi à poucos anos quando por esse lugar passei. Junto à Igreja da Memória também havia sinais de minas (?). E mais para o lado de Belém/Algés onde havia uma pedreira . Hoje Urbanizações!

  7. Vivi muitos anos no alto da Ajuda perto dos chamados torreões de Pedro Teixeira à Estrada Pedro Teixeira, sempre ouvi dos mais velhos que existiria um túnel que ligava aquele local à Igreja da Memória

  8. Ando há anos a falar para os próximos que com a escassez de água estamos “no tempo das catedrais”…agora para baixo, como reservatórios de água. Durante séculos fizemos igrejas e catedrais visíveis. De futuro para baixo…além das cisternas individuais, agora todas terras deviam ter “catedrais”… difícil passar mensagem e mais difícil fazer…conversas.

  9. Obrigado pelo Vosso estudo.
    Cresci na Rua Tristão Vaz, no bairro anteriormente conhecido como Encosta do Restelo.
    Brinquei muitas vezes com os meus amigos vizinhos num desses tuneis que estava num caminho que usavamos para ir à Avenida Ilha da Madeira. Por onde entravamos era por um respirador, um paralelipipedo de pedra com uma janela com grades em cada uma das quatro paredes. Sempre pensamos tratar-se do aqueduto das Águas Livres.
    Bem haja pelo Vosso estudo.
    Cumprimentos
    José Montes Palma

  10. Muito intetessante e importante. Todos estes sistemas hidraulicos deviam ser preservados. Aqui, em Oeiras . Tem sido uma calamidade. Tenho me interessado por este asunto, em particular a rede de aquedutos e minas desta regiao. E

  11. E mais há a explorar sobre a importância destas infraestruturas nas cidades.
    Fique atento, Fernando: brevemente, teremos uma história que explora mais este tema.
    Obrigada por nos ler!

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