Quando era mais nova, Sandra Baldé conta que não se sentia bem consigo própria. “Era super insegura e não gostava do meu tom de pele, do meu cabelo ou da minha cultura africana.”
Filha de pais guineenses, Sandra Baldé nasceu no Hospital Amadora-Sintra, tendo passado pelo Monte Abraão antes de a família se fixar na Idanha, em Belas, também na Linha de Sintra. O pai é ferreiro na construção civil, a mãe trabalha na área das limpezas. E embora existissem vários outros jovens negros à sua volta, ela recorda que não se sentia bem na sua própria pele.
Estranho para quem, hoje, apenas aos 25 anos, assina como Umafricana. Assim mesmo, tudo junto.
Diz ela que foram muitas leituras, a escrita e a música que lhe reforçaram a autoestima, e que mudaram a perspetiva que tinha.
Hoje Sandra é escritora, DJ, criadora de conteúdos digitais e empreendedora. E ainda que não goste de se considerar ativista, todo o trabalho que assina tem uma posição feminista e antirracista. É essa a mensagem que leva com ela para todo o lado. E, este ano, para o evento Jardim de Verão da Fundação Calouste Gulbenkian, mais uma vez com a curadoria de Dino d’Santiago e do projeto Lisboa Criola.
Foi ele que a convidou para ficar responsável por oito DJ sets, num evento que serve precisamente para aproximar as periferias do centro — conceitos muito mais profundos do que mera geografia.
Recorde aqui esta crónica:
Negar a cultura como defesa
Sandra conta como era, dantes.
“Eu renegava tudo. A música, a comida que comia em casa… A minha mãe sempre teve esse cuidado, de fazer comidas típicas da Guiné-Bissau que eu amo e sempre amei, mas se calhar na escola quando os meus colegas me perguntavam o que foi o jantar ontem, eu nunca ia dizer que era um caldo de mancarra. Se calhar dizia que tinha sido bacalhau com natas ou uma pizza, o que era totalmente mentira, mas só para me sentir incluída. Claro que aos 15 ou 16 anos já não omitia isso, mas se calhar fazia-o com outras coisas: não ligava tanto a música africana, ouvia mais música anglo-saxónica”.
No fundo havia um objetivo: “Tentava parecer-me o mais possível com uma pessoa branca.”
E se os pais cultivavam essa cultura guineense em casa, fosse na culinária ou na música que se ouvia (Tabanka Djaz ou Justino Delgado são dois dos principais exemplos), por outro, alinhavam com a filha na ânsia de que ela se integrasse.
“E sinto que alguns desses mecanismos acabam por também ser fruto do racismo. Por exemplo, eles nunca falaram crioulo comigo, em casa. Falavam entre eles, então aprendi à mesma [risos]. Mas a minha mãe dizia-me que nunca me iria ensinar, porque não queria que eu ganhasse sotaque. Ela sabia que as pessoas com sotaque eram mais discriminadas. Tanto que até sentimos isso quando estávamos à procura de casa… Às vezes era o meu pai a ligar e eles diziam que a casa já estava arrendada, e depois ligava eu com outro número e eles já tinham interesse em marcar visita. Então os meus pais sempre tiveram esse cuidado.“
Ensinaram-lhe que a discriminação pode estar na pele ou na geografia. Por isso, para onde quer que fosse, teria que estar “bem vestida, arranjada, para não passar a impressão de que ‘ah, aquela é do bairro’ ou ‘são pretos, vestem-se mal'”.
“Sei porque o faziam, mas é problemático porque era como se estivéssemos de estar sempre a provar algo. Torna-se cansativo”, confessa.
Do blog para as pistas de dança
Sandra acabou crescer, por fazer as pazes com aquilo de que tanto fugia e passou a levar a cultura africana no nome e para as pistas de dança.
“Umafricana” nasceu em 2013, depois de Sandra ter aproveitado a paixão pela escrita para criar um blog – “Diário de Umafricana” – e canalizar para ali todo este processo de construção e desconstrução que ia fazendo ao longo dos anos.
“A descoberta do movimento negro lá fora, dos movimentos feministas, eram coisas que eu queria muito partilhar com as pessoas. Sentia que já vivia aquelas coisas na pele, só que não tinha nome para dar àquilo por que estava a passar e não sabia se era só eu que estava a passar por aquilo ou não. Quando me apercebi de que não, senti a necessidade de trazer isso para o contexto português, porque naquela altura não se falava muito sobre essas coisas no digital. À medida que ia escrevendo e publicando todos esses textos, também me ia curando um pouco nesse processo. Não vou dizer que cheguei ao fim, porque de certa forma não tem fim, mas sinto que evoluí imenso. A escrita e a leitura ajudaram-me e foi terapêutico documentar e partilhar essas coisas com outras pessoas.”

O blog prolongou-se até 2019, numa altura em que Umafricana também já tinha um canal no YouTube. E a relação com a escrita culminou num livro, primeiro digital e depois físico, já na quarta edição: Para Que Fique Bem Escurecido relata a história de Kadijatou, uma jovem mulher guineense, nascida e criada em Portugal, que enfrenta diversos problemas de autoestima, muito relacionados com o racismo, a hipersexualização, a dismorfia corporal ou a dessexualização.
Os pais queriam que a filha se tornasse médica ou advogada, mas Sandra sempre sentira uma predisposição pelas áreas criativas – em pequena, desejava ser cantora, bailarina ou estilista.
E embora os amigos sempre tenham elogiado a sua seleção musical, a sua aventura enquanto DJ só começou mais tarde, no final de 2021, quando recebeu um convite para se estrear a passar música no Beyoncé Fest.
Desde então, tem vindo a atuar em vários clubes e festas, sobretudo em Lisboa, construindo também um percurso como DJ.
Dedica-se por completo à música africana, ainda que se foque particularmente em géneros como o afrobeat (da Nigéria), o amapiano (da África do Sul) ou o coupé decalé (da Costa do Marfim), e não tanto a música dos PALOP, naturalmente mais frequente em Portugal.
Na Gulbenkian, junta-se a oito DJ sets que acontecem entre sexta-feira, 23 de junho, e 9 de julho.
“É um marco importante para a minha carreira ter uma oportunidade destas, de ser uma das DJ residentes de um evento tão importante e significativo como o Jardim de Verão. É muito importante valorizar os artistas emergentes. Sobretudo porque as pessoas que estão neste cartaz são pessoas que, se calhar, de outra forma, não teriam tanta oportunidade e espaço para mostrar a sua arte a tanta gente.”
Sublinha ainda a importância de “puxar as pessoas que normalmente são empurradas para as periferias”. “Porque isto deveria ser um espaço para toda a gente. Acho que o facto de tornarem isto acessível a toda a gente também permite que pessoas que se calhar não teriam meios económicos para adquirir bilhetes… É uma oportunidade para essas pessoas se deslocarem e terem acesso a espetáculos e arte de qualidade.”
Um fosso entre a periferia e o centro
Hoje Sandra vive no centro. Deixou a periferia.
“Naquela altura, olhava muito para a cidade de Lisboa, aqui a zona central, quase como um mundo à parte. Quando vinha para cá era sempre tudo muito deslumbrante, porque, querendo ou não, as dinâmicas que acontecem no centro de Lisboa são um pouco diferentes das que acontecem nessas zonas mais periféricas. Agora moro aqui, é diferente, tenho mais acesso. É mais fácil deslocar-me quando já moro na zona central. Mas quando morava a não sei quantos comboios e autocarros de distância, era totalmente diferente. Encarava a cidade de Lisboa, pelo menos a zona central, de forma inacessível. E acredito que ainda seja assim para muita gente. Às vezes, estou no comboio e sinto mesmo a diferença. Quando estás a sair de Lisboa e a entrar na Linha de Sintra, vês as pessoas que entram e quem lá está, sentes logo essa diferença, não há como ignorar isso. Ainda é uma situação que mexe comigo.”
E embora reconheça como fundamental “trazer as pessoas para o centro” — “para não ficar a coisa do ‘em Lisboa só entra quem tem a pele clara, ou quem está super bem vestido ou fala muito bem português de Portugal, sem sotaque’” — diz que o movimento também se devia fazer no sentido inverso.

“Em vez de acontecer tudo aqui no centro, porque não irmos até às periferias? Fazer-se um evento na Amadora ou em Queluz ou no Cacém, onde esse tipo de eventos poderiam acontecer perfeitamente. E as pessoas que estão aqui no centro poderiam deslocar-se até lá, perceberem que aquilo não é um bicho de sete cabeças, não é nenhuma amostra do inferno. São espaços onde se está bem, onde as pessoas são incríveis. Acho que seria uma forma de promover essa movimentação e de mudar um bocadinho essa narrativa.”
A presença africana em Lisboa — que tem séculos de história — “está super mal representada”, diz Sandra. “Ainda estamos na fase do ‘Portugal é racista ou não é racista?’. Enquanto estivermos neste impasse a decidir se Portugal é racista ou não, vamos continuar a negar várias questões que já poderiam ter sido resolvidas. Nomeadamente, a forma como se trata a herança e a cultura africana.”
A missão de educar para o futuro
Com três irmãos mais novos, Sandra tenta passar-lhes as mensagens certas para que não se debatam com as mesmas dificuldades enquanto crescem. “Eu não tive essa pessoa, um irmão mais velho que me desse essas direções. Então, sinto que preciso de fazer um pouco esse trabalho, para o processo não ser tão doloroso para eles como foi para mim”, conta.
“Os meus pais sempre foram mais do género: ‘é assim que as coisas são, ignora, esquece’, porque cresceram com essa ideia. E eu não me conformo, então sempre fui muito mais de falar, e eles agora entendem melhor isso e acho que com o meu livro ainda entenderam melhor. E também não os posso julgar. Agora que sou adulta, percebo todo o esforço e o desafio que eles tiveram à frente, vindo de outro continente, para um país que eles não conheciam e do qual não sabiam nada… Tiveram os filhos aqui, jovens, a trabalhar, numa sociedade ainda mais conservadora na altura. Eles fizeram o melhor que podiam com aquilo que tinham, sou muito grata por isso.”
Empreendedora, Sandra Baldé também já teve uma loja de roupa digital e pretende lançar, eventualmente, uma coleção de moda em nome próprio. Na escrita, gostava de dar seguimento a um “projeto relacionado com o primeiro livro”, antes de avançar para o segundo. Na pista de dança, seja no chão de um clube ou na relva da Gulbenkian, a ideia passa por agitar e abrir mentes enquanto se balançam os corpos.
Umafricana continua a concretizar-se em diversas frentes, todos os dias.
Mais sobre o livro de Sandra Baldé – “Para Que Fique Bem Escurecido”
Uma das questões que são abordadas no livro tem a ver com a perceção em torno do cabelo das mulheres negras — algo com que Sandra lidou, com dificuldades, durante bastante tempo.
“Tive um episódio muito pesado há uns anos, no trabalho, por causa da questão do cabelo. Fui mesmo assediada pela pessoa que me contratou, por causa das minhas tranças. Sendo que essa pessoa me contratou sabendo que eu já tinha tranças. Chegou a um momento em que começou mesmo a rebaixar-me e a tratar-me mal por causa do meu cabelo, a dizer que eu passava uma má imagem para os clientes… E sei que várias outras pessoas passaram por isso. Se calhar, num processo seletivo, olham para uma mulher com um cabelo afro e mandam aquela dica ou não chamam aquela pessoa… Esse tipo de situações acaba por deixar as pessoas negras, no geral, na defensiva: o meu cabelo não é suficientemente bom ou profissional para este espaço, então se calhar vou cortar, alisar, vou usar peruca ou extensões, para esconder esta característica que é naturalmente minha. Isso é uma situação bastante agressiva para nós. Uma pessoa branca não passa por esse tipo de situações. E isso acontece constantemente com uma pessoa negra. É algo que nos afeta bastante e desde muito novos. Porque os nossos pais chegam aqui, com esse tipo de exigências por parte das entidades empregadoras, e internalizam isso e acabam por o passar para nós. Então já cresci a não gostar do meu cabelo. Acaba por ser mais um reflexo do país racista que temos.”
*Ricardo Farinha nasceu em Lisboa e sempre viveu nos arredores da capital, periferias que lhe interessam particularmente. Conta histórias em modo freelance, sobretudo ligadas à área da cultura.

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