Naquela tarde brumosa e quente de junho em Lisboa, o Brasil nunca foi tão Brasil. Qualquer doutor em Portugal com o carrancudo diploma numa moldura pendurada na parede em antropologia, sociologia e outras tantas ias mais, e que ansiasse conhecer a essência do brasileiro, teria por obrigação deontológica abdicar do conforto do gabinete e trocar o toque materno do cabedal da poltrona pela espartana dureza do assento de plástico em Alvalade.

Brasileiros vibram no Maracanã durante o Mundial de 1950. Foto: Arquivo Nacional do Brasil/Divulgação.

Mais do que um trivial jogo de futebol, o amigável do Brasil com o Senegal em Lisboa foi um aula de brasilidade, um pós-doutorado intensivo de noventa minutos, fora os acréscimos, da alma brasileira, um Macunaíma da bola, um Casa Grande & Senzala dos dribles, a pedagogia de Paulo Freire das bancadas, oprimidos e opressores lado a lado num estádio de futebol.

E de boleia o doutor do diploma na parede ainda veria o brasileiro reconciliar-se com os símbolos nacionais, a camisola amarelo-canário da Seleção, a bandeira verde-louro de lábaro azul estrelado, o nosso hino e o seu primor vernacular, tesouros de todos, e repito, de todos os brasileiros, sequestrados pelo buraco negro da extrema-direita, que a tudo quer e destrói.

O resultado do jogo?

Pouco importa se o Brasil ganhou ou perdeu, pois o brasileiro, mesmo que não saiba, mesmo que ignore solenemente a razão, não foi à bola ver o jogo. 

O brasileiro foi à bola para ver a si mesmo.

Era a oportunidade de levar o puto ao estádio para assistir ao primeiro jogo da Seleção. Por essas idiossincrasias do futebol pós-moderno e capitalista até o trinar do último apito, mesmo morando em Portugal, Mathias, no alto dos seus oito anos, conseguiria em Lisboa ver o Brasil em campo primeiro do que o pai, que esperou duas décadas pelo mesmo privilégio no Recife.

A primeira vez de um torcedor com a sua Seleção, e imagino que com os portugueses se dê da mesma forma, reveste-se da atmosfera de outras primeiras vezes inesquecíveis de nossas vidas, com iguais expectativas, desconfortos, surpresas, clímax e anticlímax, a montanha-russa de sentimentos justamente o que a faz especial, indelevelmente tatuada na memória.

Como um Dustin Hoffman na sua primeira noite como homem, rumei ao estádio naquele ano da graça de 1993, na eliminatória do Mundial dos Estados Unidos, na companhia de Romário, Bebeto, num impiedoso seis a zero na Bolívia. Pouco depois, voltei à mesma bancada para o bis, com a Seleção impingindo um dois a zero na Argentina de Maradona.

Então com vinte anos, já havia sido apresentado ao amor, sentido o seu cheiro selvagem e doce no abrigo da infinita escuridão de um quarto, o macio toque do lençol de seda no leito de casal dos pais da namoradinha, o crucifixo de madeira sobre o cabeceiro da cama e Jesus martirizado como testemunha, a aumentar o pecado e o prazer, amém.

Aos vinte anos, era homem feito e imperfeito, mas foi no estádio, naquele agora distante 1993, que amei no coletivo, em minha primeira orgia.

Torcedor ouve a narração do jogo de futebol através do rádio. Foto: Arquivo Nacional do Brasil/Divulgação.

O mergulho na psique brasileira começa pela arte de procrastinar. Diria Euclides da Cunha, o brasileiro é, antes de tudo, um procrastinador. Se for baiano, então, argumentará que sua religião não permite se avexar com a pressa, como na mitologia de se pedir um hambúrguer no McDonald’s de Salvador e ouvir o atendente apoiado no balcão perguntar se é para hoje.

Há duas semanas, o bilhete estava à venda por um clique na internet, enviado por SMS ao telemóvel do cidadão no conforto do lar. Ao chegar em Alvalade, porém, via-se uma gigantesca fila diante das bilheteiras a contornar o estádio como uma ameaçadora serpente humana.

Não foi por falta de intimidade digital, pelo contrário, o telemóvel é para o brasileiro um ente da família, mais do que um big brother, um inseparável little brother, que alimenta, cuida, dá banho, troca a fralda e conhece todas as funções pelo avesso. Com um celular na mão, o brasileiro, se quiser, invade o site da NASA, quanto mais comprar um bilhete on line.

Confrontado pela rigidez do calendário, porém, o brasileiro nunca se antecipará. É mais forte do que ele. Diante da urgência da data, sempre pensará para quê a pressa, se pode fazer no dia? O apressado, come cru, ensinará aos cínicos da antecipação. Socrático, sabe que nada sabe, quanto mais se estará vivo daqui a duas semanas, deixando para a última hora. 

A maioria dos brasileiros da fila entrou no estádio com a bola rolando. Perdeu quinze, vinte minutos de jogo, perdeu o primeiro golo da partida, mas não importa, pois não perdeu o seu caráter, manteve-se fiel aos seus princípios e à sua história e isso, ao contrário do suor do seu rosto e de uma certa dignidade, o europeu não vai roubar.

O pós-doc em estudos brasileiros continuou no interior do estádio. Havia um lugar marcado para cada torcedor, indicado no bilhete, setor tal, fila tal, cadeira tal, mas vamos combinar, essa inflexibilidade até combina com a ópera, o teatro, talvez o cinema, mas o futebol não é cartesiano e ignora a inexorabilidade do encontro de linhas e colunas.

Para o brasileiro, o futebol sentado é também uma falta de educação.

A experiência brasileira num estádio é solidária e se o jogador está de pé, obviamente também estará, chutando junto com o avançado, esticando o pé com o defesa para derrubar o adversário, saltando para cabecear, correndo pela lateral com o braço esticado para receber a bola, tudo isso enquanto rói as unhas. 

O fiscal de colete vermelho em Alvalade tentou organizar as coisas, é verdade, gesticulando, implorando, o senhor não pode ficar aí, sente-se ali se faz favor, até cansar de ser ignorado e desaparecer, engolido pela multidão que se aglomerava no alambrado, tapando a visão de quem estava atrás, como na antiga geral do Maracanã. 

E na minha frente, um homem não só estava em pé, como trazia o filho nos ombros. 

Era oficial: em Lisboa, assistia a um jogo no Brasil. 

Vai, miserável, pula uma gilette!, urrou um torcedor atrás de mim, diante da falta de disposição do zagueiro do Brasil em saltar o suficiente para ultrapassar a espessura de uma lâmina de barbear deitada numa superfície. O outro, mais à frente, ao ver Richarlyson ser agarrado pelo adversário, gritou a plenos pulmões, larga o homem, que ele é casado!

Pura filosofia futebol clube.

Mais do que o futebol, o desporto preferido do brasileiro é a metáfora. Como um mágico e o pombo que surge na cartola, terá sempre uma frase na manga para resumir qualquer situação.

Lembro-me de uma vez, num jogo do glorioso Náutico, de um torcedor dois lances de bancada abaixo nos Estádio dos Aflitos, resignado com os efeitos-colaterais da idade avançada de um veterano jogador que não honrava o manto alvirrubro, comentar com um colega ao lado: esperar o quê desse infeliz, se ele está na quinta dentição. 

A velhice e seus males sublimados na poesia de uma quinta dentição e o senhor doutor com o diploma na parede pensava em ter lido de tudo nos grossos tomos da biblioteca.

O Brasil perdeu, é verdade, com dois gols do senegalês Mané, o que não deixa de ser um alento, uma doce lembrança de um tempo em que havia um Mané do nosso lado para desequilibrar o jogo. Perdemos, mas não saímos de Alvalade derrotados. Vitoriosos já éramos desde que as primeiras notas do hino nacional ecoaram pelo estádio.

Por mim, o jogo terminaria ali mesmo, antes de a bola rolar no relvado.

Não vou mentir, mas quando saí de casa com a camisola da Seleção e Mathias enrolado numa bandeira, temi pelo pior, em ser confundido com os patriotas do fascismo que alinharam com o atraso e a obscurescência no Brasil dos últimos anos e fizeram da nossa bandeira, do nosso hino e até do mítico uniforme canarinho, a farda do atraso.

Foi duro, sim, andar por aí com a roupa do golpe e da crueldade, mas venci a resistência. Vesti a camisola da Seleção, agitei a bandeira do Brasil e cantei o hino, as estrofes misturadas às lágrimas, e o fiz por mim e por quem lutou nesse e em tantos momentos em que alguém tratou a democracia como a Geni do Chico, feita para apanhar, boa de cuspir.

E o fiz, acima de tudo, pelos meus filhos, por aquele miúdo enrolado na bandeira que pouco sabe desse passado e tem todo o futuro pela frente.

Até onde vi, a política relativamente passou ao lado do jogo e melhor assim. O momento mais tenso nesse sentido veio de uma bela torcedora com a camisa verde-amarela com um Hilfiger estampado onde deveria estar o nome do jogador, uma madame esguia e loura como as grã-finas de nariz de cadáver de Nelson Rodrigues, das que olham para o relvado e perguntam quem é a bola?

Lá pelas tantas, a torcedora brasileira mexeu na bolsa e retirou uma cartolina, dobrada em quatro, que desfraldou com uma mensagem escrita.

Meu coração gelou diante do risco de algo estragar o reencontro do Brasil com o Brasil. Até que, aliviado, li no cartaz uma mensagem pregando “say no to racism“. Era em inglês, era sim, mas diante do risco iminente, soou para mim como um dos mais belos versos em língua portuguesa.

Foi assim, no dia em que o senhor doutor com o diploma na parede perdeu uma grande lição de Brasil.

“Eu não falo brasileiro” – leia aqui outras crónicas de Álvaro Filho


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *