Umas escadinhas na Casa da Achada – Centro Mário Dionísio conduzem a um pequeno sótão, cheio de livros. Numa secretária, há uma folha, mas os pequenos Santiago e Artiom, de 12 anos, não parecem prestar-lhe muita atenção. Eles têm os olhos pregados ao ecrã de um computador, onde jogam um jogo. Ao seu lado, o escritor Alex Couto tenta desviar a atenção deles para as palavras, mas Santiago responde sempre: “Não quero saber.”

Artiom veio aos seis anos da Moldávia para Lisboa. Hoje, vive na Ameixoeira e diz que só lê livros de futebol. Ele, a quem o avô um dia mostrou um jogo de futebol do Benfica, apaixonou-se pelo clube. E Santiago, do bairro do Kosovo, no Lumiar, insiste em dizer que não quer saber, mas confessa gostar de ler livros de Manga.

“Não quero saber” podia ser razão para Alex desmotivar. Mas não é – é para ajudar a mudar a resposta que ele foi convidado a estar ali. E o que o escritor fez foi pegar no “não quero saber” e transformá-lo em matéria literária, num conto sobre uma terra onde andam chateados com os livros, mas sobretudo com a vida que os rodeia.

Casa da Achada Leitura furiosa
Artiom (à esquerda) e Santiago (à direita) passaram dois dias com o escritor Alex Couto. Foto: Rita Ansone

Artiom debruça-se sobre o papel e começa a ler:

“É difícil perceber que algumas das coisas mais literárias do mundo não são assim tão literárias quanto isso.”

É assim mesmo que começa o texto que o escritor Alex Couto dedica a Santiago e a Artiom. Encontraram-se aqui porque há 31 anos decidiram criar em França um encontro entre escritores e pessoas zangadas com a literatura, com os livros, as letras (como Artiom e Santiago), e porque há 19 a Casa da Achada fez migrar a ideia para Portugal.

São pessoas que nunca foram impulsionadas a ler e até acham chato. Ou que são analfabetas e nem percebem bem para que servem aquelas letras todas juntas.

Àquele encontro, chamaram “Leitura Furiosa”: convidam escritores, unem-nos aos leitores zangados e escrevem as suas próprias histórias em conjunto, para tentar fazer as pazes com a literatura. O projeto esteve pela primeira vez este ano na Alta de Lisboa, com a presença da ARAL (Associação de Residentes do Alto do Lumiar).

Gente furiosa na Alta de Lisboa

A iniciativa decorreu no fim de semana passado e em simultâneo no Porto e na cidade de Amiens, em França – lá, onde a ideia nasceu há 31 anos, pelas mãos da associação CARDAN, que luta contra a iliteracia da comunidade.

Mas era uma estreia na Alta de Lisboa, que levava três grupos de moradores da ARAL. “Achei que esta questão da Leitura Furiosa fazia todo o sentido vir aqui”, explica João Tito, da ARAL. Assim, quando a associação conseguiu um financiamento do Bip-Zip para um projeto de intervenção cultural, Tito não hesitou em trazer o projeto até este território.

Casa da Achada Leitura Furiosa
João Tito, da ARAL, fez com que a iniciativa chegasse à Alta de Lisboa. Foto: Rita Ansone

Eram seis grupos no total em Lisboa: além dos grupos de alfabetização e apoio ao estudo da ARAL, o grupo da cooperativa Bandim, Conselho Português de Refugiados, Escola Básica do Castelo e Grupo Zona de Intervenção Cultural e PER 11. Com um escritor para cada: Alex Couto, Jacinto Lucas Pires, João Paulo Esteves da Silva, Julieta Monginho, Paola d’Agostino e Serena Cacchioli.

Tudo começa com um encontro com este escritor, como aquele que uniu Alex Couto a Santiago e a Artiom, do grupo de jovens da ARAL. No dia seguinte, o escritor apresenta um texto com base nas partilhas que fizeram nesse encontro (histórias de vida, de relação com os livros), que é sujeito ao crivo das pessoas zangadas.

Entretanto, um grupo de ilustradores afia os lápis e prepara um esboço inspirado naquelas histórias já construídas em palavras. Entre eles, Carlos Quitério, João Cabaço, Mantraste, Pierre Pratt, Rita Oliveira Dias e Nadine Rodrigues. Enquanto isso acontece, os participantes partem da Casa da Achada para visitar uma livraria ou uma biblioteca e conhecerem melhor a morada dos livros.

Casa da Achada leitura furiosa
Os ilustradoras dão vida aos textos. Foto: Rita Ansone

Tudo culmina num grande encontro, entre todos os escritores, ilustradores e grupos de participantes, para conhecerem os contos que aqui nasceram, com a participação e leitura dos atores Carla Bolito, Diogo Dória, F. Pedro Oliveira, Inês Nogueira, José Manuel Mendes, Marina Albuquerque, e dos músicos Pedro Rodrigues e Diana Dionísio. Juntam ainda tudo numa brochura, onde estão as ilustrações e os textos, também traduzidos do francês que chegou de Amiens.

“A ideia é que as pessoas percebam que os livros não são uma coisa distante”, diz Pedro Rodrigues, da Casa da Achada. “É mostrar que esses objetos, os livros, são criações de pessoas que estão aqui, desmontando a ideia de que os autores são figuras nos píncaros.”

Da terra “eu não quero saber” para o “gostava de saber mais sobre isso”

Artiom e Santiago não estão só zangados com a leitura, estão também zangados com o mundo deles. E assim que Alex Couto desbloqueia esse achado, decide escrever sobre isso mesmo no texto que resultou do encontro entre eles: a história de um turista que chega a uma terra que não lhe é assim tão distante – a terra do “eu não quero saber”.

Uma terra habitada por Santiago e Artiom.

“Não queriam saber porque as coisas que sabem servem-lhes de pouco. As matérias dadas na escola pública não os equipam com ferramentas para saberem navegar a vida no bairro”.

Uma Visita à Terra do Eu Não Quero saber, Alex Couto, Artiom, Íris, Santiago e Santiago

É com entusiasmo que Alex diz ao pequeno Santiago, sempre tão ensimesmado: “Não tens de ter medo de ser inteligente, pá!”. E é também sobre isso que este conto fala:

“Não queriam saber porque quanto mais sabem, mais cromos são. Numa realidade urbana em que a rejeição da escola é uma prova de um posicionamento alternativo face à sociedade, porque é que hão de querer parecer marrões ou, pior ainda, chatos?”

Uma Visita à Terra do Eu Não Quero saber, Alex Couto, Artiom, Íris, Santiago e Santiago

Alex está a desmontar o pensamento deles, mas não foi fácil ganhar a confiança dos dois, diz o escritor. “Só depois de eu ter dito que era de um bairro mais ou menos parecido com o deles é que começaram a confiar minimamente em mim.”

A transformação começou aí: “Estava a tentar perceber como é que os levo da terra do ‘eu não quero saber’ para a terra do ‘gostava de saber mais sobre isso”. Lentamente, os dois miúdos acabam por tornar-se aliados de Alex – e das palavras. 

“Quando comecei a falar com os habitantes da terra do eu não quero saber, fiquei sobretudo curioso com o motivo pelo qual não queriam saber. Depois disso, descobri que os motivos eram muitos e bem mais complexos do que pareciam à partida. Eles não queriam saber, mas sabiam bem porque é que não queriam.”

Uma Visita à Terra do Eu Não Quero saber, Alex Couto, Artiom, Íris, Santiago e Santiago

“Um texto muito bonito” para quem ainda aprende a ler

Enquanto Alex batalha com Santiago e Artiom, no piso de baixo da Casa da Achada, o escritor Jacinto Lucas Pires senta-se com Daniela e com a “tia” Maria para partilhar um texto que escreveu para elas, que estão a aprender a ler e a escrever no Grupo de Alfabetização da ARAL.

“Estas palavras vão com a Maria, no Cunene, a caminho da água…”

Para Ouvir, Jacinto Lucas Pires com Maria Kama, Daniela Deía e Gil Val

Daniela e Maria têm sede de um dia conseguirem descodificar estas palavras que Jacinto lhes dedicou. Estão a fazer as pazes com as palavras que lhes fizeram falta toda a vida. “É um texto muito bonito”, diz Daniela.

Ela, que veio de Angola com a filha em 2019 e que agora vive em Santo António dos Cavaleiros perdeu a leitura e a escrita que aprendera na terra Natal. Mas hoje ainda tenta recuperá-la ao olhar para os letreiros dos autocarros. Jacinto não se esquece de contar o que ouve:

“A Daniela é o contrário. Está em casa e não para. A família diz-lhe que não sabe descansar. Um dia, foi a pé do Alto do Lumiar até Santo António dos Cavaleiros. Esta frase segue atrás dela, tenta apanhá-la. Parece uma menina, mas já tem uma filha com treze anos. Aprendeu a ler em Angola, só que foi esquecendo e agora está a recomeçar. Tenta ler os letreiros no autocarro.”

Para Ouvir, Jacinto Lucas Pires com Maria Kama, Daniela Deía e Gil Val

Maria, que vive no Lumiar, nunca foi à escola, “a mãe dizia-lhe para tomar conta dos irmãos”, escreveu Jacinto. Mas agora também isso está a mudar, nesta Lisboa para onde veio depois da revolução.

Casa da Achada Leitura Furiosa
Jacinto Lucas Pires escreveu um texto baseado nas histórias de Daniela e Maria. Fotos: Rita Ansone

E há um terceiro elemento do grupo: Gil, com quem a “tia” Maria partilha um passado. “Quando se encontraram, o Gil e a ‘tia’ Maria olharam um para o outro e reconheceram-se de há vinte anos…”, recorda Jacinto.

“O Gil chega, apresenta-se e, de repente: ‘A D. Maria vivia onde?’ Os dois olham-se, silêncio. Descobrem que eram vizinhos há vinte e tal anos, na Quinta Grande. ‘Eu vivia na rua da Esperança!’, diz o Gil. ‘O meu pai era o Picasso.’ Pausa. ‘Era o Picasso porque era um artista!’ E depois explica o erro da reabilitação: destruíram os bairros e separaram as pessoas.”

Para Ouvir, Jacinto Lucas Pires com Maria Kama, Daniela Deía e Gil Val

Afinal, são as coincidências, ou as coisas normais da vida, que fazem também a literatura. Como Alex não se cansa de explicar a Santiago e a Artiom.

“A literatura não é só aquelas coisas que são literatura, às vezes a literatura é a vida real. A literatura é chegar a um bairro normal, conhecer pessoas normais, perceber a vida delas. Isso às vezes é o mais literatura que existe.

As coincidências que juntaram Santiago e Artiom a Alex, que juntos navegaram pela livraria infantil It’s a Book, na rua do Forno do Tijolo, e Jacinto a Daniela e Maria, que passaram a conhecer a Biblioteca Maria Keil, na Alta de Lisboa, que abriu só para eles.

Eram três da tarde quando todos se juntaram para ouvir os textos interpretados por atores e músicos. Pedro Rodrigues toca guitarra e tambor, dando vida às palavras que viajam do Sul ao Norte do país, passando por França. Daniela e a “tia” Maria ouviam a história delas em voz alta e sorriram, visivelmente emocionadas. Ouve-se a história de quem chega a Lisboa em busca das palavras.

Casa da Achada leitura furiosa
Pedro Rodrigues (na guitarra clássica) musicou alguns dos textos. Foto: Rita Ansone

Já Santiago e Artiom mal se aguentavam nas cadeiras, tal era o entusiasmo. “Quando é que leem o nosso?”, questiona-se Santiago a toda a hora. Quando finalmente chega a vez deles, não escondem o orgulho de ouvir o texto deles, lido pelo ator José Manuel Mendes, a despertar gargalhadas na audiência.

Eles, que tanto duvidaram, mas que acabaram por viajar para lá da terra deles: a do “eu não quero saber”. E quando Alex Couto lhes conta que estará na Feira do Livro no próximo ano, a assinar um livro dele, Santiago já não vacila: “Está bem, eu vou lá estar!”.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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