O comerciante Ali agora tem que ir à Baixa para fazer os depósitos: perda de tempo e risco de levar o dinheiro no bolso.

Desde há cerca de duas décadas, a rotina do paquistanês Shahzad Muhammad mantinha-se a mesma: minutos antes de o banco fechar, o comerciante designava um empregado para o balcão do mini-mercado e serpenteava por entre os becos de Alfama para depositar o ganho do dia na agência do Novo Banco, na rua do Jardim do Tabaco, a poucos metros dali.

Era assim até meados de maio, quando o Novo Banco fechou em definitivo as portas, como antes também o fizeram a vizinha Caixa Geral de Depósitos, o Santander ao pé do Chafariz D’El Rei e a agência dos CTT em Santa Apolónia. Os moradores de Alfama ficaram sem alternativas para depósitos, levantamentos e outras operações bancárias.

O fecho das agências bancárias em Alfama parece seguir a tendência das instituições – as privadas mas também as públicas – de olhar o castiço bairro de Lisboa como um território turístico. Um exemplo é a antiga esquadra da PSP, ao lado do Museu Militar, convertida em Esquadra do Turista. Desde então, o morador que queira participar um delito tem de ir à Baixa.

Ir à Baixa é também o que resta ao comerciante Shahzad Muhammad – ou “Ali”, para os clientes mais antigos – nos depósitos diários que ainda faz. A operação que antes levava dez minutos para ser realizada, agora rouba-lhe uma hora. E por falar em roubo: “Vou, mas sempre com medo, por carregar muito dinheiro no bolso”, confessa.

Reféns das máquinas eletrónicas

Se Ali ainda reúne coragem para andar com o dinheiro do dia no bolso, o reformado Guilherme Tavares há muito desistiu dos balcões. O cliente do paquistanês, mesmo do outro lado do balcão do estabelecimento, divide com o comerciante as dificuldades de não contar com um banco no seu bairro.

Aos 82 anos, 50 deles em Alfama, o senhor Tavares era cliente do Santander próximo do Chafariz D’El Rei, o primeiro a fechar em Alfama. Ainda mantém uma conta ativa na instituição, mas nem sabe dizer em que agência.

“Antes de levar um encontrão de um malandro na rua, prefiro sacar o pouco que recebo na maquininha”, diz, resignado, apontando para o ATM mais próximo. Antigo patrão de um ferro velho nos Sapadores, Guilherme Tavares é o retrato do típico morador do bairro, refém das máquinas que inundaram Alfama, igualmente destinados aos turistas.

Antes, havia caixas Multibanco no exterior e interior das três agências. Após o encerramento, a alternativa são as máquinas automáticas geridas pela Euronet, que podem ser traiçoeiras: se o levantamento for através de um cartão duo, débito e crédito, há o risco de se adquirir um empréstimo com o seu cartão de crédito sem o querer, mesmo que se tenha em saldo o valor sacado. Além disso, há taxas cobradas.

Guilherme Tavares diz que não sabe dizer se costumam ser cobradas taxas nos levantamentos nas máquinas Euronet. “Disseram que a da Junta não cobra”, conta, referindo-se à caixa de aço em tons de laranja encastrada na porta da unidade da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, na Rua dos Remédios, bem ao lado da entrada do posto de saúde.

O ATM da Junta de Santa Maria Maior é a sexta caixa na Rua dos Remédios, no troço de cerca de 200 metros que separa o Museu do Fado da repartição. A estratégia de instalar máquinas aos pares, em frente uma das outras, obviamente não é pensada para atender os moradores do bairro, mas sim o fluxo turístico pré-pandemia.

“Antes de levar um encontrão de um malandro na rua, prefiro sacar o pouco que recebo na maquininha.”

Guilherme Tavares, morador de Alfama.

“As máquinas surgiram como cogumelos em Alfama, porém durante os confinamentos e sem a presença dos turistas, foram desligadas. E os moradores que já não contavam com os bancos, ainda ficaram sem essa opção”, conta a presidente da Associação do Património e da População de Alfama (APPA), Maria de Lurdes Pinheiro.

Maria de Lurdes não se surpreendeu com a notícia do encerramento da última unidade bancária no bairro, em maio. Para ela, após a Caixa Geral de Depósitos, um banco público, fechar, não se poderia esperar outra coisa dos privados. “Foi uma vergonha isso ter acontecido”, lamenta, sobre a decisão da CGD tomada no final de 2020.

O ATM da Junta de Freguesia de Santa Maria maior, o sexto num troço de 200 metros da Rua dos Remédios: fama de não cobrar taxas.

À época, a APPA chegou a organizar protestos públicos em frente à agência e fez circular abaixo-assinados endereçados ao presidente da Câmara, ao primeiro-ministro e ao presidente da República. Entretanto, o único apoio político veio em forma de uma discreta nota assinada por Miguel Coelho, presidente da Junta de Santa Maria Maior. 

A Caixa Geral de Depósitos disse à Mensagem que o encerramento da agência de Alfama faz parte de um movimento do setor bancário de racionalizar a rede de balcões, face à crescente preferência dos clientes pelos canais online. Na nota, a CGD ressalta que Portugal continua a ser um dos países com maior número de agências por habitante.

“Portugal continua a ser um dos países com maior número de agências por habitante.

Caixa Geral de Depósitos, em nota.

O curioso na justificação é o reconhecimento institucional de Alfama como bairro turístico. “Cada território tem as suas especificidades e Alfama tem a sua, com importância para o turismo da cidade”, afirma a nota. A CGD também se refere às máquinas automáticas que “conseguem fazer quase todas as operações dos clientes”.

Também sem os serviços bancários dos CTT

Aos 75 anos, o também reformado António Melo lembra que a maioria dos moradores de Alfama não utiliza as novas tecnologias, ao contrário dele, dono de uma conta no Instagram onde posta as fotografias que tira do bairro. “As pessoas de idade não estão habituadas a essas modernices”, avalia. “Muitos nem cartão mulibanco têm.”

Antigo mecânico da Força Aérea, António diz que vários dos seus amigos que vivem no bairro recebem as reformas pela Santa Casa de Misericórdia, que as envia via vale postal, a serem levantados nos Correios. “O problema é que há muito não há uma agência dos CTT em Alfama”, comenta.

A agência dos Correios de Alfama que antes operava a poucos metros da estação de Santa Apolónia passou a funcionar numa papelaria na Rua do Paraíso. “Com o tempo, entretanto, o dono não achou mais vantagem em oferecer o serviço. Perdia um enorme tempo após o expediente para ganhar pouco e desistiu”, conta António.

“Muitos desses moradores dependem da boa vontade de parentes ou dos vizinhos para levantarem as reformas.”

Maria de Lurdes Pinheiro, presidente da APPA.

Isso foi há uns anos e, desde então, os reformados pagos via vale postal têm de se deslocar até as agências na Baixa ou na Penha de França. O xis da questão é a dificuldade, como diria António Melo, das “pessoas de idade” em se locomover pelas ruas íngremes e os passeios irregulares característicos de Alfama.

“Muitos desses moradores dependem da boa vontade de parentes ou dos vizinhos para levantarem as reformas, mas nem sempre as pessoas estão disponíveis para ajudar”, afirma Maria de Lurdes, que lamenta a constante entrega de Alfama por parte das instituições públicas e privadas ao setor turístico.

“Os bancos, a esquadra, os CTT são mais um capítulo. Creches, escolas básicas e instituição de ensino superior também já fecharam”, enumera Maria de Lurdes, sobre um dos mais vivos bairros de Lisboa, onde cada vez menos vivem os lisboetas. Um sítio onde o colorido das marchas aos poucos tem cedido espaço ao monocromático laranja das caixas automáticas.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

Entre na conversa

1 Comentário

  1. Jornalismo no seu melhor! É preciso denunciar o desprezo pelos que fazem a cidade verdadeira, aquela onde moram as pessoas. O abandono é um crime. Lisboa fez-se de milhares de pessoas simples e trabalhadoras, ao longo dos séculos. Ainda é tempo de fazer viver a cidade. Juntas de freguesia, Câmara, associações de moradores, todos juntos pela cidade e em defesa dos verdadeiros habitantes de Lisboa. A pandemia trouxe, ironicamente, a verdade à superfície: quando as coisas correm mal, só podemos contar com os que ficam. E esses, não são turistas…

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *