Ruas desertas, portas e janelas fechadas, silêncio. No confinamento, Alfama é o avesso de si mesma. A silenciosa realidade suspensa pelo triste uivar do vento, o ladrar distante de um cão e pelo telefone de dona Manuela, a tocar, imperioso, no balcão da Mercearia Castanheira, um oásis na desértica paisagem de comércios encerrados pela pandemia. Manuela, porém, não desiste. Resiste. Por ela e pelos outros.
Manuela Faria, a “Manuela do João”, sabe: cada toque do aparelho, mais do que uma chamada, é um apelo. Há cinco décadas no bairro, ela tem sido o último recurso de moradores confinados não só pela pandemia, mas pela idade avançada e pela solidão. Quando o telefone toca no balcão, do outro lado da linha está alguém que na maioria das vezes só tem a ela para recorrer por mantimentos, uma bilha de gás, remédios.
“E olhe que nem vendo bilhas e medicamentos”, ressalva a comerciante, secando as mãos num pano, à porta do número 5 da Travessa do Terreiro do Trigo. “Mas quando a clientela liga e pede gás, remédio ou pão, o que posso fazer? Compro onde há e mando entregar”, explica, sobre o peculiar serviço de delivery, que dispensa aplicações e funciona com telefone analógico, papel e caneta. Uma espécie de avó da Uber Eats.

A dedicação de Manuela em gerir o negócio familiar como uma “mercearia social de Alfama” não é só consideração pelos antigos fregueses, mas também uma forma de retribuição à comunidade que a apoiou, no momento mais crítico do seu negócio. Em 2017, esteve perto de encerrar as portas, pressionada pela especulação imobiliária que expulsou milhares de moradores e comerciantes do mais castiço dos bairros lisboeta.
A mercearia de Manuela é agora o ponto de recolha oficial do bairro: encomendas dos CTT, ajudas da Junta de Freguesia, tudo passa por aqui. O coração de Alfama.
“Um certo dia, aparece-me o senhorio com um parzinho de estranhos e começam a medir as paredes da mercearia. Na semana seguinte, quem me apareceu foi a carta, a avisar que teria de sair. Só aí soube que o prédio tinha sido vendido”, conta Manuela, que de uma hora para outra se viu prestes a perder o negócio onde começou a trabalhar com o marido, João, ainda antes do 25 de Abril.

Da velha mercearia, à nova: resistência
Desde sempre, a mercearia funcionara entre os números 23A e 25 da Rua de São Pedro, uma importante artéria de Alfama, cortando o bairro entre o Museu do Fado e a Sé na companhia de casas de fado e da cerca fernandina, passagem obrigatória a moradores e turistas. De longe uma via bem mais movimentada que a atual morada, na estreita e sossegada travessa perpendicular ao antigo endereço.
O conjunto de três portas, hoje encerradas, a pintura verde a descascar, era o último em atividade em um prédio com as dimensões de um quarteirão e que se estende nas traseiras até a Alfândega do Jardim do Tabaco e, nas laterais, comunica com o Largo do Chafariz de Dentro. Uma mina de ouro para a exploração turística e que seria reformado por completo. Para isso, a mercearia de Manuela teria de sair.
Foram dois anos de “guerra”, nas palavras de Manuela, uma batalha que lhe “partiu a carola”, tirando-lhe a paz e o sono. “Estava naquela idade em que era nova para a reforma e velha para conseguir um trabalho. Não sabia o que fazer. Só me restava lutar”, lembra-se. E Manuela lutou.

Na trincheira de Manuela entraram antigos e novos fregueses, além dos comerciantes tradicionais da área que, munidos da solidariedade, conseguiram pressionar a Câmara de Lisboa a encontrar uma alternativa ao iminente fechamento da mercearia. Em 2019, o armistício foi assinado com a cessão de um imóvel devoluto na Travessa do Terreiro do Trigo.
“A vida em primeiro lugar. O dinheiro faz sempre falta, mas se não há bife, come-se azeitonas. É a mesma coisa.”
A nova Mercearia Castanheira, protegida pela mesma imagem de Santo António a pairar sobre o frigorífico de gelados, é menor em dimensões que a original, porém a disposição da proprietária não diminuiu em nada. A bélica experiência de manter o tradicional negócio em atividade preparou Manuela para uma nova batalha, desta vez, contra a pandemia. Era a hora de retribuir o apoio que recebera.
Durante o segundo confinamento total em Portugal, que restringiu ainda mais a circulação das pessoas e, consequentemente, o movimento já escasso na mercearia, em duas horas de conversa, dois ou três vizinhos passaram à frente do número 5 da Travessa do Terreiro do Trigo, cumprimentando Manuela com um aceno de mão ou de cabeça.
Encomendas e ajudas passam por aqui
Quem parou à porta foi o carteiro. Dona Manuela sacou de um documento do bolso do avental, assinou uns papelinhos e recebeu em troca dois pacotes. “Agora, é mais isto, ser a sócia dos CTT”, explica, em tom de galhofa, enquanto guarda as encomendas em algum lugar por trás do balcão. O carteiro consente com um sorriso forçado e um meneio de cabeça, como quem diz “é o que é”.
E é, mesmo. A verdade é que alguns moradores, incapazes de descer dos prédios para recolher à correspondência, indicam aos correios a morada da mercearia e a Manuela, em seguida, faz com que lhes chegue às mãos, não importa como.

É assim também com as refeições que a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior diariamente destina aos mais carenciados. A mercearia é o ponto de coleta oficial do bairro e, por volta do meio-dia, um funcionário da junta confia as sacolas à Manuela. O aroma de comida emana pela a travessa. “Hoje, há bife”, sentencia.
Não é só Manuela que sente o perfume. Aos poucos, os destinatários dos sacos começam a surgir, um a um, numa marcha lenta e silenciosa. A comerciante – e agora também “sócia honorária” dos correios e da junta – distribui o que talvez seja a única refeição do dia daquelas pessoas. Uma delas pede uma garrafa descartável vazia. “É para o vinho, que o indiano lá atrás fornece”, explica.
Manuela aproveita para contar quando o mesmo “cliente” foi abordado pela polícia um dia, por estar a beber o tal vinho fornecido pelo indiano, na calçada em frente à mercearia. O oficial parecia querer implicar, lembrando ao sem-abrigo de que não poderia consumir bebidas alcóolicas na via, apenas em casa. A comerciante perdeu a paciência. “Escute lá, Sr. guarda”, interrompeu, para o espanto dos patrulheiros, que recuaram um passo. “Mas a casa deste homem é aí, na rua.”
A intervenção de dona Manuela teve o peso de uma sentença.

A curiosa narrativa é interrompida por um silvo agudo e desafinado. No sistema de entregas de dona Manuela, o assobio faz as vezes do SMS e do email. Era a vizinha do andar acima da mercearia. Desejava uma garrafa de sumo.
Dona Manuela não faz objeções e equilibra-se nos bicos dos pés para fazer chegar o produto à freguesa. A cliente, debruçada na janela, uma improvável Julieta, também se estica do seu lado e a entrega finalmente é feita. A operação repete-se no pagamento, a moeda de dois euros passada de uma mão à outra, no limite da anatomia de ambas, como no famoso toque de dedos no teto da Capela Sistina.


A travessa novamente é engolida pelo silêncio. Da porta do estabelecimento, a comerciante observa os adereços de antigas marchas ao relento, num pátio ao lado da mercearia, as cicatrizes dos ferimentos que o vírus impôs a Alfama. “Não há o que fazer. A vida em primeiro lugar. O dinheiro faz sempre falta, mas se não há bife, come-se azeitonas. É a mesma coisa”, comentou, num misto de sabedoria e resignação.
A tarde avançava no relógio pendurado na parede, entre latas de conserva. “Nestes dias, tenho fechado mais cedo, às quatro da tarde. Espero apenas o rapaz da entrega para recolher os produtos e distribuí-los”, diz, a voz em sussurro abafada pelo vento que corta a estreita travessa num uivo. Lá longe, ouve-se novamente o ladrar de um solitário cão ecoar por Alfama. O telefone sobre o balcão volta a tocar e dona Manuela despede-se para atender a última chamada do dia. O último apelo.
Mercearia Castanheira
Travessa do Terreiro do Trigo, 5
Alfama, Lisboa

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Excelente, o seu PT-pt, a fazer inveja a muito nativo. Excelente, igualmente, o tratamento do tema, muito bem escolhido.
Espero que a “Mensagem de Lisboa” tenha bom sucesso, bem precisados andamos de boas mensagens.
Muito bom, é isso mesmo. Se não fossem as pessoas como a Manuela, hoje em Alfama a situação seria muito pior. Resistem, e continuam a resistir. Havemos de ter uma Alfama melhor.
Muito bom, boa reportagem
A D. Manuela é um exemplo do comércio tradicional .
Maravilha,eu conheço a D.Manuela, é uma jóia de pessoa e simpática com toda a gente,e tbm benfiquista ferrenha, beijinho boa amiga bem haja
Isto é, de facto, serviço comunitário. Mas mais ainda, é um sinal de que as comunidades que pensamos não existirem nas cidades, afinal existem! É muito bom saber! Parabéns à Dona Manuela!
Boa Tarde Álvaro!
Gostei muito da sua prosa. Conheço bem esta realidade.
Partilhei agora na minha página.
Obrigado. Cumprimentos à Líbia. Espero que estejam todos bem.
Um Abraço!
Abel
Que delícia ler essas palavras, uma homenagem à mulher fantástica que é a Manuela. A festa de S. Martinho em 2003 convidou 2 estrangeiros ‘turistas’ para festejar na rua com o grupo de Alfama, ofereceu caldo verde e criou uma amizade pela vida. Ela sempre ajudará, é o seu destino. O Covid nos impede vir, mas sempre voltaremos ao bairro único que é Alfama e as amigos.
Grande artigo,muito bem escrito e retrata um ser humano que é o que o que descreveu e ainda muito mais
amiga da população da freguesia noutras vertentes, que posso testemunhar , como ex- eleito local nestes últimos 40 anos na freguesia!Parabens pelo belo trabalho!
De facto, porém palpitou-me logo que o autor fosse brasileiro pois usou EM UMA em vez de NUMA, além de que escreveu A em vez de À.
Excelente artigo!
Gostei da história e oportunidade de dar a conhecer o melhor das suas gentes e, já agora, a outra parte de mim; a minha Alfama, da minha infância, das correrias pela Rua de S. Pedro e S. João da Praça (fui baptizado na igreja) das Escadinhas de S Miguel, das tardes de sábado no Grupo Sportivo Adicense (a sede ficava na Rua da Adiça) a ver Televisão, a troco de 5 tostões de tremoços. Entretanto a Rua da Adiça, foi dividida para acolher a Rua Norberto de Araújo, (poeta que escreveu muito sobre Alfama) que termina nas escadinhas de acesso às Portas do Sol.
É mesmo isto a Manuela do João !!! Um ser humano espectacular .
Parabéns pela descrição desta minha amiga.
Não baixou os braços e conseguiu ficar com a sua mercearia (para meu ver,mais escondidinha )mas o importante é que ficou em Alfama num bairro que ela tanto ama.
Bem Haja a quem escreveu tão belo texto.
Excelente artigo, ao ler, pareceu-me também estar em Alfama, tal a clareza na descrição da história da valente D. Manuela. Agradeço por trazer à luz a humanidade e o sentido solidário de viver dessa admiravel pessoa, em palavras muito bem ditas. Uma leitura que encanta pela simples e profunda verdade que revela: A solidariedade e a partilha de uns, cultivam e sustentam a esperança em outros!
Já não me lembro quando descobri a Mensagem, e quando me sento a lê-la, esqueço-me das horas. Gosto imenso de ler, e tenho o tempo sempre ocupado, com outras actividades, por isso raramente venho para o computador, não dando pelo tempo passar, deliciando-me a ler a Mensagem. Apesar de não ser natural de Lisboa, tenho uma paixão pela cidade. Parabéns por quem teve tal ideia, ajuda-me a conhecer melhor a cidade. Desejo um Novo Ano, e que as promessas que foram feitas depois das inundações pelos nossos governantes, não fiquem no papel.