Tudo nesta loja tem um ar novo. Ichha é a mulher por trás desta loja na Mouraria que abriu há cinco meses, à qual chamou Vibe Finery. Também ela é uma novidade no bairro, na cidade e no país. Veio do Nepal para Lisboa há cerca de um ano e, com 22 anos, montou o próprio negócio neste bairro lisboeta, com a ajuda da família.

“A minha família e eu estamos totalmente empenhadas na loja neste momento. O plano é expandir, depois de vermos como o negócio corre ao fim de um ano”, diz. O seu legado é de uma família de perseverança. Os pais foram os primeiros a chegar a Portugal há dois anos e começaram por trabalhar na agricultura, no Alentejo. Ichha chegou no ano passado a Portugal com a irmã de nove anos e o objetivo de estudar moda. Os vestidos que a rodeiam não deixam dúvidas. Hoje, é ela mesma quem gere esta loja, com a mãe que vive em Torres Vedras.

A operação que faz todo o negócio funcionar começa do outro lado do mundo: mãe e filha solicitam a criação de vestidos numa fábrica da família em Kathmandu, que depois são enviados para Lisboa.

“Faço isto porque quero dar uma vida feliz à minha família, estamos todos aqui em Portugal. E, de certa forma, sinto que estava destinada a chegar a Lisboa, porque agora sei que é aqui que quero ficar”, conta.

O negócio de Ichha, na Mouraria, faz parte de um projeto que quer fazer de outros imigrantes donos do seu destino, sobretudo mulheres imigrantes. É a Feira de Empreendedorismo, culminar do antigo projeto PROFCOM, da associação Renovar a Mouraria. Apoia empreendedores migrantes do bairro, e cresceu desde o ano passado: mudou de nome para MourariUP e é financiado pelo Banco BPI e a Fundação “La Caixa”.

A nova edição está prestes a arrancar com novas formações, bootcamps e uma feira. A Renovar a Mouraria está agora à procura de imigrantes para integrar o projeto. Os empreendedores irão participar num bootcamp e em formações com mentores experientes na área, com o objetivo de desenvolver um negócio comercialmente viável para vender nesta Feira.

Uma escola de empreendedorismo para migrantes

Será o início de uma nova escola de empreendedorismo na Mouraria. E nasceu tudo da cabeça de Ivan Bustillo, coordenador do projeto, técnico de Inclusão Social na Renovar a Mouraria e também ele imigrante, vindo da Colômbia para a Europa.

Antes de aterrar em Lisboa foi professor e voluntário na Ucrânia. E a experiência diz-lhes que esta oportunidade que agora tem nas mãos, o MourariUP, é uma forma de empoderar economicamente alguns dos grupos mais marginalizados na cidade, ajudando-os a construir ferramentas para poderem desenvolver os próprios projetos e ideias. 

“A minha própria história como migrante também me impulsiona para criar oportunidades novas para outros migrantes. Não se trata só de empreendedorismo – guiamo-nos por uma lógica comunitária, que permita criar oportunidades novas a estes migrantes”, conta.

Foto: Carlos Menezes

A necessidade de espaços e ações comunitárias neste bairro é óbvia: um estudo no âmbito do projeto ALI – Atendimento Local para a Inclusão demonstrou que apenas 10% dos migrantes na Mouraria afirma pertencer a uma comunidade. Sentem-se fora da dinâmica do lugar. Não lhe chamam ainda “casa”.

A oportunidade para empoderar mulheres imigrantes

Muitos dos empreendedores que aqui chegam são sobretudo mulheres, várias delas ligadas ao trabalho doméstico. Na imigração e nas oportunidades de trabalho para imigrantes, a diferença entre géneros ainda parece bastante patente, lembra Ivan Bustillo:

“Mas o que eu vejo é que a Mouraria é um espaço, um território muito diverso, e a maior parte das pessoas que chegam à Mouraria como migrantes são migrantes económicos. E são migrantes homens, a maioria, mas quando eles chegam já têm quase que arranjado algum emprego, estão conectados e formam as suas redes. Eu poderia dizer que a razão disto é que os homens estão em trabalhos mais informais e já trabalham em lojas e arranjam mais rápido. E as mulheres, como não têm acesso a essa rede tão forte de homens na Mouraria, como no caso do Benformoso, por exemplo, que só vejo homens ali, são muito talentosas. Veem no nosso projeto uma oportunidade para desenvolver e isso é o que o MourariUP está a oferecer. Acontece também que muitas delas são donas de casa, por exemplo, então têm mais tempo para estar numa formação, etc. Os homens normalmente já estão com algum emprego arranjado. Sim, é interessante.  É importante também para…  Sim, para o empoderamento feminino.”, dz Ivan

É o caso de Francisca e Anabela, criadoras do Sabor das Manas, um serviço de catering e organização de eventos. São cinco irmãs que emigraram de Angola em busca de melhores condições de vida e de cuidados de saúde. Trouxeram o conhecimento, a experiência com a gastronomia angolana e um negócio criado ainda na terra natal – Luanda.

Francisca e Anabela, do Sabor das Manas. Foto: Carlos Menezes

Mas a aventura começou conturbada. Fizeram um esforço para se adaptarem à gastronomia local. Em vez de funge com peito alto, serviram arroz com este prato de vitela estufada, porque dizem, “os portugueses preferem comer com arroz, em vez de funge”.

Mas há clientes mais aventureiros: conta Anabela que têm recebido muitos pedidos de receitas com quiabo. Ainda assim, a escala do negócio não é a mesma em Portugal e todos os dias era a mesma lamentação. Até se cruzarem com a Renovar a Mouraria.

“Em Angola fazíamos eventos às vezes para mil, duas mil pessoas. Mais de duas mil pessoas. E aqui em Lisboa já fizeram alguma coisa dessa dimensão?  Não, não. Aqui em Lisboa acho que o máximo que fizemos foi para 120 pessoas. Porque aqui as festas são pequenas. Mesmo porque não se tem a cultura aqui de se gastar tanto, porque as famílias são pequenas à partida.Não são famílias tão grandes como as famílias africanas.  Onde também há aquele costume de virem muitos primos para o casamento… É um costume e no fundo é tipo uma regra. Se tu casares a tua filha, a tia que ofereceu um babete tem que vir ao casamento.  Então é assim, é tipo…  O casamento é tipo…  Uma honra que se faz à família. Quando nós casamos uma filha é como se estivéssemos a ser honrados pela nossa filha. Então nós queremos mostrar para toda a família, porque é uma honra. Queremos mostrar para toda a família, para os primos, para os vizinhos, para o periquito, para o passarinho, que a nossa filha está a ser honrada.

O restaurante faliu durante a pandemia, e então as irmãs souberam da Renovar a Mouraria e das formações do programa de empreendedorismo que ajudaram a estruturar e a reenquadar o negócio. Além da comida, levam para os eventos decoração própria, como panos e jarros de flores, com motivos de inspiração africana.

Um moçambicano de malas recicladas ao peito

Djama chegou há quase 30 anos a Lisboa, vindo de Moçambique. Tem uma marca de malas, a Fractal, que segue a filosofia do upcycling: são feitas com PVC que obtém de associações, de cartazes publicitários e campanhas de partidos políticos. O conceito que, para ele, já vem de longe.

Foto: Carlos Menezes

“Quem menos tem mais reutiliza. Upcycling é o que mais existe nos países subdesenvolvidos. Claro que lá ninguém chama àquilo upcycling, é reutilizar: se tens uma t-shirt, vais fazer com que aquela t-shirt dure o máximo de tempo possível. Se tens um par de ténis, ou uns sapatos, vais trocar as solas as vezes que forem necessárias, porque é o que tens. E tens de fazer com que aquele produto ou objeto dure o máximo de tempo possível. E comigo foi assim que surgiu o gosto pelo upcycling, ou então o gosto pela reutilização. A necessidade surge primeiro, depois torna-se um gosto. Isto é, eu lembro-me de estar na escola e ter de fazer maquetes, ou seja o que for que se faz em escolas de artes. Os materiais são muito caros, pouco acessíveis. Então eu acabava sempre por, sempre que me era permitido pelos professores, substituir os materiais. Portanto, em vez de ir comprar uma k-line ou uma cartolina, usava o cartão de uma caixa de sapatos. Inicialmente o meu percurso na reutilização começa dessa forma, com a necessidade de apresentar certos trabalhos na escola, mas não ter acesso aos materiais, então substituí-los por materiais que podiam cumprir a mesma função.”

Para estes migrantes, o MourariUP é mais do que uma feira para construir um produto: o que fica são os laços numa rede de comunidade e entreajuda. Os Sabores das Manas, por exemplo, já recrutaram outra participante para levar os seus churros nos eventos que organizam.

Foto: Carlos Menezes

Nesta edição, alguns empreendedores, como Ichha, serão pela primeira vez mentores, uma forma de manter a comunidade viva e que os projetos de cada um continuem.

Para o ano, a ideia é expandir e abrir finalmente uma escola de empreendedorismo, um modelo de apoio à autonomia imigrante que perdure no tempo.


*Henrique Martins tem 24 anos e nasceu em Lisboa, onde já viveu em todas as linhas do metro. Licenciou-se em Ciências da Comunicação e a curiosidade pelo mundo fê-lo enveredar no jornalismo. Atualmente, é mestrando em jornalismo e vive entre Lisboa e Amesterdão. É colaborador na Mensagem de Lisboa.


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