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Tem o tamanho de duas mãos estendidas, é castanho até nos olhos bugalhudos, ergue uma cabeça maior do que o corpo de madeira e tem vários pregos espetados no peito.
Esta figura estranha chamada fetiche nkisi não foi montada para expor numa qualquer galeria de arte, já foi utensílio de alguém. Sabemos que vem de uma tribo da República Democrática do Congo e que cada prego representa um pedido de cura ou de proteção. Rezam as lendas que rodeiam esta comunidade que, se o prego não segurar, o pedido não será atendido.

Agora, esta é uma das muitas histórias para mostrar e contar numa sala aberta ao público em Lisboa: uma galeria de arte, a African Arte Lisboa, cujo criador se tornou isso mesmo, um contador de histórias.
A Rua Sousa Lopes não é uma Rua Augusta ou uma Avenida da Liberdade. Nesta veia da freguesia das Avenidas Novas, mesmo no início do bairro do Rego, não se faz turismo. Regra geral, é zona de passagem para moradores, trabalhadores das empresas de telecomunicações e de recrutamento ou estudantes alojados nas mais recentes residências ali montadas. Nada lhe dá movimento além do vaivém de quem precisa dela para viver ou trabalhar.
Por isso, seria difícil adivinhar que esta rua se tornaria ponto de encontro para dezenas de pessoas no mundo, entusiastas do passado e presente indígena de África.
“No outro dia, entrou-me porta dentro um estrangeiro que dizia vir da Papua-Nova Guiné. Quando ele foi embora, fui ao mapa pesquisar onde ficava, o planeta começou a rodar todo e eu percebi: ‘este veio de longe’”.
E longe é também Canadá ou até mesmo Bragança, de onde Paulino Semedo tem recebido visitantes.

Foi ali, escondida entre as arcadas dos prédios, que nasceu esta galeria de arte africana. Cheira a madeira, a coisa usada. Numa sala branca também tingida de estanho, bronze e até missangas, há máscaras de todos os feitios, olhos grandes a olhar na direção de quem entra, outros cerrados e que parece que olham também, e imagens de figuras humanas que mais se assemelham a animais.
Nenhuma das esculturas está assinada. “Nesta arte, cada peça está associada a um povo, é sempre uma peça coletiva”, assim explica Paulino.
Ele, que começou por ser apenas um homem apaixonado primeiro por máscaras de madeira – há as faciais, as de ombro e até máscaras para o ventre – não perde um segundo para ensinar: diz-se “quando o proprietário da máscara morre, a máscara deve ir com ele”, como se fosse uma extensão de cada um de nós.
Paulino não vive numa comunidade que se rege por elas, mas prefere fotografar-se atrás de uma máscara e manter o anonimato. Quer que a tónica esteja na galeria e na arte africana, não nele.
Primeiro as máscaras, é certo, mas já em adulto, enquanto se fazia engenheiro, cultivou a admiração por toda e qualquer materialização dos rituais e costumes das tribos indígenas de África. Faz regularmente visitas a este continente para recolher peças, embora grande parte do espólio que tem hoje tenha sido doado por um “mestre” chamado Keita – mas já lá vamos.
Não são réplicas, estiveram na vida de alguém, contam histórias reais. Diz ele que parece ser “cada vez mais fácil” resgatar estes tesouros, porque há uma camada jovem que se está “a desenraizar” das suas tribos e dos costumes, não dando valor ao espólio que deixa para trás. “Se para a geração antiga representava algo, para os seus herdeiros pode não ter o mesmo valor”.







Mas se isto acontece, também reconhece que há cada vez mais entusiastas perante esta arte, externos às tribos de onde é originária – o próprio filme Black Panther, da Marvel, terá despertado um interesse pelas máscaras, admite.
De regresso a casa, das viagens, Paulino senta-se a estudar cada uma das esculturas. Porque falar delas é, para ele, como contar histórias.
Os gémeos ibeji, o pássaro calau e os panos que valiam ouro

Numa das prateleiras, conta-se parte da história do povo Iorubá. O nome soa estranho, mas é considerado um dos maiores grupos étnico-linguísticos da zona da África Ocidental e existem em grande escala na Nigéria.
Os Iorubá estão nesta galeria graças a uma crença antiga: instituíram que “os gémeos são vistos como uma dádiva” e é deste princípio que nasce o casal de irmãos mais conhecido entre este povo, o casal ibeji, duas figuras iguais, normalmente esculpidas em madeira, com uma popa sobre a cabeça.
Cada casal de gémeos que nasce neste povo merece a sua escultura e, por lá, conta-se que “se um dos gémeos morrer, deve continuar a alimentar-se a escultura do gémeo que desapareceu, porque acreditam que os dois formam uma alma só e, se pararem de alimentar, a alma que ficou para viver sofre”. Lá está o contador de histórias.
A mais colorida das histórias que tem para contar reside em duas figuras de peixes, com várias cores, pousadas numa das prateleiras da galeria. São esculpidos para serem ocos por dentro e poderem ser encaixados nas mãos, como marionetas. Vêm do povo Bozo, da região do Mali e “servem para educar e transmitir informações importantes aos aldeões”. É como uma escola. E são peixes porque é um animal de respeito – “está dentro de água, a água é Terra e merece respeito”.

Quase toda a arte transmite uma crença. E a crença na fecundidade é uma das mais materializadas pelo povos indígenas: surge em máscaras de ventre, em esculturas de mulheres de barriga saliente… ou num grande pássaro Calau.
Um pássaro como figura da fecundidade? Isso mesmo.
A espécie é parecida com os tucanos, mas se estes velhos conhecidos de bico laranja vagueiam pelo céu azul da América do Sul, os calaus ocupam o continente africano e asiático. Em África, diz Paulino, estão “bastante representados numa região chamada Senufo – que abrange Mali, Burquina Faso, Costa do Marfim”.
“Diz a lenda que foi um dos cinco primeiros animais a habitar a terra e o primeiro a ser utilizado como alimento pelo Homem. Está muito associado à prosperidade e à fecundidade, daí esta escultura ter o bico a ir até ao ventre”, aponta para a mais imponente de todas as figuras nesta galeria.

Depois há a crença nas classes – uma crença antiga que se estende a todos os continentes. E essa é contada através de panos de motivos étnicos que Paulino estendeu nas paredes da galeria.
“Ali, está o pano bogolan.” Bogolan ou bogolanfini, assim é o nome deste tipo de têxtil tradional africano, mais especificamente do Mali. Um pano tingido de lama, a mesma que lhe deu o nome – para o povo Barmana, “bogo” significa lama ou terra.
Mas depois há o pano Kuba, “que é um pano nobre, associado ao prestígio, usado por sacerdotes e guerreiros” do povo Kuba, da República Democrática do Congo. “Era usado como moeda de troca e para diferenciar classes utilizado no corpo ou para ornamentar as habitações.”
Sabia que…?
Paulino diz que parte do valor de cada peça reverte para associações locais, sobretudo associações no bairro do Rego, a sua morada.
Um engenheiro à procura do otimismo numa arte associada à feitiçaria
Pregos em peitos de madeira, olhos grandes… Diz Paulino que algumas figuras podem fazer estremecer até os mais céticos, mas está cá também para desconstruir esta ideia: é que as máscaras, as esculturas e os panos que estes povos utilizam em rituais advêm sempre de qualquer fé ou esperança. “Não é feitiçaria, é cultura”, remata.
Paulino rodeia-se de livros e tem uma carteira de mestres desta arte a quem recorre frequentemente.
Mas, para ele, tudo começou na TV.
“Tinha uns 12 anos”, não sabe precisar. Era dia de Jogos Olímpicos, ele não competiu, nem ia agarrar tochas, mas estava sentado em frente à televisão, na casa onde nasceu e cresceu, na Caparica, para dar plateia aos jogos. Lembra como se fosse hoje quando, durante a apresentação, foi assaltado pelo espanto ao ver entrar objetos tão estranhos como um escudo, qual guerreiro, e máscaras faciais castanhas e de formas esquisitas. Não era Carnaval, ele sabia-o, aquilo eram máscaras de povos, máscaras sérias. “Lembro-me de o comentador dizer: ‘isto são autênticas obras de arte'”. Desde aí e ao longo da vida, Paulino tentou perceber porquê.

O que ia descobrindo não o fez adivinhar que um dia faria desta arte vida. Tinha outros planos, quando o assunto era o futuro profissional: procurou as profissões mais bem pagas e seguiu a gestão aliada à engenharia. Formou-se na NOVA School of Science and Technology, no Monte de Caparica, em Engenharia e Gestão Industrial. É nisso que trabalha ainda hoje – acabou por ir parar ao ramo das telecomunicações.
Então o que faz um engenheiro abrir uma galeria de arte africana?
Durante muitos anos “só tinha paixão”, era só com ela que poderia contar. Já em adulto, trouxe uma máscara de Cuba, pendurou na parede de casa e sonhou enchê-la com mais – para depois descobrir que o que tinha comprado não era a arte que ele queria, “era arte para turistas”. Mas não encontrou, em Portugal, onde comprar peças genuínas.
“Serei só eu interessado e sem encontrar um sítio para matar o bichinho desta paixão?”, perguntou-se.
Numa viagem ao Porto, veio a conhecer um senhor do Mali, chamado Keita, o tal “mestre”, que acabou por lhe passar 30 anos do seu conhecimento. Deu com uma galeria na cidade do Norte e Keita, o dono, confundiu-o com um estudante. Mas o objetivo de Paulino era claro: “vou ver como ele tem o espaço e depois vou tentar ir a África agregar arte”.
Foi percebendo que “é fácil ser enganado neste ramo”, trocar gato por lebre, por isso “ainda bem” que não se atirou como paraquedista nesta aventura – diz hoje. Foi com Keita que começou por aprender sobre arte etnográfica africana.
E os astros já se estavam a alinhar, sem que ambos dessem por isso: “Ele disse que há uns anos que estava à procura de alguém para dar continuidade ao negócio. Queria deixar isto, ir descansar”. Então, fizeram um acordo: Paulino levava emprestado parte do espólio dele, entre 70 a 120 peças, estudava-as, fazia contactos com hotéis para pequenas exposições e entregava cartões com o seu nome – “Paulino Semedo”, assinava.
O resultado surpreendeu-o. Abria portas de uma sala de hotel e via chegar dezenas de pessoas – aí, soube finalmente: “não sou mesmo o único”. “Distribuía 50 convites em condomínios privados para um evento quase exclusivo e apareciam 150 pessoas”, conta.
Assim se construiu um pequeno império de arte no bairro do Rego.
Acabou por adquirir aquelas peças e fundar a sua própria galeria, há dois anos. E não permite que ninguém saia dela sem saber um pouco mais do mundo. É também ela um museu, às mãos de um engenheiro que virou contador de histórias de África, em Lisboa.
*texto publicado originalmente a 5 de janeiro de 2023

Catarina Reis
Nascida no Porto há 27 anos, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde aprendeu quase tudo o que sabe hoje sobre este trabalho de trincheira e o país que a levou à batalha. Lá, escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020.
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