Esta é uma reportagem do projeto Correspondentes de Bairro

Hora do almoço e o restaurante no Mercado do Bairro de Santos fervilha. A correr entre as mesas, Euclides, o filho da Dona Isabel (a mulher que batiza o estabelecimento), habilmente equilibra com as mãos as doses de cachupa. Um dos pratos símbolos de Cabo Verde – a terra de onde Isabel partiu nos anos 1970 – e a especialidade da casa servida sempre às segundas-feiras e aos sábados. 

Euclides tem as mãos firmes. As mesmas mãos que seguraram com igual firmeza dois títulos europeus e um mundial para Portugal no futsal. Filho da “Dona Isabel” e também do bairro Santos ao Rego em Lisboa, o Euclides que segura a cachupa é mais conhecido entre os adeptos portugueses pelo nome que o eternizou: o guarda-redes Bebé.

Prestes a completar 40 anos, Bebé vive o primeiro ano de reforma, agora a usar as mãos, que também defenderam 17 títulos pelo Benfica, para ajudar no vai e vem dos pratos no restaurante Dona Isabel. Um trabalho que administra desde 2018 ao lado da mãe e um presente que o filho campeão deu à mulher que o criou com pulsos firmes – dignos de guarda-redes.

Dona Isabel, a mãe do campeão mundial de futebol de salão Bebé, na opinião do filho, o “mister” mais difícil que o jogador já teve. Foto: Inês Leote.

“A minha mãe foi cozinheira a vida toda e o sonho dela foi sempre ter um restaurante. Lembro-me perfeitamente. Quando cheguei da Eslovênia para lhe mostrar a medalha de campeão da Europa e matar saudades, ela nem esperou muito: disse que no mercado ia abrir um espaço e que gostaria de concorrer”, recorda Bebé. 

O antigo jogador – hoje responsável na Federação Portuguesa de Futebol pelos futuros defensores das balizas da seleção – ainda se mostrou relutante.

“Eu avisei que ia dar muito trabalho, que ser patrão não é a mesma coisa que ser empregado. Mas ela insistiu, é muito teimosa”, explica. Já ele nunca teve experiência neste ramo. “A minha mãe é que me meteu neste embrulho.”

A jogar à bola no “relvado” de alcatrão no bairro

Ainda antes de se tornar o conhecido guarda-redes, o adolescente Euclides não escapava ao olhar atento materno. “Quando me portava mal ou quando era suspenso da escola, a minha mãe mandava-me logo trabalhar nas obras”, conta Bebé. “Foi a minha primeira experiência profissional.”

As punitivas jornadas como ajudante de pedreiro forjaram a musculatura do futuro atleta, que começou a trilhar o caminho da bola no bairro onde nasceu, no Rego. Primeiro, nas tardes de futebol entre miúdos, as partidas disputadas não no saibro ou no relvado, mas nas ruas de alcatrão, o que acabaria por determinar a escolha pelo piso duro do futebol de salão.

“Felizmente, os nossos pais tinham condições para nos dar ténis. Podiam estar todos rotos, mas jogávamos calçados. Era muito diferente do que é atualmente. Éramos uma comunidade, muito próximos, os miúdos da mesma idade juntavam-se e brincavam e a nossa brincadeira era jogar à bola.”

Nos tempos de miúdo de Bebé, o futebol era possível apenas no alcatrão das suas ruas. “Nós jogávamos no meio da estrada. Os carros vinham e o jogo parava. Deixávamos o carro passar e depois continuávamos o jogo”, lembra. “Era tudo no improviso. Quando fui estudar na 44 (Escola Mestre Arnaldo Louro de Almeida), até tinha um campo, mas não podíamos jogar”. 

A proibição, segundo Bebé, para proteger a integridade do pavilhão da escola, não evitou que os miúdos do Rego agissem como miúdos.

“O que acontecia muitas vezes é que nós no fim de semana saltávamos a rede e íamos para o campo”, conta o futuro guarda-redes.

Um bairro ainda sem espaços para o desporto

A falta de espaços disponíveis à prática desportiva no Bairro do Rego – e não só o futebol – é um traço em comum ao passado e ao presente da comunidade. Sem um único campo ou praça à disposição, os miúdos de hoje são obrigados a apertarem-se em logradouros entre os apartamentos ou usar o mesmo “relvado” de alcatrão dos tempos do pequeno Euclides.

O bairro do Rego carece de campos de futebol ou outros lugares de brincadeira entre os mais novos. Foto: Inês Leote

Uma carência que tem travado o surgimento de novos “Bebés” no bairro?

Da geração que gastou os rotos ténis com o guarda-redes, apenas ele conseguiu tornar-se jogador profissional. E para isso, foi preciso rumar a outra freguesia. “Aqui só havia a equipa dos Económicos, mas era muito intermitente. Havia anos que não jogávamos”, recorda.

A solução foi gastar a sola do ténis para seguir até à Mouraria, onde acabou por estrear-se na divisão principal como guarda-redes do Grupo Desportivo Castelo. De lá, seguiu para o Sporting e, finalmente, para o Benfica, onde chegou à seleção.

Um percurso que Bebé vê como quase impossível de ser repetido pelos miúdos que seguem sem opções no bairro. O que para o ex-jogador é uma pena e não apenas por questões profissionais.

Bebé; “Falta uma cultura desportiva em Portugal.” Foto: Inês Leote.

“O futebol ajuda na disciplina, a ter normas e regras, a passar valores aos miúdos, porque o desporto é uma arma muito poderosa e pode contribuir para uma sociedade mais civilizada e harmoniosa”, diz.

E então, o que falta no Bairro do Rego? Ou não só no Bairro do Rego?

“De uma forma geral, falta uma cultura desportiva em Portugal. Está a mudar, há mais pessoas a fazerem atividade física hoje do que antigamente. Ainda assim, penso que, aqui no bairro, é essa falta de mentalidade na Câmara, na Junta de Freguesia das Avenidas Novas, que faz com que os responsáveis não vejam a falta que um campo faz para os miúdos do Rego”, explica.

Das taças de campeão aos copos de Coca-Cola

As mãos que defenderam potentes remates agora servem uma Coca-Cola, a bebida que carrega um gosto especial para Bebé.

“Naquele tempo, fazíamos o jogo da Coca-Cola. Como não tínhamos dinheiro, cada um dava ‘x‘ e comprávamos duas garrafas para serem o nosso troféu. A equipa que ganhasse ficava com a Coca-Cola. Eram tempos muito bons.”

Tempos bons que Bebé espera ver refletido também nos olhos dos miúdos de hoje, principalmente com um espaço dedicado às atividades desportivas no bairro. O antigo jogador diz ter usado o seu prestígio junto às autoridades, principalmente na Junta de Freguesia das Avenidas Novas, mas o máximo que conseguiu foi uma promessa nunca cumprida da construção de um campo.

As mãos do guarda-redes que garantiram títulos para o Benfica e a seleção hoje equilibram bandejas e latas de Coca-Cola. Foto: Inês Leote.

Para quem nunca trabalhou na restauração, Bebé parece bem à vontade. “No início, estava meio reticente, mas agora estou tranquilo. Há uma coisa que gosto muito aqui, que é falar com as pessoas”, confessa o campeão que trocou a bola e as luvas pelas bandejas e os pratos, e as taças de campeão pelos copos de Coca-Cola.

Sobre o que é ser mais difícil – trabalhar na obra, ser guarda-redes ou o quotidiano num restaurante – Bebé parece não ter dúvidas. “É bem mais difícil trabalhar aqui. A minha mãe é muito exigente”, diz, sob o olhar atento de uma silenciosa Dona Isabel. O filho sabe que mais tarde terá de ouvir. “É o mister mais complicado com quem já tive de lidar.”



*Inês de Sousa tem 18 anos, nasceu e cresceu no Bairro do Rego, na freguesia das Avenidas Novas, em Lisboa. É uma das Correspondentes de Bairro da Mensagem. Sempre acompanhou a Associação Passa Sabi, onde nos últimos anos ganhou mais responsabilidade. As paixões que tem hoje foram descobertas aqui, no bairro e na Associação, graças ao trabalho diário e às oportunidades que lhe me proporcionam. Por isso, diz ser uma pessoa feliz.


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