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A processar…
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Tenho um amigo que tem o sonho de fazer parte da equipa criativa da Pixar. Contou-mo fascinado com isto de um dia a ideia para o Coco ter surgido. Como conheço um homem que tinha o sonho de ser suplente numa lista candidata a uma junta, podia ser pior. Mas também podia ser muito melhor.

Eu, por exemplo, voo alto – e quando voo raso gosto de olhar para trás. Durante anos, passei dias e noites a torcer a memória do meu cumprido sonho olímpico. Estávamos para aí em 2001 e as escolas das redondezas fizeram um torneio. A partir daí, foi uma chuva de fintas: eu com hat-trick atrás de hat-trick, eu levada em braços pelas companheiras de equipa, eu heroína da escola, eu a marcar golos a Pevidém, a Guimarães e, melhor do que isso, ao colégio. Fui a melhor em campo em todos os jogos, e por isso não me vou pôr com falsas modéstias – que sou boa demais para isso – nem dizer que passava os jogos na mama porque no campeonato das raparigas não havia foras-de-jogo. Estava no sexto ano e, depois de tão épico torneio, que durou duas manhãs, achei que o futuro me reservava a taça da Liga dos Campeões, e as minhas mãos a levantá-la, e a braçadeira de capitã do Futebol Clube de Vizela a luzir perante o estádio. A vida correu mal, o futuro foi outro, não dei em nada de jeito – hoje sou cronista.

Que se lixe. Falhei como futebolista, porque, para além de nunca ter jogado a sério, tenho uma paixão chamada pão com queijo. O desporto é saudável, mas a paixão acorda mais, e quem já viu camembert derretido em cima de pão tostado sabe que não há Camp Nou rendido a Messi, Santiago Barnabéu a chorar por Ronaldo ou Tyresövallen a babar por Marta Silva que compita. Restou-me esta coisa doente de inventar histórias, entusiasmar-me com as dores de gajos que invento, falar para o boneco durante todo o dia, e ainda pôr o boneco a falar com mais bonecos. E, claro, para além disso, depois de lhes criar problemas, ainda tenho a desfaçatez de os resolver. Na vida, sou romancista; no LinkedIn, seria problem solver. Não se pode dizer que seja péssimo, pelo menos não suo nem como relva o dia todo. 

Ora, estando eu metida nesta vida de escrever, e sendo o mercado editorial o que se sabe que é, floresceu em mim há dias o meu segundo sonho profissional, que passa por usar a pena, ou caneta, ou teclado, para abrir os olhos aos pobres apaixonados que grassam país fora. Estava eu na Biblioteca Nacional, o céu ameaçava chuva, mas ainda não chovia, e por isso os fumadores metiam-se a apanhar ar enquanto o tiravam a quem não metia de propósito alcatrão nos pulmões. Naquele espaço, é assim: uma mulher procura ar puro e leva com um cinzeiro em cima. Numa cadeira de vime, junto às cinzas mais próximas, estavam uma senhora e um senhor. Ali, é habitual verem-se académicos, cientistas, politólogos, antropólogos, estudantes e estudiosos de História. Regra geral, é gente que, metendo os olhos em livros e a cabeça num computador, vive com a sensação sequiosa de que vai mudar o mundo. Não é coisa pouca, e é apaixonante, o que choca é perceber que o mundo nunca mudou.

Foi o que eu percebi com aqueles dois. Já deviam andar na casa dos 60 e nas mãos ele tinha uma coisa que eu achei que já tinha morrido há muito. Quando era pequena, também eu lhe metia os olhos na livraria do meu avô, e lia as perguntas, e satisfazia as dúvidas, e abria as janelas para o entendimento e o futuro. Quem ainda não percebeu que falo da revista Bravo!, e o ponto de exclamação não é gralha, passou as últimas décadas a dormir. Os dois, já com idade para saberem o que a vida é, liam as perguntas do correio sentimental, que, aqui entre nós, só perdiam para as respostas. Como aquilo era meio gráfico e metia gente abaixo dos 18, algures entre o aventureira e o confusa, não me vou pôr aqui a citar as sem-vergonhices que dali vieram.

Voltei a entrar na sala de leitura e pesquisei no Google pela revista, vindo-me à consciência que, coitada, houvera falecido em toda a glória, corria o ano de 2003. Passou a ser ainda mais bizarro que aqueles dois tivessem a revista nas mãos, que ainda por cima tinha uma fotografia do Gonzo dos Excesso na capa. Podiam estar a preparar-se para o concerto em Maio, mas nem para isso tinham idade. E também não havia grande justificação para terem aquilo nas mãos, mas eu sou um agente silencioso, millennial que não gosta de confronto, prefiro julgar pela calada, e calada fiquei. Longe de mim ir lá perguntar-lhes que raio havia de errado com eles. Meti a cabeça no trabalho e fui à minha vida.

À noite, fui jantar ao Oriente e, ao passar no Altice Arena, onde Gonzo e os amigos voltarão a dizer a Portugal que são aqueles que nos querem – e mais ninguém –, contei isto aos meus amigos. Certo, a Bravo! era um fantasma do passado, certo, as perguntas que ali vinham nem ao diabo faziam lembrar, mas o David resolveu dizer-me que a vida, afinal, não tinha mudado assim tanto. A mãe dele comprava a Bravo! para adultos, que a minha memória de infância ainda guarda. Fazia montras de papelarias, era uma revista, chamava-se Maria. Eu não fazia ideia de que isso ainda existia, muito menos que já contava com uns gloriosos 44 anos. E muito menos que, depois de Shakespeare, Camões, Barnes e revistas para adolescentes nos anos 90 e à entrada do milénio, ainda havia quem recorresse a um consultório de sentimentos via correspondência meio anónima. Eu, que já li Florbela Espanca e Nicholas Sparks e estou para lá de bem casada, é que estava em boa posição para ser consultada, abrindo os olhos à gente, encaminhando-a na vida.

Acabámos por procurar exemplos, concluindo que, perante a chispa da paixão, ter 11 ou 60 dá no mesmo. Perante uma coisa destas, ninguém amadurece. Se, na Bravo!, a Rita, 12 anos, residente no Barreiro, queria saber se o facto de o Fábio do 6ºD ter deixado de falar com ela e começado a andar com outra significava que já não a amava como dantes ou se, pelo contrário, aquilo era um mistério masculino, natural nesse insondável mundo cheio de ambiguidade e testosterona, e se ela devia lutar pela hipótese de se amarem para sempre, na Maria a dona Rosa, 57 anos, da Damaia, viúva, queria saber se o Roberto, que não deixava de viver com a mulher com quem tinha dois filhos e casara em novo, e de quem afirmava estar divorciado, e que tinha horas para chegar a casa, gostava dela tanto quanto lhe dizia no Messenger. Num e noutro lado, as respostas haviam-se alongado até ao escusado. É um quem sabe se, é um o amor tem razões que a razão desconhece. Eu, que acho sempre que a língua existe para um efeito, que mais vale dar a resposta e pronto, que para quê engonhar, Santo Deus, que é melhor dar logo o que é pedido, que não adianta andar às voltas, que a verdade pode chegar de rompante, que não faz sentido ir construindo devagar uma emoção, que é terrível que o leitor ou ouvinte chegue à conclusão antes de esta ser apresentada, que meter demasiadas palavras é uma perda de tempo, um desrespeito pelo outro, um estúpido enamoramento pela própria voz, insuportável, tedioso, que é um testemunho inominável de falta de talento, sendo prova disso mesmo estas últimas linhas, faria ali um trabalho que primasse pela eficácia. Elas perguntariam: “Será que ele gosta de mim?”. E comigo não ouviriam um: “Ele pode estar em conflito com os seus sentimentos, e pode ainda não ter tido a coragem de avançar para uma história que o complete, preferindo, por isso, a miúda que é da turma dele e que o ajuda com o trabalhos de casa de inglês ou a mulher com quem vive há 40 anos, não havendo prova do divórcio, precisamente porque a paixão assusta e o salto para isso pode causar-lhe a medonha ansiedade do amor a sério.” Em vez disso, o meu consultório sentimental nem tough love teria, seria só mesmo tough: “Não. Deixe de ser estúpida.”

Posto isto, e tendo já nós mudado de assunto, o meu amigo David perguntou ao grupo o que é que achávamos sobre a vida dele. Tinha tido um encontro nas docas de Santo Amaro com uma miúda de Arroios. Aquilo correra muito bem, tinham comido pizza a olhar para o rio, e ele depois levara-a a casa, e até saíra do carro com ela. Ela não o convidou para subir e, depois disso, não lhe respondeu às mensagens nem lhe atendeu os telefonemas. Mas toda aquela noite tinha sido promissora. E, agora em frente ao Tejo, maculado pela esperança de quem vê o rio de Lisboa à frente, lá nos perguntou: “Será que se está a fazer de difícil por ter gostado tanto de mim que não quer estragar tudo?”

A Teresa respondeu-lhe assim: “É possível. Às vezes, as pessoas fazem isso. Não conseguem lidar. Pode estar a ver se isso é mesmo a sério. Continua a mandar-lhe mensagens para ela saber que estás aqui.”

Eu, que pelos vistos sou amiga de adolescentes que não distinguem um amante de um stalker, disse-lhe só, como quem ganha currículo para um dia ganhar a vida no Consultório Sentimental da Bravo!, extinta, ou da Maria, de vento em popa: “Caraças, puto. Não.” Acho que mais vale ir direta ao osso. Para quê dizer-lhe que ele até podia ser muito simpático, mas que tinha o nariz torto?


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.


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