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Sair de casa, pegar em foices, ancinhos, pás e mexer na terra para que o espaço que é partilhado por todos fique mais agradável. É este o mote que leva a que os moradores dos bairros Marquês de Abrantes, Salgadas e Alfinetes, em Chelas, Marvila, se juntem.
Juntos e com o apoio do grupo Sê Bairrista, que inclui várias instituições locais parceiras, estes moradores querem dar vida aos bairros, transformar os espaços comuns e reforçar os laços de vizinhança. Agora, estão a organizar um festival (nos dias 31 de março e 1 de abril) para mostrar à cidade tudo o que já mudou nos bairros onde moram.

O que acontece quando se unem vizinhos e arquitetos?
A mudança começa a acontecer quando se pensa que o espaço por que passam todos os dias é de todos e, por isso, todos devem contribuir para que continue bem cuidado.
“Estes canteiros estavam sempre sujos cheios de lixo e era muito feio de ver”, diz Maria José, uma moradora de 74 anos do Bairro dos Alfinetes. Este sentimento era partilhado por todos e começou a ser discutido nas reuniões promovidas pelo grupo Sê Bairrista – um projeto do qual fazem parte a Rés do Chão, a Gebalis, a Biblioteca de Marvila, o Grupo Comunitário 4Crescente, a Santa Casa Misericórdia de Lisboa, a Câmara Municipal de Lisboa e o Programa Lotes ComVida. A iniciativa, que celebra este ano o seu quinto aniversário, tem como objetivo promover um melhor espaço público e incentivar os laços de vizinhança.
Nas várias reuniões deste grupo, são discutidos os problemas dos bairros e propostas várias soluções para implementar no espaço que é de todos. “Tentamos dar mecanismos e ferramentas que permitam que haja um pensamento crítico de toda a gente sobre o espaço e assim uma opinião bem formada para que se vá construindo uma solução coletivamente”, começa por explicar Margarida Marques do atelier de arquitetura Rés do Chão.
“Por exemplo, quando queremos criar um jardim , estudamos os vários tipos de jardim que existem e questionamos: vai ser um jardim para estar ou com outra finalidade”, explica a arquiteta. Mas muitas vezes estas reuniões começam por ser a identificação de algum problema. “Às vezes, os moradores sabem perfeitamente o que não querem, aquilo que não está bem e não é tão claro saber o que pretendem”, acrescenta Bruno Guimarães, da Rés dos Chão.
Feita esta auscultação, cabe ao grupo de arquitetos dar contexto ao problema e com o seu conhecimento ajudar a “hierarquizar, perceber o que é possível fazer, apresentar orçamentos, planos e possibilidades”, explica o arquiteto. Neste “puzzle em construção” que é a discussão participativa dos moradores dos Bairros, o objetivo é que se “abram possibilidades para chegar a ações concretas”.

E, nos cinco anos de vida do Sê Bairrista, já há mudanças bem visíveis nos Bairros. Os canteiros que eram praticamente espaços abandonados e depósitos de lixo são agora jardins com rosas, oliveiras, heras, ervas aromáticas e chás para que para além de haver mais cor e cheiro a primavera, haja também uma horta comunitária e são só um exemplo da mudança.
Um esforço que é de todos, mas falta “malta jovem”

Dois canteiros do Bairro dos Alfinetes têm outra cara desde novembro.
“Decidimos entre todos colaborar para pôr isto mais bonito”, diz Maria José. A escolha das plantas foi votada e, agora, com os primeiros sinais de primavera é tempo de fazer a manutenção do espaço. “Isto está cheio de ervas daninhas e se não as arrancarmos nada vai crescer aqui”, explica Lucília – ou Cila, como é tratada pelos vizinhos – de ancinho na mão e já com um saco cheio de ervas.
É esto tipo de mobilização para manter o espaço cuidado que o Sê Bairrista pretende que os moradores tenham.
“Queremos que estes projetos resultem numa autonomia em termos de manutenção para os moradores sentirem que isto é de facto deles”, diz Bruno Guimarães. E a manutenção do canteiro prova que isso está mesmo a resultar. Mas muitos dos habitantes queixam-se que podia haver mais envolvimento, sobretudo dos mais novos.
“É difícil os jovens virem para isto”, queixa-se Ernesto Serafim, reformado e com experiência em agricultura, visto como o líder do grupo. “O espaço é mais deles do que nosso. Trabalhar a terra é uma arte, mas apanhar ervas daninhas qualquer um pode fazê-lo”, diz, enquanto mostra os primeiros rebentos de lúcia-lima e hortelã no canteiro das ervas aromáticas. “O bairro é de todos e as ruas são de nós todos, falta malta jovem aqui.”
João Micaela, esposo de Cila, junta-se à conversa. Apesar de não estar com as mãos na terra, devido a uma operação, toma o papel de “fiscal de obra”. “É preciso que todos colaborem. Quanto mais união houver, melhor, mas falta a participação dos mais novos que teimam em não aparecer”, diz.

Uma comunidade mais forte e unida
Apesar de faltar juventude, o certo é que Margarida e Bruno fazem um balanço positivo do projeto. Assinalam o grupo de pessoas que hoje se mobiliza para fazer a manutenção. Os laços de vizinhança estão reforçados. “Essa parte é fundamental porque o espaço público é o espaço que é comum e é o espaço onde as pessoas se podem encontrar, apesar das diferenças. Projetos como estes ajudam a encontrar esses pontos, mas também a identificar problemas comuns e soluções discutidas por todos”, diz Bruno.
Consuelo Leite, da Gebalis (umas das instituições parceiras, para além da Biblioteca de Marvila, Junta de Freguesia e autarquia), diz que os processos participativos têm contribuído para uma “comunidade mais forte e unida”, derrubando-se barreiras invisíveis que tornavam os bairros espaços nada coesos.
“Muitas das pessoas que vivem no bairro dos Alfinetes não vinham ao Marquês de Abrantes e isso agora já acontece muito menos e as fronteiras estão muito mais esbatidas”.
Para além disso, a mobilização dos vizinhos é cada vez mais reconhecida por todos os moradores. “Mesmo quem não participa, reconhece o papel ativo que a população tem”, diz a técnica da Gebalis.
E é este dinamismo que faz com que se concretizem vontades para além do Sê Bairrista. “Por exemplo, graças à expressão coletiva, está a ser discutido com a Junta de Freguesia a construção de um parque urbano junto à linha de comboio e isto não acontecia se fossem só dois moradores a falar”, explica Consuelo.
“É mais fácil ouvir uma voz coletiva do que uma voz individual. As pessoas acabam por se organizar de maneira que possam transmitir uma mensagem a quem tem de ouvir”, acrescenta Bruno.

Por norma, participam sempre entre 20 e 30 pessoas. Podiam ser mais, mas as “pessoas também têm a vida delas” e as reuniões são muitas vezes em horário pós-laboral, altura em que muita gente está a cuidar dos filhos ou dos pais. Acresce a isso também o facto de “não haver uma cultura de participação em Portugal”.
“Eu participo nestas atividades porque há pessoas que não são daqui e que quando vem cá, querem torná-lo melhor, então eu também o posso fazer”, diz Ernesto. Para além disso, as atividades proporcionam momentos de convívio que são ótimos para “dar um dedo de conversa e criar-se laços de família quase”.
Para além dos dois canteiros, o Sê Bairrista já promoveu mais mudanças na freguesia de Marvila. Percebendo as preocupações e necessidades da comunidade, construiu-se um parque infantil na Praceta A. Apesar de todo o processo ter tido a intervenção dos moradores, o projeto final não foi exatamente igual ao planeado inicialmente, mas as necessidades da população foram atendidas.
Também a praceta B foi remodelada de modo a tornar o espaço mais homogéneo. Foi criado um canteiro que integra os respiradores das garagens dos lotes, pintaram-se muros e foi criado um banco virado para sul. “Percebemos que as pessoas se sentavam nos muros laterais da praceta para apanharem sol e criamos este sítio para se sentarem”, explica Margarida Marques.
Um festival para inspirar
Para se inspirarem e conhecerem o que melhor se faz a nível comunitário, os moradores fizeram várias visitas de estudo a outros projetos de participação comunitária, como hortas, recuperação de património, recuperação de equipamentos públicos, criação de novos espaços, realojamento de pessoas em condições vulneráveis.
E aí pensaram: “Por que não juntar todas estas ideias e promover um debate num só sítio?”, explica Margarida Marques.
Assim, decidiram organizar o Festival Co.Cidades que acontece nos dias 31 de março e 1 de abril, espalhados pelos vários bairros. A partir da recolha de ideias de todos os pontos de país, o evento vai promover o debate sobre o desenho conjunto das cidades, mostrando o que melhor se tem feito com a participação da comunidade.

“Queremos criar sinergias, debates e promover a reflexão”, afirma. Para isso, haverá uma exposição de projetos “representativos de várias zonas do país, sejam de pessoas anónimas, entidades públicas ou instituições do terceiro setor”, diz Margarida Marques, acrescentando que “tanto pode ser a construção de um canteiro, como um PDM participativo”.
No festival, haverá uma exposição que vai dar a conhecer 12 iniciativas de desenho e construção de espaços coletivos com participação cidadã no contexto português. Serão disponibilizados “materiais e apoios técnico para a execução dos projetos participantes na exposição”, explica a responsável.
Haverá também uma outra exposição para mostrar as muitas mudanças que têm acontecido em Chelas. “É um momento de celebração da nossa união”, remata o vizinho Ernesto.
* Daniela Oliveira nasceu no Porto, há 22 anos, mas a vontade de viver em Lisboa falou mais alto e há um ano mudou-se para a capital. Descobrir Lisboa e contar as suas histórias sempre foi um sonho. Estuda Ciências da Comunicação na Católica e está a fazer um estágio na Mensagem de Lisboa. Este artigo foi editado por Catarina Reis.

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