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É da última sala de um prédio nos fundos do Mercado do Forno do Tijolo que Lisboa está a falar com o mundo desde 2017. O espaço cedido pela Junta de Freguesia de Arroios abriga os estúdios da Rádio Movimento, uma emissora que nasceu pirata em 1982, foi impedida de continuar a operar em 88 e, quase três décadas depois, renasceu em formato digital.

Uma emissora virtual com uma atividade bem real, emitindo regularmente 36 programas “de autor”, um trabalho que envolve 56 pessoas, entre locutores e técnicos e colaboradores – a maioria deles até então sem alguma experiência anterior em rádio, mas que encontraram aqui uma forma de se expressar e colaborar com a sociedade.
À frente de todos eles está o experiente radialista Vítor Machado, 59 anos, um dos oito fundadores da primeira versão da Rádio Movimento e principal responsável pelo seu regresso 29 anos depois. Um antigo filiado do Bloco de Esquerda desencantado com a política que viu na volta ao microfone uma forma de se reencontrar consigo mesmo.
“Era um faz tudo no partido, o motorista, o responsável pelo som, pela iluminação, pelas transmissões no grande ecrã, quem pintava as faixas e os cartazes. Foi assim por uma década, até ser demitido. No mesmo dia, confuso e triste, recebi uma fotografia no telemóvel. Era antiga formação da rádio. Olhei todos aqueles rostos e não reconheci justamente o meu”, conta.

Não podia ser uma mera coincidência. Onde estava o Vítor sorridente e confiante da foto de décadas atrás? Sem emprego, sem perspetiva e desamparado aos cinquenta e poucos anos, a fotografia que hoje estampa o perfil da emissora no Facebook foi então recebida como uma epifania, o sinal de que a Rádio Movimento deveria voltar.
De que o antigo Vítor deveria voltar.
Tudo começou com um emissor amarrado a um “pau de roupa” na chaminé
A primeira pessoa que Vítor procurou foi o amigo e antigo integrante da Rádio Movimento, António Diamantino, outro dos oito rostos na foto. “Foi ele quem criou a rádio, em 1982. O Diamantino sempre foi um engenhocas, gostava de montar e desmontar as coisas. Compramos um kit radiofónico pelo correio e ele montou o primeiro transmissor da rádio”, recorda.
Um transmissor com dez centímetros de altura por dez centímetros de largura, com uma antena acoplada. Uma pequena caixa que era amarrada ao “pau da roupa” e alçada à chaminé da casa do amigo Diamantino no Bairro da Serafina, em Campolide, onde as primeiras emissões ocorreram, nos fins de semana daquele ano de 1982.
“Gamávamos o pau da roupa às escondidas e a mãe do Diamantino ficava maluca a procurar por ele o fim de semana inteiro”, conta Vítor, entre risos. Conectado ao transmissor na chaminé da casa estava uma pequena mesa de som e à essa, um tocador de fita cassete, um gira-discos e dois microfones. Estava montada a primeira rádio pirata de Lisboa.
Apesar da pequena potência de cinco watts do transmissor comprado pelo correio, graças ao pau da roupa fincado na chaminé da casa num dos pontos mais altos de Lisboa, a Rádio Movimento podia ser ouvida num raio de dez quilómetros, sintonizada no 98 da frequência modulada (FM). E não tardou a se tornar bem ouvida.
“Havia poucas emissoras em Lisboa, a Antena 1 e 2, a Rádio Clube, a Renascença e a Comercial. Éramos uma novidade, pois desde logo tentamos fazer um radialismo diferente, sem ficar apenas a tocar música. Era uma rádio de autor, onde quem estava à frente do microfone tinha autonomia para fazer o programa da forma que entendesse”, explica Vítor.
Um ADN que se mantém na versão digital da antiga rádio pirata.

Dias felizes até a última emissão
A residência de Diamantino foi sede da rádio até 1985, quando a Movimento se mudou para a casa de Vítor, também no Bairro da Serafina, para alívio da mãe do amigo, que passou a contar com o pau da roupa aos fins de semana. “A minha casa tinha uma grande arrecadação, onde montamos um estúdio com isolamento acústico e régie”, explica.
A nova sede ficava num ponto ainda mais alto de Campolide, escapando de obstáculos naturais e artificiais, como o paredão do Aqueduto das Águas Livres. Graças ao talento do Diamantino, o pequeno transmissor teve a potência triplicada e assim a Rádio Movimento passou a ser ouvida também na outra margem do Tejo.
Começava o período mais próspero da emissora.

Em 1986, a rádio muda-se novamente, a operar nas instalações do Centro de Recreio Popular de Campolide, aí já com torres, antenas e uma estrutura comercial. “Foi a primeira vez que deixamos de pagar para trabalhar. Num ano, faturamos em publicidade o que hoje seriam cerca de cem mil euros”, calcula Vítor.
É justamente dessa época a emblemática fotografia, tirada com os oito amigos perfilados diante do prédio do Centro de Recreio Popular – um mais recuado, à porta – os demais a segurarem uma faixa com o nome da Rádio Movimento.
Também nessa altura, o cenário radiofónico de Lisboa contava com dezenas de outras rádios piratas – ou “livres” – o que acabou por chamar a atenção do Estado, pressionado pelas emissoras de atuação regular. Até que em fins de 1998, um decreto determinou o fim das operações das rádios piratas em todo o país.
A última transmissão da Rádio Movimento deu-se em 24 de dezembro daquele ano, o prazo final para o fim das atividades. “Era véspera de Natal e juntamos quem foi possível entre todos os que haviam trabalhado connosco, inclusive alguns entrevistados, para uma confraternização em tom de despedida”, recorda-se Vítor.
Precisamente às 23h59, no derradeiro minuto permitido por lei, o mesmo Diamantino que pôs a Rádio Movimento no ar carregava o botão que silenciaria a emissora.
Uma nova vida digital
Quase três décadas depois, António Diamantino teria novamente o prazer de carregar noutro botão e recolocar a Rádio Movimento no ar, ao lado do velho amigo Vítor Machado. Os dois, um dos quatro remanescentes entre os oito da fotografia, os únicos a reviverem na internet os dias de rádio pirata, Vítor como diretor, Diamantino como coordenador técnico.
“Uma rádio na internet tem a grande vantagem de não conhecer fronteiras. Pela primeira vez, a programação da Movimento pode ser ouvida em qualquer lugar do planeta”, comemora Vítor, que nessa nova vida da Rádio Movimento reconciliou-se com a atividade política através do Poder Local, uma das rubricas da programação.

A programação conta com 36 programas, entre eles o Passagens, comandado por Margarida Branco, uma livreira por afeição, antiga proprietária da icónica livraria Ler Por Aí, que não resistiu aos sucessivos lockdowns da pandemia e encerrou as portas no Intendente. Mantém a relação com os livros na emissora.
A Movimento orgulha-se também de ter sido a única rádio lisboeta a convidar todos os presidentes de juntas de freguesia a fazer um balanço do primeiro ano do atual mandato. “Nem todos vieram, mas o microfone estava aberto”, explica.
Um microfone que sempre esteve aberto às minorias. “Fomos a primeira rádio a ter um programa emitido por um surdo”, lembra Vítor. Na atual programação, há dois colaboradores que são cegos, Elisabete Palma, no programa A Hora da Amizade, e Pete Alves, que junto com Carla Flores, comanda o Disco e Daquilo.
Buscar uma certa vanguarda foi um dos caminhos da Movimento que, para se diferenciar das centenas de outras webrádios em funcionamento só em Portugal, inaugurou em 2017 a emissão de rádio com transmissão simultânea em vídeo.
“Fomos os primeiros a fazer streaming, anos antes da pandemia”, conta Vítor. Assim, além de ouvir a Rádio Movimento, é possível assisti-la. “Hoje, há várias rádios que fazem isso, mas fomos os primeiros a fazê-lo. O que é uma vantagem, pois se algum escritor vier falar de um livro, por exemplo, é possível mostrar a capa”, explica, sem esquecer uma ressalva crucial: “Mas, acima de tudo, continuamos a ser uma rádio.”
Uma festa em nome das novas vozes
A rádio sente a necessidade de se atualizar tecnicamente, mas por funcionar no velho espírito de colaboração dos primeiros anos de pirata, não tem recursos para isso. “Precisamos comprar uma nova mesa de som, para ajustar melhor os diferentes timbres de voz dos nossos colaboradores, além de novos microfones e outros equipamentos”, explica.
A solução encontrada foi celebrar o sexto aniversário de retorno da Rádio Movimento, no próximo dia 1 de abril, no Titanic Sur Mer com apresentações ao vivo de Sebastião Antunes, Ana Margarida Leal, Rife, BeDuet , Bela Gisela, entre outros convidados.
Uma festa solidária, com entrada gratuita (a confirmar pelo e-mail radiomovimento.producao@gmail.com), mas que sugere doações a partir de 7 euros para que se consiga o objetivo dos 3,5 mil euros da nova mesa de mistura. Uma ferramenta necessária para que, a partir da última sala no último prédio nos fundos do Mercado do Forno do Tijolo, a rádio se ouça melhor as vozes de quem leva Lisboa para o mundo.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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