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A imprensa da época retrata as filas à porta dos Porfírios em dia de chegada das novidades, década de 1960. Foto: Arquivo

Os Beatles já se tinham tornado mais populares do que Jesus Cristo (como disse John Lennon, depois de a banda ser condecorada pela Rainha Isabel II, o que levou ao boicote da banda pela mui católica Rádio Renascença) e Mary Quant transformara a minissaia num ícone da revolução sexual dos anos 1960, mas os jovens portugueses continuavam a vestir-se nas mesmas lojas bem comportadas a que iam os pais e até os avós. Ou a recorrer a modistas e alfaiates, sempre que a ocasião exigisse maior formalidade ou requinte.

Até que, em dezembro de 1965, em Lisboa e no Porto, tudo mudou e graças à visão empresarial dos irmãos Porfírio – Augusto, Luís e António – até aí conhecidos como “Porfírios das meias”.

Era ali, na Baixa de Lisboa, na Rua da Vitória, 55-65, onde pouco antes se lia a publicidade “Quem diz canteiros diz flores. Quem diz praia diz areias. Quem diz paixão diz amores. Quem diz ‘Porfírios’ diz meias“, que surgia o logótipo branco e preto – que lembrava um alvo de jogo de dardos – e o lettering “Por-fí-ri-os” (assim mesmo com as sílaba separadas para sublinhar a irreverência).

E as ruas de Lisboa não voltaram a ser mesmas.

Luzes psicadélicas, saias curtas e muita cor: a casa da moda dos jovens, servida por jovens

A loja chegou em dezembro de 1965, a Lisboa e ao Porto. Foto: Arquivo

A primeira novidade era o próprio espaço. Quer em Lisboa, quer no Porto – neste caso, a loja ficava na Rua de Santa Catarina, rua de grande comércio, sob a “proteção” da padroeira das costureiras. A inspiração vinha claramente das lojas de Carnaby Street, na swinging London dos anos 60. Dois pisos ligados por uma escada em caracol, luzes psicadélicas e muita música pop-rock – na loja do Porto, havia mesmo uma cabine de escuta de discos.

O que se encontrava nos expositores combinava com o ambiente: jeans à boca de sino, camisas estampadas com cores fortes para ambos os sexos, collants opacos coloridos e sobretudo muitas minissaias, cada vez mais curtas.

Tudo inspirado nas boutiques londrinas e quase sempre produzido nas fábricas de têxteis do Norte de Portugal. Além de uma vasta profusão de anéis, pulseiras, colares, cintos e carteiras como Lisboa nunca tinha visto.

O sucesso foi imediato como conta a atriz Helena Isabel.

“Sempre gostei muito de moda e rapidamente senti que aquele espaço era uma pedrada no charco. A própria loja era muito pop, quer pela disposição do espaço, quer pelo logotipo e até por ter gente muito nova a atender, o que era uma novidade no comércio da Baixa.”

Ali, enquanto jovem, Helena Isabel comprava muitas minissaias e blusas curtinhas de riscas, a que hoje daríamos o nome de crops.

“Os Porfírios anteciparam, ainda nos anos 60, o conceito da Zara: vendiam roupa barata, moderna e trendy e, durante muito tempo, não tiveram concorrência. Das lojas de pronto-a-vestir da Baixa de Lisboa era a única que tinha oferta aliciante para os jovens.”

As filas à porta eram uma constante, sobretudo em época de saldos e promoções. Com grande sentido de marketing, a empresa começou a promover eventos que atraíam grande atenção mediática e de público.

Foi o caso do concurso de Miss Minissaia, realizado no Carnaval de 1967, cuja final decorreu no Teatro Monumental: depois do espetáculo musical do ídolo da juventude ié-ié, a francesa Sylvie Vartan, 17 candidatas apresentam-se em palco numa gala conduzida pelas “estrelas” da RTP, Henrique Mendes e Maria João Aguiar.

Venceria a candidata que recolhesse mais aplausos do público, o que aconteceu a Maria Isabel Castelhano, ela própria empregada da loja, que se viu presenteada com 3000 escudos (o que, segundo escrevia o vespertino Diário de Lisboa na notícia sobre o evento, correspondia ao salário mensal de um professor de liceu) e dois bilhetes de avião para Paris.

O arrojo polémico num país em ditadura

Não se pense, no entanto, que estas novas modas eram consensuais.

Nesse mesmo ano de 1967 (cujo Verão ficou para a História por “Summer of Love“, em boa parte devido ao apogeu dos movimentos hippies nos Estados Unidos), a revista semanal Flama (de inspiração católica) escrevia em tom depreciativo:

“Repentinamente uma lojeca duma transversal entre a Rua do Ouro e a Rua Augusta, que durante anos e anos vendeu modestamente meias e peúgas, transformou-se radicalmente. Passou a vender baratíssimo camisas berrantes como as lá de fora. Calças boca de sino, casacões esquisitos, mini-vestidos. As empregadas encolheram não só na saia mas também na idade e houve bichas. Foi uma loucura.”

Esta reação era talvez a mais natural num país que ainda vivia sob uma ditadura que se estendia das instituições políticas à vigilância dos costumes e à regulação da intimidade dos cidadãos.

A moda e o movimento crido pela loja não foi unânime. Foto: Arquivo

Em 1952, data em que o bikini já se impusera nas praias de Miami, Acapulco ou Saint Tropez, o órgão oficial da Mocidade Portuguesa Feminina, a revista Menina e Moça, dava estes conselhos às leitoras:

“O teu modo de apreciar o fato de banho deve ser diferente. Corresponde ele aos princípios cristãos porque queres dirigir-te em todas as coisas? Ajuizarão de ti, quando to virem vestido, que te sentirás bem ou mal com certos maillots diamye dos teus irmãos ou do teu noivo. O fato de banho é… para tomar banho. Não andes a passear com ele, nem te deites na areia em posições descompostas.”

Maldiziam-se os decotes mais profundos e chamava-se aos perfumes filtros infernais.

Na mesma época em que a estilista italiana Elsa Schiaparelli dizia “o que Hollywood cria hoje, usaremos amanhã”, Molho de Faria, ideólogo da Ação Católica, referia-se nestes termos às modas femininas: “De muitas maneiras, a imodéstia no vestir pode ser provocadora de paixões dos mais baixos instintos. Vestidos muito acintados em que as partes do corpo facilmente sobressaem. Vestidos deficientes ou demasiado transparentes, em que a triste nudez se impõe… braços em plena carnalidade, etc. Tudo a transpirar lubricidade.”

A mesma atenção que era dada aos decotes femininos aplicava-se aos cortes de cabelo e à indumentária dos rapazes.

Na década de 1950, a revista Crónica Feminina insurgia-se contra os exemplos de insubordinação que atores como Marlon Brando ou James Dean davam aos jovens de todo o mundo.

Apesar da ditadura e da política de deliberado isolamento, o país ia mudando, pelo menos nas grandes cidades.

Em 1962, a greve estudantil na Universidade de Lisboa mostrou ao regime que as novas gerações estavam dispostas a lutar pela democracia. Na música, bandas pop-rock como os Sheiks, Chinchilas ou o Conjunto Académico João Paulo tornam-se alternativa ao nacional-cançonetismo que domina os Festivais RTP da Canção e boa parte das rádios portuguesas. Em plena “Primavera marcelista”, em 1971, realiza-se mesmo a primeira edição do Festival de Vilar de Mouros, em cujo cartaz aparecem nomes como o britânico Elton John e Manfred Mann.

A revolução de 1974 não mudou mentalidades por decreto mas abriu o país ao mundo. Às roupas mais coloridas e leves de quem chegava das ex-colónias portuguesas em África, juntava-se a liberdade corporal dos elencos das telenovelas brasileiras que, a partir de 1976, começaram a ser transmitidas na RTP.

Com a TV a cores, que chegou em 1980, a telenovela Dancing Days trouxe um choque de tons fluorescentes e brilhos a que muitos jovens aderiram com entusiasmo.

Memórias de um lugar que mudava Lisboa

Por outro lado, nesse princípio da década já a música pop-rock nacional conquistava audiências e as propostas ousadas dos Porfírios passaram a ter concorrência em boutiques como “Maçã” (a primeira loja de Ana Salazar, situada na Praça de Alvalade), a boutique “Tara”, a Loja Branca de Manuela Gonçalves ou Augustus.

Mas para a carteira de estudantes e jovens trabalhadores os preços convidativos dos Porfírios continuavam a ser imbatíveis.

A loja tornou-se referência de muitos jovens da época. Foto: Arquivo

É o que recorda o designer Rui Duarte, hoje a viver em Berlim, que diz ter sido conquistado pelo espaço desde o dia “em que esta se tornou a primeira loja” onde entrou sozinho. “Lembro-me bem da primeira compra que lá fiz: um blusão sem mangas, de algodão acolchoado double face, preto e amarelo. A partir daí, fiquei fã e cliente habitual.”

Quem também se lembra muito bem das idas regulares à loja é Laura Diogo, a popular menina “loura” das Doce, que começou a sua carreira como modelo, tendo sido mesmo eleita miss fotogenia no concurso Miss Portugal 1979. Hoje a viver nos Estados Unidos, Laura recorda:

“Claro que fui cliente! Há alguma adolescente daquela época que não fosse fascinada pelos Porfírios? Os saldos eram imbatíveis, mas em qualquer época era tudo tão giro e barato. Tenho saudades de tudo: da música, da decoração, da roupa…”. 

Das muitas peças ali compradas, a antiga cantora lembra com especial carinho “um casaquinho de malha branco com dois bolsos à frente. Era adorável.”

Também o consultor de Comunicação João Vilalobos recorda com assinalável precisão os artigos ali comprados na meninice: “Camisolas, daquelas de lã com a etiqueta de pureza Shetland, e com cores vibrantes que não se viam noutros lugares.”

Mas também a singularidade do espaço o marcou:

“Era uma mescla de luzes e sombras, de cheiro dos materiais com o das pessoas, muitas pessoas, o que era raro num país para mim novo (tinha chegado de Moçambique) e que me recebia sem a exuberância que nesta loja, como em poucos lugares, parecia reinar! À distância de mais de 40 anos, João acredita mesmo que, ali, “a minha mãe, que me levava pela mão, se sentia um pouco menos infeliz.”

Às camisolas de lã em tons vibrantes somavam-se os acessórios para mulher e homem e foram estes que, por volta de 1986, 1987, conquistaram o escritor e performer Leonel Ventorim:

“Eu era cliente não muito habitual, até porque não tinha muito poder de compra e não fui um jovem muito consumista. Mas penso que comprei lá a minha primeira pulseira de bicos inspirada nas usadas pelos punks. Mais tarde, compraria outras coisas como uma camisa ou um lenço, mas o que mais me fascinava era a própria loja em si, com um formato muito pouco comum nas lojas lisboetas da época, muito cheia de coisas, muito escura, mas ao mesmo tempo cozy.”

O fim das cores dos Porfírios

Também para a família de Leonel, que chegara do Rio de Janeiro (o pai tinha emigrado para o Brasil anos antes), os Porfírios eram um oásis de cor “num país muito cinzento e formatado, que ficava parado a olhar sempre que via uma peça de roupa um bocadinho mais arrojada.”

Este arrojo foi deixando de o ser, à medida que, bem entrada a década de 1990, a cidade e os seus hábitos de consumo foram mudando.

Com a abertura das grandes cadeias de fast fashion e de centros comerciais como o Colombo ou o Vasco da Gama (o Amoreiras abrira em Setembro de 1985), a Baixa foi-se esvaziando e a prática de lá ir às compras tornou-se coisa fora de moda.

Depois de anos de agonia, os Porfírios fecharam portas em Maio de 2001. Sem choro nem ranger de dentes dos seus antigos fãs porque o século mudara e a marcha do tempo não pode ser travada.

Mas digo-vos que é com um sorriso de ternura que abro uma gaveta e lá encontro o que resta de tardes de compras feitas na adolescência: uma camisa branca de folhos, uma carteira de forma bizarra, um par de perneiras de lã vermelhas, à moda das usadas na série de TV, Fame.

A etiqueta não engana e funciona como uma autêntica cápsula do tempo:  Leio Por-fí-ri-os Contraste e, por um instante precioso, volto a ouvir a voz de minha mãe. Diz-me, como sempre dizia, que nada daquilo tinha pés e cabeça.


Maria João Martins

Nasceu em Vila Franca de Xira há 53 anos mas cresceu na Baixa de Lisboa, entre lojas históricas e pregões tradicionais. A meio da licenciatura em História, foi trabalhar para um vespertino chamado Diário de Lisboa e tomou o gosto à escrita sobre a cidade, que nunca mais largou seja em jornais, livros ou programas de rádio.


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12 Comentários

  1. Também guardei muitas peças dos Por-fí-ri-os dos anos 70 e 80. Lembro-me de ver aquela blusa branca e tive umas perneiras iguais, mas em preto. É pena que não se encontrem fotografias do interior da loja em lado nenhum.

  2. Eu tive o privilégio de ir a fabrica dos por fi rios. Onde me fizeram um fato preto de calças altas justas e saqueta , igual a uma novela…

  3. Também estive naquelas filas….saudades! Muitas vezes, após as aulas, juntávamo-nos e lá íamos até aos Por- fi- ri-os!

  4. B. noite,
    Loja de excelência na rua Santa Catarina, por acaso o filho e pai ajudavam , mais em Lisboa tinha uma namorada, já lá vai os meus amigos compravam para ir à discoteca uma delas era a caminho de Valongo Arsnova era numa vivenda o DJ era top, na abertura.

  5. Em 1974,vim pela primeira vez a Lisboa vinda da ilha da Madeira também fui “aos Porfirios” fiquei deslumbrada, na Madeira não havia nada mas nada como essa loja assim fiz algumas compras, de volta à ilha fui para o liceu com as roupas e brincos e fui “sancionada” por uma professora e elogiada por algumas colegas, mas sentia me diferente para melhor…

  6. Não sei se tenho “saudades” daqueles tempos da ditadura, nem gostava que as minhas Netas o sentissem, mas aquilo era uma “loucura” trabalhava , como “paquete” (ontem office boy) e ao ir ou vir do Largo da Biblioteca Publica, tinha que passar nos por-fi-ri-os , todos os dias, trabalhava de 2ª. a sábado, das 10 ás 20 h , e sempre que passava á porta, não conseguia entrar, mas um dia pedi a independência e entrei, isto no começo dos anos 72/73 do sec. passado e sem autorização da minha mãe, entrei, vi , revi, escolhi uma “camisola” ( hoje seria tratada por t-shirt) e comprei (no tempo da ditadura) com a foto do meu ídolo da altura, um tipo chamado – Che Guevara. Bons tempos em que era possível trabalhar e comprar coisas. Desculpem qualquer coisinha

  7. Que bela reportagem, que li, reli, retive, recordei, até as palavras da M Mãe, como diziam acima “isso não tem jeito nenhum”, mas nós não concordavamos, e como era 1 prenda de anos, Ela até comprava 🙏obrigada Mãe, como vês ficou para a História, a nossa, a de Lisboa e Porto, e a de todos nós os jovens que hoje relemos e relembramos com muito carinho. Eu vou guardar no meus favoritos e no meu ❤️Obrigada Maria João 🙏bem haja

  8. Também eu entrei várias vezes na Porfirios no Porto, em plena Santa Catarina. Todos queriam entrar, ver, apreciar toda aquela luz, toda aquela cor. Principalmente as jovens.
    Usar uma peça da Porfirios era sinal de modernidade e bom gosto. Dava nas vistas, era única…

  9. Eu também lá comprei bastante roupa,lembro me de um casaco de malha bege com dois bolsos á frente e cinto,como eu adorava aquele casaco e calças á boca de sino,pretas,,e carreira á cobrador como assim era chamado , que saudades

  10. Frequentei e fui cliente da loja ” Porfírios” da Rua Santa Catarina, Porto. Era um estrondo, tinha as empregadas mais giras da cidade. Na passagem para a sala interior tinha um túnel muito escuro, depois tinha um espelho que deformava as pessoas. Era uma loucura, grande variedade de roupas, sempre os últimos êxitos musicais que podíamos ouvir. Um espetáculo, sempre á frente. Grande perda para a cidade, no entanto, a evolução dá no que dá.

  11. Tenho boas memórias da loja em Lisboa. A decoração, os vários espaços ligados entre si por túneis e escadas e aquelas peças de roupa a preços acessíveis que não encontrávamos em mais nenhuma loja da capital.
    Gostava de rever o interior da loja, por isso se alguém tiver fotos por favor partilhe-as.

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