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A passagem da fronteira do Afeganistão e a entrada no Paquistão era a única saída segura para nós. Após chegar à fronteira dos dois países e esperar mais de 5 horas, era inacreditável o número de passageiros que estavam na fila de espera sem poder atravessar a fronteira, porque os talibãs impediam todos de ir para o Paquistão.
Era meio dia e esperámos mais de 5 horas na mesma fila, e parecia que os taliban não permitiam a ninguém viajar e atravessar a fronteira e, por outro lado, obrigavam violentamente as pessoas a regressar a Cabul ou a outras províncias do Afeganistão de onde vinham.
A cada momento aumentavam os tiros para o ar e as pessoas que estavam perto da fronteira eram espancadas e os taliban ordenavam que regressassem da fronteira sob variados pretextos.
Como estávamos muito cansados e não sabíamos como acabaria tudo aquilo, perguntei a um dos taliban que ali estava porque é que o portão da fronteira não estava aberto aos passageiros. Ele disse-me com dureza: “querem fugir do Afeganistão, mas nós não vos deixaremos fugir”.
Enquanto esperávamos na fila, os taliban que usavam roupas diferentes entraram na fila e levaram consigo pessoas que esperavam na fila entre nós, e parecia que tinham levado os jovens que estavam sozinhos sem família. Não se sabia para onde os levavam.
Foi muito estranho e uma desilusão para mim que os taliban tivessem um comportamento tão rude e violento com homens, mulheres, crianças, e mesmo com as pessoas que estavam doentes, que se encontravam perto da fronteira, e deram várias desculpas para impedir que as pessoas saíssem do Afeganistão.
A noite caía lentamente e nós ali estávamos há 10 horas, exatamente no mesmo sítio de quando chegámos e não estávamos a conseguir alcançar a fronteira.
Estava preocupado com o sítio para onde iríamos se a noite caísse e quanto tempo teríamos de esperar. Chamei o meu amigo (o motorista) com quem tínhamos chegado à fronteira vindos de Cabul. Foi espantoso que desde o momento em que nos trouxe para a fronteira, não se tivesse deslocado em direção a Cabul e estivesse à espera de levar outro passageiro para Cabul. Perguntei-lhe, se chegasse a noite, se seria possível que Sama e Roya descansassem no carro dele?
Roya e Sama não se sentiam bem, e o tempo também estava muito frio. Perto da fronteira não havia hotel nem qualquer abrigo onde pudéssemos passar a noite. O motorista concordou e disse-nos que deveríamos ir ter com ele, que estava a cerca de dez minutos de distância de nós.
Enquanto procurava uma forma de sair da multidão de passageiros para chegar ao motorista, deparei-me subitamente com um jovem Talib que tinha cerca de 18 anos de idade, a quem os outros taliban chamavam comandante e que estava sempre a bater nos passageiros com um cano.
Ele aproximou-se de mim e perguntou-me: Para onde vai? Quer fugir do Afeganistão? Eu respondi: Não, veja, a minha mulher está doente e temos de ir ao Paquistão para receber tratamento, e a minha mulher não está bem e estamos à espera há dez horas. Roya disse-lhe em língua pashto que a nossa filha também estava doente (devido ao tempo frio, Sama adoeceu nesse dia) e que tínhamos de ir procurar tratamento porque não era possível no Afeganistão.
Mais tarde, aquele jovem Talib (comandante) perguntou-me: Tem documento de viagem? Tem documentos médicos da sua mulher? Eu disse-lhe: Sim, temos todos os documentos. Depois ele disse-me para esperarmos até nos chamar para irmos para o portão. O barulho das pessoas tinha aumentado porque estava a escurecer e era noite, e as pessoas estavam todas preocupadas com onde passar a noite e porque é que a fronteira não abria para os viajantes.
Eram 19h00 e estávamos à espera que a fronteira abrisse das 7h00 até às 19h00, mas a fronteira ainda não tinha sido aberta. De repente, o portão da fronteira abriu-se, e todas as pessoas correram para ele e nós também tentámos chegar ao portão da fronteira, mas infelizmente não conseguimos.
Passados alguns momentos, o mesmo Talib (comandante) chamou-nos para o portão da fronteira e nós fomos apressadamente e entrámos noutro local onde um grande número de viajantes tinha entrado antes de nós e estavam à espera do carimbo de saída do Afeganistão. Parecia que cerca de 500 pessoas estavam à espera.
De repente, deparámo-nos com outro Talib que nos perguntou como chegámos ali e, sem ouvir as nossas respostas, investiu na nossa direcção e começou a bater-me na cabeça e no rosto com um cano na mão e disse: “Tens de voltar para trás”. Mas tentei convencê-lo de que tínhamos entrado neste lugar com a cooperação dos homens dele.
Naquele momento, outro Talib que estava encarregado daquele lugar aproximou-se de nós e quis saber o que se estava a passar. Como ele viu a nossa situação e eu lhe falei de Roya, a minha mulher, que estava doente, ele permitiu-me entrar no escritório para carimbar os nossos passaportes. De qualquer forma, após uma hora de dificuldades e várias agressões por parte dos taliban, pudemos ir até ao portão da fronteira em direção ao Paquistão.
Mas verificou-se que muitas pessoas estavam à espera de ir para o Paquistão. Estávamos perto da entrada para o Paquistão, quando a porta se fechou porque já era noite e todos os funcionários da fronteira tinham saído, uma vez que o seu horário oficial tinha terminado.
Eram 8 horas da noite e não havia outra solução para nós, apenas tínhamos de esperar perto do portão de entrada para o Paquistão e também não havia maneira de voltar atrás. Decidimos ficar lá até ao dia seguinte às 8:00 da manhã, quando os funcionários fronteiriços paquistaneses chegariam ao seu serviço.
O tempo estava muito frio e há quase 24 horas que não comíamos nada e estávamos muito cansados. Mas, segundo alguns viajantes, tivemos sorte de conseguir chegar ao portão de entrada da fronteira paquistanesa em 24 horas e de ter um carimbo de saída no nosso passaporte. Outros passageiros disseram que só após 3 a 4 ou mesmo 5 dias e noites, chegaram aqui da fila de espera.
Foi uma noite inesquecível para mim, Roya e Sama, e não tínhamos ideia do que nos tinha acontecido, não tínhamos imaginado nada disto. Com a boca seca e o estômago vazio sem comida e água, só queríamos que a noite passasse, com aquele tempo frio.
Tínhamos trazido só um pequeno lanche connosco para a Sama porque não era possível trazer mais e pensámos que encontraríamos alguma comida para comprar lá, mas não havia. Sentámo-nos todos no chão sujo e cheio de pedras, absolutamente exaustos, e a Sama adormeceu no chão, mas a Roya e eu não conseguimos dormir.
Havia lá muitos viajantes que tinham todos diferentes histórias dos vários dias e noites que ali passaram. Um dos passageiros era uma senhora e parecia muito perturbada. Roya perguntou-lhe o que tinha acontecido? Ela respondeu: “Estávamos há vários dias à espera da passagem da fronteira no portão de Torkham. Embora tivéssemos passaportes, não conseguimos atravessar a fronteira, mas hoje conseguimos, mas infelizmente eu fui deixada para trás devido à multidão de pessoas. Agora fiquei neste lado da fronteira e os meus filhos e marido ficaram do outro lado. E não me deixaram atravessar a fronteira porque disseram que o horário de trabalho deles tinha terminado”.
Cada passageiro que lá estava nessa noite tinha narrativas diferentes e histórias dolorosas. Com todas as preocupações e tensões, também nós passámos a noite.
Vou escrever o que aconteceu no dia seguinte no próximo episódio.

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* Samim Seerat é refugiado afegão em Lisboa, onde chegou em novembro de 2021 com a mulher e a filha. Foi pai, novamente, no dia 7 de janeiro. Em Cabul trabalhava como executivo de media no grupo MOBY detentor da Tolo News. É também fundador de uma start up chamada Paiwast Health Services. Escreve na Mensagem sobre a sua experiência em Portugal todos os meses.