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A Mislene, coitada, veio para Portugal achando que isto era como o Brasil. Bem a vimos, a minha amiga Meijinhos e eu, completamente desgraçada numa videochamada no comboio. Nem phones metia, a dor era uma cascata a jorrar carruagem fora, e quem quisesse que a ouvisse, e quem não quisesse também.

De telemóvel em punho, abria os olhos à realidade. Do outro lado, estava a Daiane. A vida da Daiane é que era boa. Vivia em Potirágua, tinha acabado de casar, o pai comprara um carro novo ao seu Gregório do xerox. Já o tinha há duas semanas e só demorava dois ou três minutos a arrancar. Tinha sido baratinho, a cor é que não era grande coisa, mas a mala era grande e dava para levar para casa 50 litros de água filtrada sem esforço.

Aos sábados, fazia um churrasquinho com os amigos. No Natal, recebeu a família toda e ali ficaram juntos num calor danado. E a pobre Mislene de casaco na Europa, sozinha, abandonada, desiludida com um continente velho e triste.

Não se queixava apenas – chorava, pranteava, derramava lágrimas, fazia sair água pelos olhos, guinchava. Em Lisboa, dizia ela, era muito difícil fazer amigos. Fazia conversa, ninguém lhe dava troco. Contava uma coisa íntima qualquer, ninguém queria saber. Convidava para sair o moço da lanchonete, dizia-lhe para levar mulher, filhos, sobrinhos e primos afastados, mas ele fazia-lhe um sorriso que era puro fingimento e não saíam nunca os dois (os treze). Ela até achava que eram amigos (ia lá todos os dias, trocavam duas ou três frases), mas nada de nada, português não dava seguimento à vida.

Os colegas do escritório iam para casa depois de trabalhar, e mesmo durante o almoço estava cada um no seu smartphone, ou então a conviver com outros colegas que já tinham criado raízes na empresa estava ela no Brasil.

Um bocado irritada com a Mislene, que, feita sirene, me invadia os ouvidos com o drama da vida alheia, lá me compadeci por ela. É que eu bem sei o que é a vida. Por motivos parecidos, lá sofro do mesmo mal. Tenho muita dificuldade em fazer amigos, sendo o principal motivo para isso ninguém me aguentar durante muito tempo. Com ela deve ter sido igual, já que uma Madona chorosa sem filho morto nos braços é coisa difícil de aturar.

No comboio, eu e a Meijinhos bem tentávamos falar sobre isto e aquilo, mas o que se sobrepunha era o barulho vindo do lado. Não apenas irritava ter de ouvir a Daiane em alta-voz como incomodava ter de levar com a vida de alguém.

Ser português é um bocado isto, e ser lisboeta é muito mais: quem aparece vai e vem, e se não chatear muito não vai mal. Em segredo, que ninguém tem nada que ver com isso – embora eu depois venha contar tudo para o jornal –, lá tentávamos falar da vida em geral, ou de uma palermice qualquer em concreto, mas era impossível ouvirmo-nos a menos que também gritássemos. Ora, isso estava fora de questão.

Lado a lado, começámos numa guerra de mensagens no WhatsApp, que é o terreno onde a amizade se faz, se prova, se eterniza. E a primeira coisa que dissemos, claro está, é que aquilo era tudo treta. “Não acho nada difícil fazer amigos em Lisboa”, dizia a Meijinhos, e eu concordava, indiferentes as duas ao facto de praticamente não falarmos com mais ninguém o dia todo.

E então contei-lhe a história, e conto-a aqui também. Há muito, muito tempo, no tempo em que os animais falavam e eu era imigrante no Brasil, bem me vi a braços com a mesma situação. Ali posta depois do Atlântico, era difícil para mim ter com quem trocar quatro frases de conversa. Os nativos achavam-me fria, eu tremia perante a intimidade que me era arremessada à toa, os toques, os abraços, os minha querida, meu amor, os nossa, tive tanta saudade de você, os oi, meu amorzinho querido, o mel na voz, a paçoquinha no tom.

Era-me difícil fazer amigos porque não havia caminho a seguir, as pessoas eram amigas e pronto. Tudo me parecia uma traição à ideia de que uma relação é um edifício construído pedra a pedra.

Nesses tempos negros, cometi o erro – o desastre – de morar com uma italiana que achava que era brasileira. Não sei bem como é que aquilo sucedeu, mas de repente havia um eles e um nós. O nós era ela e o Brasil, o eles era eu.

Ora, eu mal abria a boca, ouvia música com phones, não trazia convidados, limpava a louça – em suma, era a colega de casa de sonho. Ela, ainda assim, conseguia ter espaço para ter ódio. Odiava-me por ter boas notas sem me matar a estudar, refilava porque eu passava demasiado tempo no ginásio e até o facto de eu não beber álcool lhe fazia confusão.

Quando me via ficar em casa a um sábado à noite com um livro, ia aos arames. “É preciso fazer festa, é preciso fazer festa!”, guinchava, mitigando qualquer vontade festiva que eu pudesse ter. Para mim, é bom de ver, festa era estar em casa sem ter de a aturar.

Aquilo era gente difícil, gente que achava que quem cozia bem a massa era um gatuno. Não sei bem como, a italiana tornou-se na campeã da socialização a sul do Equador. Ia à farmácia comprar paracetemol, saía de lá com o número de celular da farmacêutica. Ia à loja comprar incenso e pimba, lá vinha com a vida toda da lojista, assim como uma viagem marcada para Blumenau para as duas.

E aquilo pasmava-me: não apenas conhecia gente aos molhos como de repente sabia que a Kristiê tinha deixado o namorado, que a Cecília estava mal com o ex-marido, que o Rob tinha problemas com o chefe no trabalho, que isto e aquilo, aquilo e isto, tudo a acontecer ao mesmo tempo, longas conversas ao telefone, farra até às tantas. Era a vida que eu nunca podia ter, nem que me matasse para isso.

Um dia, a italiana convidou uma amigalhaça portuguesa para jantar lá em casa.

Eu estava sossegadíssima no quarto a ver se ninguém dava por mim. Eram muito, muito amigas, e eu já as tinha visto juntas várias vezes. Amizade a sério, épica, como há poucas no mundo. Juro. Por isso, quando a música do Cohen se me acabou nos ouvidos, fiquei muito espantada ao ouvir berros lá fora. Tirei os phones. Seria o apocalipse, uma cena de ciúmes, uma a descobrir que a outra lhe tinha engatado o namorado? Nada, foi bem pior do que isso.

A minha vontade de conflitos é mais ou menos a mesma que a de me atirar da ponte. Por isso, foi contra os meus impulsos que me atirei da ponte, que aqui significa ir à cozinha. Lá fui.

A amiga estava sentada à mesa, a italiana estava de pé, irada. Andava de um lado para o outro como um animal enjaulado. Meio a medo, para ver se não sobrava para mim, lá atirei um “Está tudo bem?”. E zás, foi a dica para a italiana começar a gritar comigo. Que não percebia os portugueses, que não sabíamos ser normais, que achávamos que sextas, sábados e domingos eram o mesmo que os dias de semana. Que tinha convidado a Mafalda para jantar, e que se partia do princípio que iam sair a seguir, mas que ela agora não queria, e era meia-noite, e tinham de ir embora, e que raio iam ficar a fazer em casa?

A Mafalda, meio a medo, lá explicava que ainda não tinha recebido o dinheiro da bolsa (alô, FCT?), que estava com os reais contados, que não queria meter o equivalente a quinze euros numa discoteca, e que, ainda por cima, nem gostava de música alta, corpos suados, gente de cerveja na balada. Perante isto, a italiana ia à loucura. Uns minutos depois, pareceu-me que aquilo ia acalmar. Claro, uma amizade a sério não se desfaz por dá cá aquela palha. Voltei para o quarto. Não deu nem dez minutos até estourar tudo na cozinha. Ia levantar-me, mas nem fui a tempo. A italiana bateu à porta do meu quarto, e com a batida abriu-a.

Ali estava ela sem convite, e ainda bem que eu estava vestida. Agora os berros eram comigo, mas de repente já éramos amigas. Foi clara: ia sair, não estava para ficar em casa, era saudável fazer festa, a Mafalda não queria ir (“problema dela!”), mas isso não era motivo para ela perder a chance de quebrar a cara, já não havia transportes, a Mafalda não tinha como sair do nosso bairro (isto era Florianópolis, onde pessoas moram no meio de morros), por isso, eu, se quisesse – se quisesse! –, que a pusesse a dormir na minha cama, porque com ela não dormiria de certeza, porque não estava para aturar aquilo, não tinha paciência para malucos, e agora era comigo. Se eu quisesse pôr a Mafalda na rua, por ela era na boa. A responsabilidade era da desgraçada que estava nos seus aposentos escondida a tentar ser transparente.

A história desta grande amizade terminou assim, com uma desconhecida a dormir na minha cama, e eu sem saber como raio é que sobrava sempre para mim mesmo quando estava sossegada no quarto a fingir que não existia.

Na semana seguinte, já a italiana tinha outra best friend forever, coisa que também deve ter durado uns quatro dias. Daí que, da minha parte, até entenda o problema: está em procurar-se quantidade e não qualidade. Está em querer saber-se o nome de mil homens e o coração de nenhum.

Quase deu vontade de ir lá dizer isto à Mislene: “Não procures no sítio errado, não percas tempo à toa. Isto é como o amor: chega uma chama, constrói-se um fogo. Esquece o tipo casado do café, ele tem a vida dele, decerto já fez amigos, és uma cliente igual às outras. Não peças o número de telefone se não tens nada em comum, se ainda não tiveste tempo de gostar. Ainda acabas sem transportes públicos a dormir na cama da desconhecida que, por puro azar, vivia com a tua grande amiga. Vinte é impossível, quinze é demais, dez é exagero. Abdica do entulho, arranja uma Meijinhos e não chames amigo a alguém por quem não estiveres disposta a dar um braço.”


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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