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Recentemente, por ocasião do lançamento da antologia Esse Fado Vaidoso – de que, com a fadista Aldina Duarte, sou autora –, tive o privilégio de assistir a uma lição admirável sobre a poesia no fado por aquele que é hoje seguramente a maior sumidade na matéria: Rui Vieira Nery.

Todos os que ali estavam ficaram mesmo de papinho cheio – incluindo os que não são grandes apreciadores da canção de Lisboa –, até porque o professor começou por falar das letras do fado quando este não passava de uma canção do bas fond lisboeta (e a tónica estava então nas questões sociais), passando depois aos fados políticos da República, aos fados ligeiros da Revista, à abertura das casas de fado com o aparecimento de magníficos textos de poetas populares (também já antologiados por Daniel Gouveia e Francisco Mendes) e, em meados do século XX, ao recurso à poesia dita erudita, que inicialmente se traduziu sobretudo no repertório de Amália Rodrigues, a fadista que, com a colaboração do compositor francês Alain Oulman, começou a procurar e cantar poesia publicada – de Camões a Régio, de António Botto a Manuel Alegre – e a levar poetas como Pedro Homem de Mello ou David Mourão-Ferreira a escreverem expressamente para ela.

É esta poesia que se antologia em Esse Fado Vaidoso, que poderia ser um volume com o dobro do tamanho se tivéssemos podido fazer um tijolo, mas que constitui a amostra justa e pretendida para mostrar como letras mais literárias foram ocupando o espaço de outras que haviam sido canalhas, desgraçadinhas, reivindicativas, ou então simples como quadras de manjerico, embora muitos dos melhores fados de sempre venham de gente que por vezes mal sabia ler, e não necessariamente de escritores consagrados.

Com os tempos, o fado (especialmente aquele que fala de toiros e cavalos, mas não só) pode ter ganho uma marca aparentemente machista ou marialva; mas a verdade é que, mesmo quando a saudade, a traição e o abandono se tornaram os seus temas de eleição (também porque assim se fugia mais facilmente à censura), quase sempre é a mulher que sai por cima – e, se não sai, é geralmente por sua própria opção.

Vem isto a propósito de eu ter escrito há tempos uma letra para um intérprete masculino que cabia na perfeição no figurino do fado tradicional e era, além disso, bem-disposta e brincalhona: falava de uma fada-madrinha que todos os dias, enquanto o fadista estava a trabalhar, lhe cuidava da casa; e de tal forma deixava tudo num brinquinho, tornando a sua vida tão confortável, que ele só desejava que, um dia, ela se esquecesse da varinha de condão lá em casa para a fazer aparecer e se casar com ela.

Inocente, dirão alguns – e era o que eu pensava ao escrevê-la, mas…

O artista que me pedira a letra recusou-a, explicando que aquelas palavras podiam ser ofensivas e insultuosas para as mulheres, que se sentiriam reduzidas ao papel de funcionárias domésticas…

Numa altura em que cada vez mais fadistas se encostam a outros géneros musicais, afastando-se das raízes da canção portuguesa por excelência, será que as letras do fado irão sofrer uma nova transformação, agora devido ao jugo do politicamente correcto?


Maria do Rosário Pedreira

Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.

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