Sempre ouvi dizer que um sopapo bem dado a uma criança na altura certa é mais eficaz do que muita reprimenda; mas o meu pai – que foi sempre demasiado comodista – nunca se deu ao trabalho de nos repreender, quanto mais de nos chegar a roupa ao pêlo, e a minha mãe, que conhecera a mão pesadinha da sua, também não era apologista da violência física.

Tive, porém, direito a duas bofetadas maternas no rebentar da adolescência (e por terem sido só duas nunca me esqueci delas): a primeira porque pus os olhos em alvo enquanto a minha mãe me fazia um sermão dentro do carro, à porta da escola, já não sei porquê; a segunda porque lhe disse “Não mandas em mim” depois de ela se recusar a deixar-me ir com umas amigas à Feira Popular.

Tinha doze anos… e o estalo foi doloroso não só por ter sido bastante inesperado, não só por me reduzir à minha insignificância, mas especialmente porque as minhas colegas, com mães decerto mais liberais, iriam desfrutar daquele paraíso e eu não.

Sim, a Feira Popular era um autêntico paraíso, que eu visitava com a minha mãe, a minha tia e os meus irmãos todos os anos, sempre numa noite de Junho escolhida a dedo, com um dinheirinho que o meu pai nos metia no bolso para comprarmos rifas, darmos uns tiros a uns bonecos numa barraquinha ou pagarmos a experiência do frio na barriga no comboio-fantasma e na montanha-russa.

Saíamos de casa ao fim da tarde e íamos todos juntos a pé pela Avenida da República abaixo. Depois de comprarmos as entradas, procurávamos um lugar para petiscar – e regra geral acabávamos numa tasquinha onde, sentados ao balcão, nos serviam caldo verde com rodelas de chouriço, carne de porco frita nuns pratinhos de barro e, a terminar, uma tigela de arroz doce.

A seguir, a minha tia não prescindia da sua bica no Café dos Pretos, que tinha mesas e bancos feitos de troncos serrados e raparigas com capulanas e turbantes coloridos a servirem o café nuns copos de vidro minúsculos.

E então, sim, tínhamos carta branca para escolher as diversões, que incluíam, além das atrás referidas, os carrosséis com cavalos, os carrinhos-de-choque, o Poço da Morte, a sala dos espelhos que nos engordavam, encolhiam e matavam de riso e, claro, a inescapável roda gigante.

Se não estivéssemos já enjoados de tanto andar às voltas, podíamos ainda comer um algodão doce ou fazer um furo de chocolate Regina.

Por fim, já noite adiantada, precipitávamo-nos para a saída, entre o anúncio do premiado da noite com um trem de cozinha (em alumínio, bem entendido) e as luzes que piscavam alegremente para todos, miúdos e graúdos; e voltávamos para casa com a sensação de termos gozado ao máximo um intervalo na rotina que era sempre uma festa a repetir.

Tudo isto me veio à memória, numa catadupa de imagens sobrepostas, quando um dia destes parei na Avenida 5 de Outubro a caminho de Entrecampos e verifiquei que persistia aquele enorme vazio onde antes estava a nossa querida Feira Popular.

E, mesmo que agora eu já não tenha idade para levar um estalo e o Café dos Pretos tivesse de certeza um nome politicamente correcto e servisse café em cápsulas, a verdade é que daria tudo por poder voltar à feira com a minha família para comprar rifas e molhar o pão no molho da carne de porco frita. 

Sopapo bem dado devia ter sido dado oportunamente a quem nos tirou a Feira Popular para nos oferecer, no lugar de um parque de diversões, um buraco deprimente numa zona nobre de Lisboa.


Maria do Rosário Pedreira

Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.

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1 Comentário

  1. Também só levei um estalo da minha mãe, nada a ver com a Feira Popular. Fui lá pela última vez quando fiz 21 anos e deixou-me muitas saudades. Nunca percebi porque a tinham feito desaparecer, nem porque está ali aquele buraco. Todas as cidades têm parques de diversões e Lisboa bem o merecia.

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