Marta Guimarães Canário
Marta Guimarães Canário na sua mota. Foto: Pacheco Sequeira

Passei grande parte da minha infância e adolescência na margem sul do rio que brinda Lisboa. A Charneca de Caparica foi, por muitos anos, o escape da nossa família à confusão da cidade.

A casa era alugada ao ano e era para lá que íamos todos os fins de semana. Para um T1 onde tão bem cabia uma família de 4 + 1 cão, até porque se passava mais tempo fora de casa do que dentro dela.

Naquelas ruas feitas de terra batida, aprendi a andar (e a cair) de bicicleta. Saltei os muros dos vizinhos para lhes roubar fruta, subi às árvores, tantas vezes sem saber como descer. Esperei pela meia noite para ir ao pão, à pendura numa Famel.

Foi ali que me diverti. Que cresci.

Em 1991, tinha eu 15 anos, depois de um acidente na casa de Alvalade em Lisboa, onde morávamos, fiquei paraplégica.

Deixei de andar de bicicleta, deixei de saltar muros e de subir árvores, nunca mais apanhei boleia da Famel. Os dias na Charneca tiveram que se adaptar, mas não deixei de me divertir e continuei a crescer. Sentada mas feliz.

Vendemos a casa de Lisboa, onde morava num andar alto, nada preparado para nele viver alguém que se deslocava numa cadeira de rodas, onde ainda vivemos uns anos. Deixámos a casa de fim de semana, que também tinha demasiados obstáculos e ficámos na mesma zona, noutra casa, essa sim, adequada à nova realidade.

Avançando até ao ano de 2000, depois de acabar a faculdade encontrei um emprego onde a cadeira nunca foi um tema e a vida seguiu.

Mas em todos os anos de cadeira de rodas, e já lá vão mais de 30, foram muitas as alturas em que me senti privada da minha liberdade, sentimento causado pela perda quase total de autonomia, por não vivermos num mundo preparado para abraçar com dignidade as pessoas com deficiência.

A partir daquele dia em 1991, todos os meus “passos” passaram a ter que ser planeados com antecedência. Sair de casa sozinha sabendo exatamente se o restaurante tem degraus ou uma casa de banho adaptada. Não sair de casa sem ter antes a certeza de que o caminho é possível sem a ajuda de alguém (quase nunca é).

Não sair de casa sem antes ponderar se é seguro… sair de casa, passou a ser o “novo normal”.

De lá para cá, o mundo foi tentando evoluir. As mentalidades foram-se abrindo ao facto simples de as pessoas com deficiência terem que ser vistas e tratadas exatamente assim, como Pessoas. Mas sabemos que o caminho para conseguirmos encontrar uma sociedade equilibrada e justa ainda é assustadoramente longo.

Voltemos à minha Charneca de Caparica.

Desde que fiquei de cadeira de rodas e que deixei de poder circular nas zonas mais centrais da freguesia, habituei-me a passar por elas de carro. E foi assim, através daquelas quatro janelas, que percebi que, em particular nos últimos anos, as ruas estavam a crescer, que todos os dias abriam mais espaços comerciais, e que havia mais vida em cada esquina.

Foi numa dessas passagens de carro que reparei que deste progresso faziam também parte novos passeios onde, pela primeira vez, conseguia circular com a minha cadeira de rodas.

Enchi-me de coragem – sim, parece exagero mas é mesmo preciso coragem para, tantos anos depois depois, aventurar-me a circular sozinha pelas ruas – e, com a ajuda de um dispositivo elétrico que transforma a minha cadeira de rodas numa espécie de mota e me ajuda a fazer grandes distâncias sem cansar os braços, lá fui.

Nesse dia fiz coisas que todos vocês fazem e nem dão conta da sorte que têm por poderem fazê-lo: fui ao supermercado, passei pela farmácia e ainda entrei numa loja para comprar um gancho para o cabelo.

Cheguei a casa, renovada.

Voltei a fazer esse caminho muitas outras vezes. Numa dessas voltas, parei à porta de uma amiga de há mais de 20 anos, que só quando me ia buscar, me tinha na casa dela.

Noutra, arrisquei-me a ir mais longe, e fui conhecer os novos passadiços que atravessam a Mata dos Medos. Sítio mágico que só conhecia pela boca dos que nela sempre puderam passear.

Dificilmente conseguirei descrever o que senti enquanto a minha cadeira rolava por aquelas madeiras alinhadas que, sem tocarem na beleza da mata, me levaram até ao limite da falésia, e de onde pude assistir a uma das maiores maravilhas da natureza: o pôr do sol.

Num destes fins de semana, depois de ter percebido que, tal como nas zonas centrais da Charneca, já havia passeios daqueles na estrada das praias, decidi testar até onde conseguia ir.

Quilómetro após quilómetro, quando dei por mim, estava no centro da Costa da Caparica. E com o coração acelerado por ter conseguido lá chegar.

Fui avançando pela eterna “vila” da Caparica. Esquivei-me pela lota, subi ao paredão e por ali fui rolando, para depois voltar para trás pelo mesmo caminho e entrar na veterana Rua dos Pescadores.

Segui até à sua praça final, comi uma Conchanata – exatamente igual à de Alvalade, onde este gelado me fez as delícias por tantos anos – e voltei a descer pela Rua dos Pescadores. Ainda parei para dar duas moedas a um senhor que pedia na rua, acompanhado de três cães e um gato. Retribuiu com um saco cheio de alhos.

Continuei viagem, passei no supermercado e, posso confessar, na pastelaria Capote, onde comprei seis deliciosos pecados, desculpem, Claudinos, chamam-se Claudinos.

Agora doí-me a mão de tanto puxar pelo acelerador da minha “mota”. Mas abençoada dor, que tem sabor a autonomia, a normalidade, a vida, e ao melhor que ela nos pode dar:

Liberdade.

Se um dia me virem passar, apitem.


*Marta Guimarães Canário trabalha em comunicação há mais de 20 anos, área em que se licenciou. Quis ser pivot do Jornal da Noite da SIC, mas a tecnológica Novabase pôs-se no seu caminho e ficou com ela para gerir a área de Relação com os Media. Viveu 25 anos em Lisboa, cidade onde ainda hoje trabalha e onde passa grande parte do teu tempo, também em lazer. Paraplégica desde os 15 anos, é autora do livro “Ser Feliz é uma Escolha”. Tem 47 anos e pretende chegar aos 100. “No mínimo”, como costuma dizer.

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4 Comentários

  1. Que texto tão bem elaborado. Revi-me em cada passagem, em cada lugar. Tudo faz sentido. Muito obrigado pela partilha.
    E sim, “SER FELIZ É UMA ESCOLHA”.
    Mesmo!
    Cumprimentos.
    Luís

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