Rui Teixeira abriu as portas do comboio para espreitar lá para fora. Um desses atos irrefletidos, típicos de quem acabou de fazer dezassete anos, mas que lhe mudaria a vida para sempre: com a velocidade, a perna esquerda embateu contra um poste de rua, os braços agarraram-se ao comboio, o corpo acabou por ceder.
O acidente obrigou Rui a uma amputação transfemoral – ou seja, perdeu a perna.
Antes, praticava surf, skate e andava de bicicleta. De repente, viu o seu mundo encolher. Houve alguma revolta, é certo. Mas, embora o acidente lhe tenha roubado a perna, Rui não deixou que lhe roubasse a vontade de viver: “Depois do acidente, já sonhava com coisas que seriam impossíveis”.
Impossíveis? Talvez pudessem parecê-lo. Mas não eram.
Com a recuperação do acidente e uma prótese que lhe devolvia a capacidade de andar, Rui decidiu fazer aquilo que os amigos julgaram ser uma loucura: pegar numa bicicleta.

Essa “loucura” é hoje, trinta anos depois, uma das suas principais formas de deslocação. É montado numa bicicleta amarela dos anos 1980, decorada com os autocolantes das suas bandas de rock preferidas, e que ele próprio reparou, que Rui se move pela cidade. “Era uma antiga bicicleta do meu irmão, estava completamente desmontada, sem pedais, ferrugenta”.
Deu-lhe nova vida na Cicloficina Crescente, em Marvila, do projeto Gingada, inspirada pela Cicloficina dos Anjos, e que tem como grande propósito mobilizar a comunidade para andar de bicicleta. É ali, no bairro onde nasceu e cresceu, em Marvila, que Rui Teixeira, além de andar de bicicleta, ainda ajuda crianças a fazer o mesmo e a reparar as bicicletas deles. “Eu nunca fui mecânico, mas sempre fui curioso e por isso ajudo-os”.
Descobrir a bicicleta
É preciso recuar até aos quatro anos de Rui para o fazer reviver os primeiros passeios dele de bicicleta: foi com essa idade que herdou a do primo, três anos mais velho. O problema: as rodinhas infantis com as quais os amigos mais velhos gozavam.
O pequeno Rui pediu ao pai para se livrar delas e aprendeu a equilibrar-se em duas rodas apenas. Foi uma descoberta e um amor para sempre.
Com a idade, a bicicleta e a paixão foram perdendo a força, em função da vontade de conduzir um carro. Até que o acidente o reaproximou dos pedais.
Não voltou a correr, nem a praticar skate ou surf. “Felizmente a bicicleta era uma dessas coisas antigas que eu ainda podia fazer.” Bastava não dobrar muito o joelho (algo que também tem de fazer para conduzir), ter alguma paciência nas subidas e ter o pé preso no pedal.

Pedalar tornou-se um hábito que foi recebido com surpresa pelos médicos. De tal forma que até lhe pediram para dar umas voltas num pavilhão do consultório para terem a certeza de que era possível. “Já tinham visto outras pessoas com amputações a usar a bicicleta, mas não com amputações transfemurais”.
A vida foi seguindo o seu curso: Rui pedia a bicicleta emprestada aos amigos para dar umas voltas e tornou-se ritual percorrerem Marvila em direção a Santa Apolónia. O clique foi-se dando: um dia, ao pedalar até à Avenida da Liberdade, descobriu uma outra forma de ver Lisboa: “Vim e adorei, acabou por não ser assim tão cansativo: vim por onde quis, vi pessoas, ouvi vozes, coisa que não se ouve no carro”.
Entretanto, quando um amigo com uma deficiência de nascença começou a pedalar para o trabalho, Rui, que estava a trabalhar na zona da Expo, decidiu comprar a sua primeira bicicleta. Era o início de uma nova jornada, livre das horas desperdiçadas no trânsito da cidade.
Barreiras em Marvila?
Há já muitos anos que Rui pedala de um lado para o outro e de casa para o trabalho (o último como empregado de escritório). Por agora, está a receber uma pensão e a trabalhar como motorista para a Santa Casa da Misericórdia.
Todos estes anos da sua história traçam também a história da mobilidade na cidade, com as ciclovias a nascer lentamente onde não existiam. “Muitas surgiram tardiamente, e foram feitas de uma forma incorreta”, denuncia.
Apesar disso, Rui reconhece que tem havido uma evolução, até na forma como os automobilistas hoje lidam com a presença das bicicletas.

Mas há zonas esquecidas, como Marvila. Ainda hoje, apesar da Cicloficina e do espaço Kriativu de Nuno Varela, Marvila continua a ser uma das freguesias onde mais falta infraestrutura ciclável, e onde as bicicletas Gira e as trotinetas elétricas não operam (há no entanto a promessa do executivo para a construção de estações Gira em Marvila até 2025).
Rui chegou mesmo a a submeter uma candidatura a um Orçamento Participativo para a construção de ciclovias em Marvila quando estas ainda não existiam. A proposta foi chumbada, mas as ciclovias acabariam por surgir, embora não com o planeamento ideal.

Mesmo com todos os entraves, graças ao trabalho desenvolvido por projetos como a Cicloficina, Rui orgulha-se em dizer que “em Marvila, só não pedala quem não quer”. Apesar do acidente ainda jovem, Rui diz ter “feito tudo na mesma”. “Tive ajuda dos meus amigos, que sempre me apoiaram nestas aventuras com a bicicleta”.
É a prova de que a vontade de pedalar supera todas as barreiras – até mesmo algumas físicas.

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Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt