Cresci com uma família liberal que gostava da noite – mesmo a minha avó, que morreu com a bela idade de noventa e quatro anos, nunca se deitou, que eu me lembre, antes da uma da manhã. Em muitas coisas, incluindo a traquinice na escola e o número de bolos comprados na praia ao senhor Lopes –, os meus pais eram bastante condescendentes; mas havia uma em que não transigiam, a menos que se tratasse de ir aos fados: a hora de ir para a cama.
Eu não tinha grandes problemas com isso, até porque me levantava cedíssimo, mesmo nas férias, e por isso estava sempre a cair de sono depois do jantar; os meus irmãos contam, aliás, que eu adormecia todas as noites no sofá da sala, embora dissesse que estava apenas a pensar de olhos fechados…
No entanto, a minha irmã, que era mais velha do que eu quase cinco anos, fazia tudo para não ter de apagar a luz àquela hora que lhe parecia ridícula para uma quase adolescente; e até engendrou um esquema de esconder um candeeiro minúsculo entre mantas e lençóis e ficar a ler à socapa até lhe chegar o sono.
Era o tempo em que a RTP passava os desenhos animados do Carrossel Mágico, nos quais, com a música de um realejo, o Franjinhas, a Anita e o Saltitão se despediam das crianças a seguir ao telejornal (como mais tarde aconteceria com o Vitinho, o Topo Gigio ou uns patinhos deliciosos que cantavam ao microfone no palco de um teatro); e a locutora da continuidade (quase sempre a simpática Fernandinha) sublinhava que já eram horas de dormir e dizia um “Até amanhã” que marcava decididamente o fim de mais um dia.
Porém, uma vez fizeram tudo isso na véspera de um feriado e a minha irmã não esteve com meias-medidas: foi à lista telefónica, ligou para a RTP e explicou a quem a atendeu que, naquela noite, por razões óbvias, as crianças podiam ficar acordadas até mais tarde. Parece mentira, mas, ao fim de uns minutos, a Fernandinha lá regressou ao pequeno ecrã para emendar a mão…
Penso que a minha geração foi bastante bem-comportada com as horas de ir para a cama; mas, nos dias que correm, quantas crianças ficam até às tantas agarradas aos computadores, tablets e telemóveis a jogar, a “chat-ear”, a ver o Tic-Toc ou a assistir a filmes e séries, já nem sequer precisando de fintar os progenitores que, provavelmente, estão a fazer o mesmo?
Quando se janta nas “cantinas” dos bairros de Lisboa – a que vão sobretudo as famílias sem jeito ou tempo para cozinhar, como é o meu caso –, é incrível a quantidade de crianças que lá encontramos à hora a que deviam estar no primeiro sono; as mais pequenas acabam por sair a dormir ao colo dos pais, se não fizeram já uma birra de sono que obrigou os desgraçados a sair à pressa para fugir aos olhares acusadores dos restantes comensais; as que se aguentam acordadas são geralmente anestesiadas por youtubers e bonecos animados nos telemóveis das mães, enquanto elas tentam acabar a refeição…
Curioso também é haver discotecas para miúdos de doze anos e pais que põem o despertador para lá irem buscar os filhos às duas e três da manhã, como se fosse uma hora normal para estarem a pé, uns e outros; e também espectáculos de duas horas para crianças a partir dos três anos que começam às 19h30 e às 20h00 e esgotam salas com capacidade para… 10 000 espectadores.
Diziam à minha geração que deitar cedo e cedo erguer dava saúde e fazia crescer, mas, pela quantidade de crianças que estão hoje levantadas até tarde, palpita-me que não crescemos senão em tamanho e, sobretudo, que não aprendemos nada.

Maria do Rosário Pedreira
Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.
Lá em casa 9.30 da noite e o «pessoal menor» ia para a cama. Ninguém discutia. Quando depois dos meus pais se terem mudado para a R. Eng Nobre Guedes em Lisboa, deixando para trás a Av. Gago Coutinho da Parede, dava por mim a cair de sono antes das 9, porque tendo exigido continuar a frequentar o Liceu de Oeiras, tinha de me levantar às 6 da manhã.
Mas não é de agora, nem deste milénio a existência das crianças noctívagas. Em determinada altura da minha vida profissional como professora de inglês, comecei a reparar que alguns adolescentes vinham totalmente ensonados para as primeiras aulas. Não, não tinham estado a ler, como nós fazíamos às escondidas, e muito menos nos Tik-Tok dos dias de hoje (nem havia Internet), mas sim a ver filmes ainda em cassettes de vídeo, porque os pais equipavam os quartos dos seus rebentos com televisão e leitores de vídeo.
Já para não falar nas crianças muito pequeninas que cabeceavam nos cafés de Vila Real de Santo António (onde morei 40 anos) até depois da meia-noite, assim que o tempo melhorava.