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Talvez fosse Brincos de Cereja, de Ricardo Alberty, editado na inesquecível coleção Verbo Infantil Gigante. Ou 365 Histórias – Uma para Cada dia do ano, que parecia um baú carregado de aventuras. A única certeza que tenho é que, nessa década de 1970 em que aprendi a ler, a Feira do Livro de Lisboa, onde esses livros foram comprados numa noite de calor adoçada pelas farturas, realizava-se, não à sombra dos jacarandás do Parque Eduardo VII mas dos plátanos da Avenida da Liberdade.
Quando lá voltei, no final da década de 1980, já como jornalista do Diário de Lisboa, ela trepara Avenida acima e postara-se, de frente para o rio, em pleno Parque.
O meu ritmo era já outro – todos as tardes tinha de encontrar um tema de reportagem, sem esquecer a lista dos livros do dia e das sessões de autógrafos, o que numa época sem Internet ou telemóveis implicava horas de pedinchice junto de autores e editoras – mas a magia permanecia intacta.
A cidade, subitamente distendida, continuava a passear-se lânguida entre livros, disponível para “ouvir” histórias.
Ao longo da sua vida quase centenária, a Feira do Livro de Lisboa foi mudando de “palco” mas nunca permitiu que a metessem debaixo de telha.
Tudo começou por iniciativa de um lisboeta luso-espanhol, natural de Olivença, que na Lisboa de Fernando Pessoa e Almada Negreiros, se destacou pelo seu dinamismo cultural.
Ventura Ledesma Abrantes, assim se chamava. Também era livreiro e bibliófilo com loja montada na Rua do Alecrim.

Moveu céus e terras, criou a Associação de Classe dos Livreiros de Portugal (antepassada da atual Associação Portuguesa de Editores e Livreiros) e lá conseguiu que, em 1931, se realizasse a ainda designada Semana do Livro.
Inaugurada às 14 horas do dia 29 de Maio desse ano, na presença do Presidente da República, Óscar Fragoso Carmona, e do ministro da Instrução Nacional (a figura de óculos nas fotografias que facilmente se confundia com o seu contemporâneo Fernando Pessoa) frente ao Teatro Nacional Dona Maria II, essa primeira feira contou com 14 stands, representando algumas editoras históricas como a Aillaud Bertrand, Guimarães Editores, Portugal-Brasil, Parceria António Maria Pereira, Livraria Rodrigues, Moraes Editores, Fluminense, Ventura Abrantes (do tal cidadão luso-espanhol), João Romano Torres ou a Renascença Gráfica.
Com alguma ironia, o repórter do Diário de Lisboa escrevia: “Lisboa descobriu que sabe ler (…) Realmente isto nunca tinha acontecido. Fazer do Rossio a Feira do Livro. Pôr livros no Rossio para a gente saber que sabe ler. Porque há coisas que o público se esquece: de que os livros são bons amigos, e vale mais um livro bom do que um mau conselho. O Rossio tinha sido forum, mercado, circo, parada, quartel, jardim, terreiro, cerca de hospitaleiros, cerca de lidadores, cerca de vendilhões. Nunca tinha sido cerca de letrados.”

A verdade é que o sucesso foi tal que, na edição seguinte, na Primavera de 1932, o número de participantes mais do que duplicou, com 33 stands. E, apesar do escasso (ou mesmo inexistente) apoio do Estado a políticas culturais que fossem além da propaganda (ainda na década de 30, o Ministro da Educação Nacional, Carneiro Pacheco, dirá mesmo que “quem muito lê, treslê”), a Feira tornou-se um acontecimento anual de grande êxito, que se manteve no Rossio até que, no final da década de 1950, as obras do novo Metropolitano ditaram a mudança.
Na Primavera de 1960, os stands, com novo design (aquele que conhecemos até à entrada do século XXI), são montados na Avenida, anunciando-se que tal não passava dum compasso de espera. O certo é que a Feira não voltou ao Rossio e permaneceria nesta nova morada durante 20 anos.

Aqui aconteceram factos muito relevantes para a História do Livro (e não só) em Portugal, como o lançamento público do programa das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian a bordo das carrinhas Citroen de boa memória para várias gerações de portugueses. Com um núcleo inicial de 15 unidades, que começou por percorrer o distrito de Lisboa, em poucos anos esta frota da leitura chegou às 47 unidades e teve dezenas de funcionários, entre os quais os poetas Herberto Helder e Alexandre O’ Neill.

Foi também na Avenida que, a 25 de Junho de 1974, se inaugurou a primeira feira do Livro em liberdade, com as participações de autores malditos (ou, pelo menos, muito vigiados) durante a ditadura como Fernando Namora e José Cardoso Pires ou o editor Ribeiro de Melo, que se tornara um alvo da polícia política ao publicar (na sua chancela, Afrodite) a Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica, coordenada por Natália Correia.
Muito crítico, em entrevista à RTP, Cardoso Pires dizia (enquanto, sinais dos tempos, acendia um cigarro à frente da câmara) que a “Feira não pode continuar a ser aquela coisa chata, igual de ano para ano, em que as pessoas veem sempre as mesmas barracas, alinhadas da mesma maneira, mas deveria tornar-se um autêntico festival de Cultura, com muito mais imaginação comercial por parte dos editores participantes”. E acrescentava que os portugueses tinham deixar de ver nos livros “um produto destinado a gente rica e culta.”
Do Campo Grande à FIL – uma nova localização?
Antes e depois do 25 de Abril, de quando em vez falava-se em novas hipóteses de localização da Feira, que iam desde o Campo Grande à Feira Internacional de Lisboa (hipótese que, de um modo geral, desagradava à população, desfavorável à ideia do recinto fechado), mas, em 1980, foi no Parque Eduardo VII que o Presidente da Câmara, Krus Abecassis, inaugurou a 50ª Feira do Livro.
Com o espaço cedido pela CML, a opção não era consensual. Em declarações ao Diário de Lisboa, o então diretor da APEL, revelava os receios dos seus associados: “Claro que a paisagem este ano é muito mais bonita. Mas nós não vivemos de paisagem, vivemos de vendas. E para alguns editores, a Feira do livro anual vem sendo a única oportunidade de compensar as vendas de todo o ano. Vamos ser as cobaias.”

Apesar destas e outras reticências, é aqui que a Feira se tem mantido até hoje, com exceção de 1996, ano em que as obras do Metro (uma vez mais) tornavam a Rotunda do Marquês de Pombal e o Parque intransitáveis. Deslocalizada para a Rua Augusta e Terreiro do Paço, esta tornar-se-ia um fracasso de vendas e público.
No Parque, a Feira receberia em apoteose José Saramago como único (até agora) Nobel da Literatura em língua portuguesa e responderia, já no século XXI, ao crescente desafio que o digital coloca à indústria do livro: afinal, serão os livros “instagramaveis”?

Pela terceira vez consecutiva, a Feira realiza-se no final de Agosto e princípio de Setembro devido às contingências ditadas pela pandemia, o que pode não ser muito oportuno se pensarmos que esta é altura do ano em que muitas famílias enfrentam as despesas com material escolar. Mas a APEL garante que 2023 será o ano em que os livros voltarão à sombra dos jacarandás em flor – ou seja, regressarão na primavera como eles.

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Maria João Martins
Nasceu em Vila Franca de Xira há 53 anos mas cresceu na Baixa de Lisboa, entre lojas históricas e pregões tradicionais. A meio da licenciatura em História, foi trabalhar para um vespertino chamado Diário de Lisboa e tomou o gosto à escrita sobre a cidade, que nunca mais largou seja em jornais, livros ou programas de rádio.
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