Acho sempre graça a discussões sem agenda, que têm mais perguntas do que respostas. Os heterónimos, mais do que para dizer isto ou aquilo, servem para fazer a pergunta máxima: o que seria a vida, afinal, se porventura fosse outra coisa qualquer?

Fernando foi Álvaro, Alberto e Ricardo. Eu, que vivo a circunstância trágica de ser eu, também fui outros. Num livro, fui Deus. Noutro, um brasileiro desgraçado e barrigudo e estúpido a viajar para Portugal em vão. Neste ou naquele conto, joguei à bola e marquei golos. Houve até um texto em que pude comer sem engordar. Não é para ganhar a maravilha que existimos?

Na escrita, tive a palavra. No papel, dei camadas à vida. Ninguém se iluda: a literatura serve para nos enganarmos uns aos outros, para pormos uma luz fraca sobre as negruras e as podermos ver com romantismo, para cortarmos a bisturi as gorduras e deixarmos só músculo, só osso, só âmago.

É por isso que os escritores são sexy, que tão facilmente lhes caímos nas manias, nas idiossincrasias, nas palermices, nos dramas, nos melodramas, nos super-melodramas, nos senhores-super-melodramas. Hão-de pegar nisso e fazer beleza pura, daí que seja tão fácil ver um romancista e ter vontade de senhorsupermelodramar com ele. Com ele ou ela, tanto faz. Isto, convém dizer, não é auto-elogio encapotado, também eu fui ou sou vítima da vida em geral de vez em quando.

Onde é que eu ia? Inventou-se a monogamia e eu acho muito bem acordar sempre com o mesmo corpo ao lado, e querer que esse corpo seja cara e luz e vida. Mas não me obriguem a ser apenas eu. Quem monogamizar comigo terá de lidar com a multidão.

Uma vez, cheguei abalada à sala de estar. Já não havia volta a dar. O capítulo tal estava escrito, no dia seguinte eu tinha de matar a Etc. A narrativa encaminhara-nos para ali; o resto do romance, depois da morte trágica, teria de continuar a respirar sem ela. E tudo o que ali estava saíra das minhas mãos. E eu bem via as personagens aflitas, elas ali com os seus dilemas, as perguntas que faziam ao espelho ou ao papel, “E se eu tivesse agido antes? E se eu me tivesse portado bem? E se não tivesse sido egoísta? E se eu tivesse impedido este horror todo?”

Mas a única responsável era eu e os remorsos deste e daquele foram meus. Ao fim e ao cabo, a assassina derradeira era a que disparava no teclado, a que apertava as teclas a fingir que eram gatilhos. Da mesma forma, quando fui Deus conheci a magia de ser mãe de dinossauros.

Dá-me sempre para o remorso, para a violência, para o arrependimento, para o ridículo, para a canalhice. Dá-me sempre para saltar não sei para onde. Pego nas minhas mãos pálidas para escarafunchar a escuridão. Que me interessam casais felizes, que me interessa gente incapaz de ter tormentos?

A multidão que se juntou há dias pegou na massa e discutiu. Partimos de um livro de João Marecos, e quando se parte de Marecos chega-se sempre a algum lado, mesmo que esse lado seja um ziguezague que fica muito longe. Com João Marecos é assim e, sendo ele tão admirável, fiquei ali a admirá-lo, pensando em perguntar à mãe os truques para também um dia eu poder ter um filho igual àquele.

Pelo meio, dos heterónimos fomos em cima de um pequeno cavalo até ao México, e de lá voltámos até ao Instagram que nos faz tão infelizes. É que, repararão, no Instagram toda a gente vive bem, vai aos sítios tal e tal, sorri, feliz da vida, empanturra-se de estrelas Michelin, ama sem complacências, é amada sem travões, toda a gente está sempre à temperatura adequada.

Ali, bem notou Guilherme, o Hamlet, mascara-se a experiência de uma vida, e dá-se a experiência de vida que o outro – seja lá quem for o outro – espera de nós. Se vamos a Ipanema, temos um sol que não queima. Se bebemos uma água de côco, gostamos, adoramos, amamos – maravilhamo-nos para conseguirmos provocar os palermas que estarão deprimidos e agarrados aos telemóveis. A maneira certa de se estar feliz é saber que a miséria fora de nós é bem maior.

Ora, se qualquer um faz isto na Internet, quanto mais os influencers, que a bem ou a mal nos tentam convencer que o pão sem hidratos sabe a broa, que o iogurte proteico é cremoso e digerível. Se é a bem ou a mal não chega a interessar, o que temos aqui em causa é a vida que nos é atirada à cara.

Ainda debatemos se influenciar e heteronimizar andavam no mesmo patamar, porque em ambos havia a criação de uma persona, mas o Guilherme estudou bem as coisas, bem disse ao mundo que nuns faltava o pathos. E falta, mais do que isso, superar a ilusão, a vida bonita dada em quadro e a entrada no abismo desta coisa mágica e trágica que é ser-se humano, quebrar as expectativas, atingir uma individualidade que vá muito além de usar o creme X e fingir que é bom, de levar para a praia as toalhas tal que a marca Y ofereceu com tanta simpatia.

É que o que a ilusão da vida não mostra é o que toda a gente sabe: que, fechado o telemóvel, a vida é igual para toda a gente. Uns fazem modelos de gramáticas, outros penteiam-se bem e escrevem #wokeuplikethis #garnier, mas depois do horário de trabalho lá estamos nós a pagar as dívidas à Epal, a dizer mal dos colegas aos amigos, à telefonar à mãe porque, seja qual for a idade, somos todos crianças com saudades.

Na literatura somos isso e somos mais. Inventar uma personagem é a magia de sermos outro qualquer. Na vida, há sempre uma obrigação de ser bom, esperto, leal, moral. Ali é tudo a eito, nada vale, não há regras. A literatura é o território para fazer o impossível, é o movimento que está sempre em expansão. Ali a vingança dura, ali o amor é isto e aquilo, ali somos aquele ou este.

Pessoa pôde ser os amigos dele, pôde até ser o mestre que lhe deu os mantras, mas já antes de ouvir falar de heteronímia eu me tinha desdobrado. A culpa não é minha, qualquer criança com dez anos e paixão se volta para a escrita.

Foi mais ou menos nessa altura que surgiu o Zepierre na minha vida. Palhaço, vinte e tal anos volvidos e ainda me enerva. Sempre com aquela mania estúpida de ter um nome francês, sempre a corrigir os outros, a saber de gramática e de história. Irritava-me a arrogância dele, a maneira como se dava aos poemas, a liberdade – admito – que tinha para os fazer. O vocabulário dele era melhor do que o meu. A confiança dele, maior do que a minha, ainda que toda a gente julgasse que a minha lhe dava uma cabazada.

É que ele confessava coisas e eu não, e nas confissões era sempre um desgraçado. Sempre cheio de pompa, sempre armado à circunstância. Irritava-me porque não sabia falar como gente normal. Era asinha para aqui, ledo para ali, milady, vossemecê, senhora que me tomais. Enfim, o gajo era um palerma. Tinha dez anos, não podia jogar à bola, mandar um bilhetinho à miúda a dizer “Queres namorar comigo?” com um formulário para ela preencher se sim, se não, se talvez? Nada disso, o gajo estava feito para ir a Estocolmo, e admito que o que me incomodava era que ele pudesse escrever melhor do que eu.

Ainda por cima, o Zepierre escrevia poemas no jornal da escola – que por acaso se chamava Mensagem – e depois era ver toda a gente a elogiá-lo. Ai que o Zepierre é tão romântico, ai que o Zepierre escreve tão bem. Comida pela inveja, eu apontava-lhe os defeitos, que só eu o via como ele era: pomposo, ridículo, pedante, estúpido, beto, pretensioso, inculto, mau escritor, mau escritor, mau escritor. Filho da mãe, vinte e tal anos depois, ainda me irrita ao ponto de me fazer doer o pâncreas. Nos meus textos secretos, eu era muito melhor do que ele.

Na escrita, era o meu rival, na expectativa social também. Claro que, olhando para trás, percebo que o problema era estarmos os dois apaixonados pela mesma, mas ele escrever-lhe poemas e eu não. E poemas, convém dizer, toscos, mal encapotados, repetitivos, a forçar a rima, a forçar o sentimento, a pingar o amor que ele achava que podia pingar ou derramar até inundar a escola toda.

Eu usava roupa normal, ele era tão beto que ia de fraque para a escola. Parece que ainda o vejo: cartola, fato preto, sapatinho engraxado (engraxava-o todos os sábados às onze e meia da manhã à porta da livraria do meu avô, só para me irritar, só para eu ver, só para se exibir), penteado com cera de alta fixação e um fino e longo bigode que parecia impossível numa criança tão pequena.

Não só se passeava com o Público debaixo do braço como ainda tinha a mania de que era adulto antes do tempo. Irritava-me aquela sobranceria com que olhava para nós, como se fôssemos uns palermas por bebermos Ucal ou Fresky enquanto ele pegava em ópio ou vinho tinto ou whiskey ou eu sei lá. As professoras, claro está, nem queriam saber. Se era o queridinho Zepierre, podia fazer o que quisesse.

Nos meus tempos livres, eu tentava ser como ele. Punha-me ao espelho, zepierrava o que podia. À mesma hora, ele olhava para o rio – ou via-o passar placidamente à sua frente – e fazia os seus poemas. Eu tentava dar um jeito ao cabelo, ele estudava latim, já penteado. Eu tentava não estragar as sapatilhas com a bola, ele continuava com os sapatos impecáveis. Parecia que usava um par novo por dia. Não bastassem as outras razões do meu tormento, o gajo ainda era rico e tinha a vida feita.

O tempo passou, fiquei mais velha, a vida aconteceu até eu chegar a este jornal. Até o João Marecos escrever um livro a brincar com a heteronímia. Até eu conhecer o Marecos. Até o Marecos me fazer conhecer o Guilherme. Até irmos à Feira do Livro apresentar perguntas, sem nunca termos respostas para nada, que a vida é mesmo assim. Até eu pensar que, agora longe, agora em Lisboa, ainda sou assombrada pelo que o Zepierre fez de mim. Até eu pensar que publiquei dois livros e ele nada.

Deve ter tido muitas ambições, mas nunca saiu do jornal da escola. E, riam-se lá, nunca engatou a miúda, que nunca quis saber da porcaria dos poemas, que achava que os meus eram melhores. Tanta pompa e não deu nada. Ele podia ter mais técnica, eu podia ser mais rasca, mas ele é que morreu tragicamente antes de chegar ao 6º ano. Não me alegrou ver o seu corpo bem vestido estilhaçado por um comboio que ia a correr para Guimarães, e não é hora de discutirmos se fui eu ou não quem o empurrou.

Eu fiz sempre tudo bem. Eu não confessei paixões dramáticas. Não tive bigode em idade imberbe. Não me vesti como um adulto quando ainda era criança. Não me enfrasquei quando não tinha idade para beber. Não morri antes do tempo. Fiz sempre tudo tão bem na minha vida que nunca tive de passar pela vergonha de alguém um dia descobrir que o Zepierre era eu.

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Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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