Andei a ler doentiamente para meter a cabeça em qualquer lado, mas abria o Mishima e ela estava lá, abria o Ishiguro e ela estava lá, mergulhava no Ben Lerner e ela estava lá. Até me meti no Stoner para ver a vida de um gajo medíocre e ela continuava ali como se o mundo fosse todo dela.
Era irritante.
E era uma da manhã, eu estava fechado em casa sozinho e ela também estava lá. Da minha janela, estendia-se uma língua de estrada, mas àquela hora já nenhum carro lhe passava em cima. Já não sei se me movia a raiva ou whiskey, a amor ou saudade, a paixão ou solidão, a certeza ou arrependimento, quando saí de casa irritado, com as chaves da mota na mão. Passei vermelhos, mas a PSP não viu. Estacionei no passeio, mas a Emel não estava lá. A vida era eu, homens do lixo e polícia.
Quando dei por mim, era uma e meia e tinha estacionado no Rossio. Nem é que tivesse para onde ir, acho que só procurava movimento, e ainda por cima Lisboa estava estática, as ruas estavam desertas, os edifícios eram gente.
Coitada de Lisboa: se fosse alguém, quereria que a levassem para casa ou para a cama ou para o ninho. Pela primeira vez, reparei que, em cima do Nicola, há uma placa a dizer que o Eça de Queiroz morou ali, mas quem é que ainda quer saber do Eça de Queiroz?
Andei à toa e Lisboa era só para mim, ruas vazias e um só homem na estrada. Um pouco mais adiante, numa cidade abstrusa, eis o centro da cidade como casa-de-banho pública de cães. Um ou outro homem marcava a escuridão, não havia nenhuma mulher sozinha.
Pode parecer triste ver uma cidade ao deus-dará, mas dava-me alento ser o único acordado, e nada foi mais deprimente do que ter jantado um iogurte de limão com linhaça e uma bolacha de gengibre ressessa feita por ela e que sobrou do Natal. Guardei-a em vácuo, daí ter sobrevivido.
Ali fora, as estátuas ganhavam vida por terem forma humana e, ao ver-me na rua sem gente a andar à toa, sem grupos, sem risos, sem nada, perguntei-me em que raio de buraco tinha metido a minha vida.
Andava por aí com 50 anos metidos à força em 36. E o mais ridículo era ter o coração de um adolescente aos gritos – como aguentar tanta paixão lá dentro?
Pois é, um gajo chega aos 30 e poucos a achar que já viu tudo, e eis Lisboa à noite, eis não ter para onde ir, depois de já ter corrido o Bairro Alto, já ter passado uma noite a saltar entre o Friends, porque a ruiva estava lá, e as Primas, porque talvez a loira lá estivesse.
Chega aos 30 e poucos e na lapela leva tudo o que já viu: um naufrágio no Titicaca, os olhos plácidos de um jacaré em Cuyabeno, golfinhos cor-de-rosa no Amazonas, um mergulho naquela água de piranhas e Coca-cola quente, um anão a ameaçá-lo com uma arma branca, um tufão em Hong Kong, luzes verdes a dançar no céu em Tromsø, fumo a sair do chão em Uyuni, neve em Roma, uma matilha esfaimada em Puno, uma pandemia que nos põe a todos de máscara, mulheres com calças padrão oncinha.
Via os 40 em cima, só não a via em casa. E ela com 26 e a vida pela frente. Ela em casa a ler ou a dormir. Ainda nem eram duas da manhã e era sábado, mas parecia-me tão tarde. Ia lá?
Eu sabia que tinha sido eu a acabar, mas não o teria feito se não tivesse a certeza de que ela viria atrás. Sim, foi um duplo erro. Quando lhe virei as costas, parecia um sem-abrigo. Podiam parecer os cacos de todo o amor do mundo que não foi suficiente, mas afinal era só a chantagem emocional de alguém que não se podia ver a sós. Eu sei, eu tinha um espelho.
E, a partir daqui, o que é que eu podia fazer? Bater-lhe à porta em versão serenata, rosa na mão, voz embargada? Bater-lhe à porta com a voz a estalar, pronto para discutir e partir tudo? Bater-lhe à porta, revirar os olhos, reduzi-la ao nada, dizer-lhe que é tão infantil não me atender as chamadas quando a única coisa que eu queria era o exemplar da Zeruya Shalev que ela se recusava a devolver? Não queria falar com ela, só queria o meu livro de volta. Será que não via isso?
Qual destas pegaria melhor?
Vagueava pela Lisboa deserta e lembrava-me do que era a madrugada meia dúzia de meses antes. Eu com os amigos num bar qualquer, ela com a SMS habitual: “Não te metas a olhar para as outras”, eu ria-me com eles, e claro que olhava para as outras enquanto ela estudava para os exames e ia dormir cedo.
Quase sem querer, os meus passos foram para lá. Não estava ninguém na rua, só havia um caminho, da Praça da Figueira aos Anjos era um tiro. Talvez não importasse muito prever a reacção, a solidão fazia de qualquer homem um macaco autómato, e de repente já só era o tem-de-ser. Mas ela só tinha 26 anos, e eu com 36 já devia saber fazer melhor do que isto. Não prever o arrependimento, mas evitá-lo mesmo.
Chega-se a uma altura em que já não vale a pena pensar em grandes gestos românticos, a vida reduz-se ao que é pragmático. Quê, ia invadir Lisboa com um exército montado em elefantes, vandalizar a Quinta das Águas a meio da noite para lhe cantar uma musiquinha do Paolo Nutini? A vida é o que existe, é escusado inventar pó de arroz que a redima.
Cheguei ao prédio dela. Eram duas e meia e toquei à campainha. Ainda há pouco via o rio, via o Barreiro ao longe. Meia dúzia de meses antes, morara no prédio ao lado. Depois o senhorio morreu, a casa foi herdada pelo filho, que chegou do Algarve para a pôr a render em Airbnb, e eu tive de sair dali para Carnide com uma dívida para os próximos 28 anos.
Ela ali ficou, saída da FCSH, a dividir a casa com mais cinco FCSHs. Eu é que já não tinha idade para morar numa casa cheia de cinzeiros, cerveja e Zeca Afonso, e ela ainda não tinha idade para discutir as cores mais confortáveis de carpetes.
E eu tive de a deixar lá com três miúdas, um licenciado em História e um desempregado que tinha estudado cinema. Incomodava-me saber que o Mário passava lá o dia, falava de cinema de autor, discutia a nouvelle vague, tão pedante, tão sem sentido prático, tinha posters do Bergman na parede como um puto, sem molduras, e queixava-se de que a vida era tão difícil, o tabaco estava tão caro, a cinemateca tão fechada, e qual era o mal de fumar um charro atrás do outro, e porque é que não devia haver um rendimento básico incondicional, e porque é que a preguiça não era um direito, santo Deus, tínhamos de ser todos escravos do trabalho, e quando é que o meu daddy me faz mais uma transferência para pagar a renda ao filho da mãe do senhorio, besta insana e tonta que vive de rendas e propriedades e capital, a explorar outros?
Tive a sorte de ser ela a falar no intercomunicador, mas ouvi vozes por trás. Ainda a ouvi dizer “’Tás a gozar!” e lembrei-me do ridículo que foi dizer-lhe “Não estás a ficar mais nova, não vais conhecer mais ninguém”, eu, que pareço um bêbedo a fugir da solidão.
Deixou-me subir, julguei que me ia deixar entrar, mas saiu do 4ºC. Saiu num pijama tão branco que parecia uma luz fria. O problema de não haver assuntos pendentes era aquela figura de urso. Que diria então? Que houve um tempo em que a pressa por ela me cavalgava na garganta, mas que não podia esperar até que ela tivesse idade para querer filhos? Para quê dar explicações a quem não as pediu?
Podia zangar-me, dizer-lhe que me tinha perguntado durante quanto tempo arrastaria aquela perpétua adolescência, sairia com uma miúda saída da casa dos pais, que ainda achava que ir comer um kebab ao Intendente era jantar fora? Para quê, se ela não queria saber? Para quê, se ela só me perguntava um “Sim?” todo arrastado, mais curiosidade e tédio do que interesse? Fiquei calado a vê-la, acho que já não me lembrava daqueles olhos de berlindes.
Talvez, no fundo, estivesse à espera de que ela safasse tudo. Se me saltasse para os braços, estava o problema resolvido, não haveria embaraço, mas isso são coisas que só há na ficção. A vida real é outra coisa, uma pasmaceira atrás de um tédio.
Pesadas as coisas, até o cenário romântico dá trabalho, pensar em vivermos os dois um amor à Eça de Queiroz, ela a Maria Eduarda, eu o irmão dela, os dois juntos na Rua da Junqueira num palácio a fazer lembrar o Ramalhete – casa que precisava de empregados, um jardim a estender-se à volta, grades, sebes e pássaros. Mas só a ideia de ouvir o mordomo de manhã, de andar de jaqueta o dia todo, de ler o Diário de Notícias de monóculo e de dizer “Milady, é perigoso contemplá-la” já me enerva.
O ponto comum à maioria das histórias é acabarem mal. Portanto, disse-lhe “Desculpa” e as sobrancelhas dela ergueram-se, e ela ficou ali com dois berlindes a olhar para mim. Voltar para casa de mãos a abanar seria ridículo e eis-me então um cavaleiro, “Já nem consigo dormir a pensar nisto.”
Nem houve tempo para indagar, ela sacudiu os ombros, queria lá saber, e eu mais indigno dela ficava com mais esta humilhação, mas quem é que quer ser digno de uma criança assim, que abre a porta de casa com cheiro a incenso e charros? E atirou-me “Eu vi logo que isto ia acabar assim.”
Fui à carga, insistindo na desgraça, “Já nem como de tanto pensar nisto”, e ela riu-se à descarada, desgraça em cima de desgraça, ela bem via que eu ainda tinha barriguinha. Até o meu drama era falso, só plástico sobra de uma relação glutamato – o sabor é intenso, mas sabemos que não é a sério, pó acrescentado para adoçar, versão cocaína dos últimos ultra-românticos.
E, antes de ter tempo de algo mais, chegou o gajo do cinema e eu sabia que tinha de arranjar uma desculpa para ir embora. E aí lembrei-me de que o gajo do cinema não era o Mário. O Mário era o licenciado em História. O gajo do cinema era o João, que volta e meia achava graça a assinar Bérnard da Costa, apesar de não ter obra nem textos nem talento nem nada nada nada. Como é que, em dois meses, esqueci tanta coisa? Talvez isto signifique que em breve já nem me lembro dela.
Chegou e pôs-lhe o braço à volta, dizendo assim: “Chamaste o Uber eats?” A primeira coisa que me veio à cabeça foi dizer “Desculpem, esqueci-me dos kebabs” e pus-me a andar antes de ter a realidade em cima.

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Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.