Kady, de voz doce. Ninguém diria que por detrás deste tom e do rosto angelical está uma mulherona, uma cantora bem ciente do seu papel no mundo. No da música, mas também que une Portugal e Cabo Verde. E em Lisboa, que é a sua cidade desde que se mudou para cá com 21 anos, vinda da cidade da Praia.
A Lisboa onde encontrou as misturas que lhe deram a sua sonoridade atual, numa certa pan-africanidade moderna.
“A minha Lisboa é bem cabo-verdiana. Estou na Broda Music – a editora fundada por Djodje, o marido, Ricky Man e Pepe – todos os dias. Estou lá na Damaia onde temos o estúdio, e comemos muito cachupa. Mas a minha Lisboa também é crioula, como diz o Dino. Foi muito inspirador vir para cá porque em Lisboa há várias culturas africanas – a kizomba, por exemplo, angolana. Toda essa lusofonia que existe aqui e vai beber de todos esses países que estão cá. Se eu estivesse em Cabo Verde isso não acontecia com tanta facilidade e naturalidade”, diz.
Hoje, Kady vai participar na História de Portugal, a evoluir mais um bocadinho no momento mesmo em que ela pisar o palco da Gulbenkian, num dos concertos de abertura da programação do Jardim de Verão, às 18:30.
O convite veio de Dino d’Santiago, curador desta experiência que havemos de recordar como um marco: uma programação de concertos, poesia e filmes, na Gulbenkian, todos de artistas africanos ou descendentes – na sequência da exposição Europa, Oxalá.
São 30 concertos, poesia e DJ Set com curadoria de Dino e de Lisboa Crioula (parceiros da Mensagem no projeto de jornalismo em crioulo).
Os nomes vêm de todas as origens africanas (embora muitos já sejam portugueses): além de Kady, Nayela, DJ Berlok, Nídia, Soluna, Manecas Costa, Mynda Guevara, Sílvia Barros, Sacik Brow, Boddhi Satva, Toty Sa’Med, Banda Monte Cara, NBC, DJ Kolt, Dotorado Pro, Djodje Almeida, DJ Firmeza, DJ Marfox.
Os concertos são à tarde e à noite nos próximos fins de semana até 10 de julho. E a poesia é dita por Alice Neto de Sousa (que escreve na Mensagem), a abrir, hoje, 24 de junho, às 17h50, e a fechar, 10 de julho, às 19h20.
“É um sonho estar na Gulbenkian”, diz Kady comparando a experiência à do Festival da Canção, em que participou, em 2020, com Diz Só, música de Dino e Kalaf. Para ela, são momentos chave de “empoderamento” – dela, das suas origens, de ser mulher. “É ver os nomes que estão no cartaz. Há uns anos isso, não digo que era impossível, mas as pessoas iam estranhar muito isso acontecer. E hoje não. Ações como esta fazem muita diferença”.
É, como diz Dino no programa: “Desta vez, a entrada será pela porta da frente e, como canto na canção Mundu Nôbu, “En ben di longi, ma en ka strangeru nao!” (Eu vim de longe, mas não sou estrangeiro!)”
A missão de Kady é fazer parte
Essa ideia de fazer parte é, de certa forma, a missão de Kady. “A música tem, eu não diria um papel político, mas tem um papel afirmativo de dizer: ‘Nós estamos aqui e fazemos parte desta cidade também’. Para que as pessoas nos olhem como tal. Eu sinto-me assim, daqui. Mas sei que há muita gente que não sente. Nessa minha música nova, o Djunto – ou juntos, em crioulo – a narrativa é mesmo de nos juntarmos porque somos mais fortes. Eu sei que parece um cliché, mas é um facto também. Essa divisão não pode existir. E eu nem estava a pensar tanto no sentido de Portugal, mas também em Cabo Verde, as diferenças entre o Sampadjudo ou o Badio. Já chega de divisões, temos mesmo de nos juntar!”

Sampadjudo (que vem do português da nossa terra) refere-se aos das ilhas de Barlavento. Badio é dos que são da ilha de Santiago, mais escuros. Kady mistura tudo isto na sua música e na sua vida. Ela é a herdeira de uma longa história que junta Cabo-Verde, Guiné, Angola numa família de ativistas e artistas.

É filha de Terezinha Araújo, fundadora do grupo cabo-verdiano de recuperação da tradição, os Simentera (com Mário Lúcio e Tete Alhinho), e neta de Amélia Araújo, figura do PAIGC que era conhecida como “Maria Turra” na Guiné, onde difundia os ideais da independência aos microfones da Rádio Libertação – chamavam-lhe boca de canhão.
“É difícil às vezes estar à altura desta herança de mulheres fortes”, diz, sorrindo, a herdeira. E recorda: “Quando eu era adolescente lembro a minha avó a dizer-me: tu só queres ir comer pizza com os teus amigos e passear… Havia essas passeatas e manifestações, e eu não ligava. E ela criticava-me. Realmente um pessoa que saiu do seu país para lutar, ver uma adolescente a querer curtir a vida. Isso pesou. Mas não podia ter melhores exemplos.”

A cantiga é uma arma e a Kady sabia
Pois não, e com foi com esses exemplos que cresceu. Veio morar para Portugal, aos 21 anos, para estudar Gestão de Eventos. “Cada fase é uma fase, e não me arrependo e cada um tem o seu despertar no seu tempo. Estou a fazer tudo no tempo que tem de ser.” Até esqueceu os eventos para passar para o lado de lá do palco – onde sempre esteve desde os ensaios com a mãe até ao concurso que ganhou, ainda criança. “Andei sempre nisso!”
Uma cantora com as histórias e origens de Kady nunca é apenas uma cantora. É uma arma, como a avó. “Neste disco vou abordar muitos temas: empoderamento feminino, amor próprio da mulher preta… Lutamos muito para chegar um dia que gostamos de nós como somos. Por causa do colonialismo, do colorismo. E hoje ver que temos mais representatividade e orgulho em ser quem somos deixa-me muito feliz.”
Um dos temas do novo álbum há-de falar do cabelo: “Este é um tema. O cabelo – pode parecer que é só um cabelo, mas não. O nosso cabelo nós usámos no tempo da escravatura para desenhar mapas. Tem uma história enorme. No outro dia estava numa fila e estava uma menina, a avó dela era branca e ela mestiça. E ela diz à avó: vou ficar com o cabelo como o dela e apontou para mim. E a avó respondeu: teu cabelo só se crescer para cima. A avó dela!!! É o que eu digo, é uma grande luta para gostarmos de nós como somos. Isso é sempre importante falar – não é estar em mi mi mi. Essas crianças precisam que se fale disso.”
Já era esse o tom de Diz Só, a música do Festival da Canção em que Kady homenageava “Angela, Cesária ou Michelle/ Paulina, Maria, Grace ou Marielle”, mas também a sua tia-avó, Lilly Tchiumba, uma importante e conhecida artista angolana que participara na edição de 1969 do Festival com uma canção adocicada e cantada em português que marcava a presença africana no certame.
Lilly tinha muita visibilidade na RTP e participara em vários vídeos com os Duo Ouro Negro, por exemplo.
“Tudo fez ainda mais sentido quando me lembrei que a minha tia tinha participado, 50 anos antes. Ela era uma artista super-afirmada como africana, cantava em quimbundo. Então, eu ir ao Festival, acompanhada de três mulheres pretas como eu, cantar uma música em que falo de Chiziane, Maria Turra, a minha avó, da Marielle, foi um momento muito forte para mim,” diz.
Embora reconheça que no hip hop e na kizomba “há muitas músicas que objetificam as mulheres”, Kady garante que, quando está no estúdio da Broda Music, onde se gravam muitas músicas, “sempre que ouço algo que não cai bem, eu digo, sim!”
Um novo disco de criatividade coletiva

Foi neste estúdio que germinou o novo disco de que Kady há de apresentar hoje algumas canções. “Fizemos um Writing Camp – foi ideia do Kalaf”. Da espécie de residência fizeram parte Dino D´Santiago, Ricky Man, Djodje, Mário Marta, Gerson Marta, Éllàh Barbosa, Toty S’Amed e Nayela.
O objetivo era encontrar um sonoridade que representasse o que é a nova Kady: uma musicalidade contemporânea que não esquece a tradição cabo-verdiana. O símbolo é Djunto, a música “em crioulo, com expressões muito tradicionais, que mesmo na cidade da Praia podem ser desconhecidas mas lá no interior são bem conhecidas”, mas com uma fusão moderna de beats.
Simentera on the rocks? “Sim, acho que é uma boa expressão! A minha mãe adorou. Ela é muito para a frente.” Isto significa uma grande mudança para Kady que lançou o primeiro álbum, Kaminho, “muito soul – adoro Alicia Keys – mas fiz questão de cantar em crioulo. Sara Tavares é enorme inspiração para mim. Vamos evoluindo com o tempo, já não me identifico com o que fazia em 2015.”
Sim, Kady cresceu, amadureceu. Viu a sua nova cidade, Lisboa, abrir-se aos outros – “está muito melhor, mais alegre, mais aberta”. Mas manteve a doçura que lhe permite encarar qualquer luta com uma certa ingenuidade. E não será essa a melhor arma?

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Catarina Carvalho
Jornalista desde as teclas da máquina de escrever do avô, agora com 51 anos está a fazer o projeto que melhor representa o que defende no jornalismo: histórias e pessoas. Lidera redações há 20 anos – Sábado, DN, Diário Económico, Notícias Magazine, Evasões, Volta ao Mundo… – e segue os media internacionais, fazendo parte do board do World Editors Forum. Nada lhe dá mais gozo que contar as histórias da sua rua, em Lisboa.
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