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Na “catedral da revista”, Hélder Freire Costa oficia a companhia numa sala reservada à direção. Na parede, a fotografia dos históricos empresários Giuseppe Bastos, Vasco Morgado e José Miguel evocam o tempo em que a revista se fazia no Variedades, no Capitólio, no ABC e no Maria Vitória.
Hoje, 100 anos depois do nascimento do Parque Mayer, Hélder é o último a resistir, mas não o derradeiro, pois prepara o filho, Diogo – a quem chama “o sucessor”, para continuar o legado da revista à portuguesa. Gere os fundos, o elenco e tem uma palavra a dizer sobre o texto, sobretudo o título. Aprendeu com o seu antecessor, o senhor Bastos, a superstição de integrar um “P” no nome de cada revista.
Na sala onde trabalha, Hélder Freire Costa guarda emoldurados os principais êxitos de 55 anos que leva no Maria Vitória e que lançaram nomes como Marina Mota, Carlos Cunha e Fernando Mendes. Mas a vida do teatro não nasceu por paixão, foi um “acaso”, conta o empresário.

Nascido nas Janelas Verdes, em 1941, tirou o antigo curso comercial, nunca em mente os palcos. Começou a trabalhar nos escritórios de uma empresa de medicamentos e, em 1963, concorreu para um posto no antigo banco Totta & Açores, na Rua do Ouro. Um ano depois, Hélder Freire Costa saía despedido, consequência dos atrasos à hora do ponto.
À procura de trabalho, respondeu a um anúncio no jornal: o empresário Giuseppe Bastos, do Teatro Capitólio, procurava um secretário. “Nunca pensei que fosse para teatro, pensava até que ia para cinema”, recorda Hélder.
Hélder Freire Costa lembra-se bem do primeiro dia no Capitólio: “Quem abriu a porta foi o Apollo, o fotógrafo dos artistas”. Dava-se uma verdadeira metamorfose dentro de Hélder, que, hoje, “mais do que um empresário”, se vê como “homem do teatro”, pelo amor pelos “artistas” e pela “família teatral”.


Ali começavam 58 anos dedicados ao teatro: primeiro como “braço-direito” de Giuseppe Bastos e, depois, como empresário, desde 1975. A companhia instalou-se no Maria Vitória em 1967, há 55 anos. Há mais de meio século, que Hélder participa da história do teatro nascido em 1922 e que guarda 100 anos de vida.
Filho das Janelas Verdes
Bailes. Associações e coletividades. Tudo fazia parte de uma juventude boémia de Hélder e dos amigos, entre eles Manuel Paiva dos Santos, pai do fadista Camané. “Aliás, o Manuel conheceu a mulher num baile nos Carecas de Oeiras, onde íamos várias vezes”, lembra. As noitadas justificavam os atrasos no banco, até porque, a certa altura, Hélder passou a ser o anfitrião.
Numa noite, no Grémio do Bacalhau, edifício que atualmente acolhe o Museu do Oriente, o grupo do empresário, dececionado com a confusão do espaço, foi para a Sociedade Ordem e Progresso, na rua do Conde. “Quando lá chegámos, estava um conjunto péssimo a tocar música tipo do Texas e os pares eram todos velhos… Decidimos renascer aquela associação e passámos a ser nós a organização”, conta o empresário.

Dos tempos das Janelas Verdes, Hélder Freire Costa guarda o sentido de humor do pai, Carlos. “O meu pai era dado à paródia. Quando as festas terminavam, alguns colegas acompanhavam-me até casa. Como falávamos alto à porta, ele vinha à janela e mandava-nos água.”
Na casa de onde chovia água, em frente ao hoje Museu Nacional de Arte Antiga, nasceu o pai, Hélder e os seus sete irmãos, num tempo em que “nascer na maternidade era pecado”. Do pai, Hélder herdou o temperamento e o próprio nome. Conhecido pela família como Carlitos, Carlos Hélder Freire Costa diz que “os nomes são aqueles que as pessoas nos escolhem chamar”. Na escola, escolheram tratá-lo por Hélder, e assim ficou.
A mãe, Olinda, ribatejana, da Golegã, costumava guardar as crianças, enquanto jogavam futebol nas ruas ou brincavam no Jardim 9 de Abril, com vista para o Tejo. Olinda reservava na entrada de casa um espaço especial para a fotografia de Américo, irmão mais velho de Hélder, que morreu com 12 anos, vítima de tuberculose óssea. “Éramos muito parecidos, toda a gente pensava que era eu quem estava no retrato.”
Pequeno, Carlitos foi proibido de ir ao funeral, que partiu de casa da família até ao cemitério da Ajuda, mas a persistência de Hélder Freire Costa manifestou-se desde cedo. “Como o funeral era a pé, fui atrás, a fugir da minha família. Para regressar, segui os cocheiros. Um deles, o Fernando, amigo da família, reconheceu-me e levou-me. Quando cheguei, apanhei porrada, mas queria despedir-me do Américo.”
Casado com o teatro
“Costumo dizer que me casei com o teatro”, brinca. Em 1966, ao mesmo tempo que era inaugurada a Ponte sobre o Tejo e Lisboa mergulhava num rebuliço, Hélder Freire Costa casava-se em Belém com a primeira mulher. O primeiro de três casamentos. “Fomos para Coruche, de lua de mel, onde uma das minhas irmãs tinha uma moradia. Só fiquei lá uma noite”, recorda. No dia a seguir, o senhor Bastos, para quem trabalhava desde 1964, já estava a ligar para o telefone fixo de casa.

“É uma vida hipotecada ao teatro”, confidencia Hélder. “Uma vez, quando a Ivone Silva adoeceu, antes de uma estreia, vivi no Maria Vitória durante 15 dias. Aqui dormi e tomei banho de água gelada”. A dedicação ao espetáculo valeu-lhe a posição de braço direito de Giuseppe Bastos. Nas funções de secretário, negociava com a banca e com a Direção Geral de Espetáculos, num tempo em que o regime tentava silenciar os artistas.
O “dono” do Maria Vitória não esquece o papel que a revista desempenhou na luta contra a ditadura. “Nós levávamos aquilo que era proibido. O público vinha porque ia ficar a saber coisas, nas entrelinhas e nas buchas. Denunciámos, por exemplo, a independência da Guiné”, explica Hélder.
Décadas depois, ainda conserva as inúmeras versões de revistas riscadas a vermelho pela censura. “Havia sempre um ensaio destinado aos censores, mas os artistas resistiam sempre. Uma especialista a lidar com eles era a Ivone Silva”, conta. “Dizia as falas rapidíssimo, o censor respondia que não percebia nada, ela lá dava uma lengalenga: ‘não percebeu!? Não me diga uma coisas dessas! Mas sempre falei assim. Olha leia o que está aí no texto, não posso dizer mais’. Chegava a uma altura que desistiam.”
Hélder Freire Costa, o homem das crises
As crises que Hélder enfrentou prenderam-no ao teatro e obrigaram-no a ser, uma e outra vez, o pilar do Maria Vitória. “Sou empresário de teatro obrigado pelos artistas”, afiança. Em 1975, a morar na Amadora, Hélder Freire Costa recebeu a notícia da morte do patrão pela visita do motorista da companhia. “Os artistas disseram que me ajudavam caso ficasse à frente do teatro. Ainda comecei com a viúva, a dona Ausenda, mas fiquei sozinho, anos depois.”
Há 55 anos no Maria Vitória, não consegue esquecer o grande incêndio de 1986 que arrasou o teatro. “Depois de uma visita a Londres, a nossa grande referência teatral, decidimos modificar a iluminação do teatro, pondo as luzes da frente em varas”, explica. “Quando estavam a fazer a soldadura, notei que caiu uma fagulha e pedi para que parassem a instalação.”
Nessa noite, a família do Maria Vitória juntou-se para festejar, em Setúbal, o aniversário do doutor José Paulino Pereira, diretor do hospital da cidade. “Era muito nosso amigo. Um dia a Marina Mota sentiu-se mal num espetáculo e ele veio logo buscá-la”, lembra. À vinda para Lisboa, sem grande movimento na autoestrada, o ambiente do teatro tomou conta da faixa de rodagem. “Parámos, várias vezes, com as atrizes a fingirem que estavam a pedir boleia.”
Quando chegou a casa, Hélder recebeu uma chamada da “Manecas”, dona de um restaurante da zona. “O Parque era uma aldeia dentro da cidade, toda a gente se conhecia. Ela ligou-me a chorar, «Oh Costa vem já para aqui que o teu teatro está a arder”, recorda Hélder. “Numa gravação da RTP, o que parece ser um cão ao longe, sou eu a chorar.”
Todos procuraram proteger o “dono” do Maria Vitória, inclusivamente Krus Abecassis, presidente da Câmara de Lisboa, não o deixando ver os estragos efetivos. Levaram-no a casa, crentes de que iria descansar. Mas Hélder não é homem de fugir das crises. Lavou a cara, pegou numa lanterna e regressou sozinho ao Maria Vitória. “Quando me vi sozinho dentro do teatro, destruído, foi…”
A companhia do Maria Vitória foi para o Maria Matos e só regressou a casa em 1990. Esta não seria a última prova de fogo que Hélder enfrentaria. A crise de 2009 provocou um prejuízo de “milhares e milhares de euros”. “Do escritório, avisavam-me, mas pedi sempre que não dissessem o valor. É preciso muita coragem. Cheguei a ficar a dever dois a três meses ao pessoal que trabalhava comigo”, revela. “Quando estava quase a conseguir pagar veio a pandemia. Os apoios não dão para tudo.”

Ao fim de 58 anos dedicados ao teatro, não quer deixar cair o pano. “Quero continuar a fazer revista e mostrar que o Parque Mayer é útil ao país, não só à cidade de Lisboa.” Mas reconhece que há lutas que já não vai travar: “o Maria Vitória precisa de grandes obras, já não me compete a mim fazê-las”.
A resistência faz parte de si, o que suscita admiração no filho Diogo, o segundo de três. “Sou sincero, não sei como ele arranja força, depois de tantas crises. É muito otimista. Como é o último empresário do Parque, já considera sair daqui um ato de cobardia. Vai até onde conseguir ir e o deixarem”, comenta Diogo.
Não gosta de pensar que será o sucessor, nem gosta que o pai o diga, mas não esconde que tem isso em mente. Hoje, Hélder já não vai todos os dias ao Maria Vitória, mas não falha uma semana. No final, há acasos que hipotecam uma vida.

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* João Damião é aluno do mestrado de Jornalismo da Universidade Nova de Lisboa/ FCSH. É um tanto idealista. Acredita que o melhor futuro é pautado pela educação, informação, beleza e tolerância. É isso que o move a contar histórias. Está a estagiar na Mensagem de Lisboa. Este texto foi editado por Catarina Pires.
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