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A História de Lisboa ilumina-se de acasos curiosos. O nome do Parque Mayer é um dos mais resplandecentes. Neste local, em 1902, foi plantado um enorme jardim fronteiro a um palácio majestoso e prémio Valmor no ano da sua inauguração, o primeiro atribuído deste prémio municipal de arquitetura.
Chamava-se Palácio Lima Mayer, nome do seu rico proprietário e foi desenhado por Nicola Bigaglia, um arquitecto italiano adepto do estilo Neorenascentista que vivia e trabalhava entre Leiria e Lisboa desde 1888. Este palácio sobrevive ainda hoje mantendo a sua cota original, o mesmo nome, e alberga o Consulado Geral de Espanha.
Nos anos 20 muda de proprietário por duas vezes, sendo adquirido por Luís Galhardo, um militar apaixonado pelo teatro que ali realiza o sonho de edificar uma cidadela exclusivamente dedicada ao espectáculo. A este parque oferecido aos alfacinhas, repleto de restaurantes, cafés com esplanadas, barracas de jogos, pavilhões desportivos, teatros e carrosséis, decide manter o nome original: é que Mayer, sobrenome de origem hebraica, significa “iluminado”, também “ilusão”.
Galhardo segurou o enfoque do nome que iluminou até hoje os palcos do teatro da Revista à Portuguesa, que aqui ganhou cabeça, tronco e pernas.
Das pernas bonitas e bem torneadas, às mulheres da época não lhes era autorizado exibi-las naturalmente na rua sob pena de multa, porrada do marido ou pior castigo. Pernas desnudas e livres na ginástica de todos os movimentos, só no Parque Mayer. Ali, as coristas, algumas delas estrangeiras, e as vendedoras de cigarros e batatas fritas, seriam as únicas pernas livres em todo o cinzento Portugal de Salazar.
Pronto. Era aqui que queria chegar. Recordar um dos Mayers artistas galãs da Lisboa boémia, só comparado a um Stuart Carvalhais: o Mário Alberto (1925-2011)
Gosto de imaginar que foi por elas (as pernas das coristas), a magia das luzes, a liberdade vivida sobre e atrás do palco, que este “militante do prazer e heterossexual praticante” (inViriato Teles, Grande Amadora, 2002) dedicou toda uma vida até ao último suspiro.
Poucos, pouquíssimos, associam ao Parque Mayer este cenógrafo, pintor, actor, figurinista, caricaturista e outras coisas – antigamente era comum ao artista ser-se vários.
Hoje, Mário Alberto será recordado pelos ainda vivos ex-correligionários da velha boémia lisboeta ou pelos amigos e colegas do Grupo A Barraca, colectivo de teatro que ajudou a fundar com a actriz Maria do Cėu Guerra (com quem foi casado), teatro que neste momento sobrevive preliminarmente na escura sombra de um apoio do Estado que não o foi.
Eu, que não o conheci pessoalmente, com ele me cruzei por várias vezes nas ruas do Parque já semi-adormecido, nos últimos anos do passado século. Era já uma cidade-fantasma, mas ainda resistiam o ABC, o Variedades e o Maria Vitória, os restaurantes do Zé Manuel, do Chico Carreira, da Gina e da Mimi, um salão de jogos com bilhares e matraquilhos.
Nos finais dos anos 80, com os meus amigos perseguiamos um momento sacro a cada primeira terça-feira do mês: apanhar o cacilheiro para a Baixa, percorrer a Avenida e ir até ao jantar da Tertúlia do Clube Português de Banda Desenhada, conhecida por todos como a Tertúlia do Lino (Geraldes, outro Grande Alfacinha). Foram acontecer no Chico Carreira e depois na Gina, restaurante que julgo ser hoje o último do Mayer.
Foi nas suas traseiras, numa ruela colada ao Capitólio, que a figura sui generis de um senhor de boina preta à pintor, cachecol e longos bigodes brancos me despertou atenção por o encontrar a todo o sacro dia e noite parecendo deambular pela cidade-fantasma.
Passava por nós como não existíssemos e tinha um ar meio chateado, parecia andar zangado, zangado com o mundo – ou era o que eu enxergava, lá do alto da minha arrogância dos dezoito anos.
O Lino, que sabia tudo, abriu a cortina:
– Quem? O Mário Alberto? É um tipo muito particular, único. Recusa ver morrer o Parque Mayer. Vive mesmo aqui, numa pequena casinha que resistiu à demolição e que transformou em atelier.
– Atelier? É artista?
– Sim, ainda trabalha em cenários de teatro mas aqui dedica-se à pintura, faz umas coisas meio surrealistas com pitadas de erotismo e política pelo meio.
– Já visitou a tua Tertúlia?
– A nossa Tertúlia, Nuno. Não, o gajo não se dá com a malta dos quadradinhos. É um intelectual.
Riu-se, como só o Lino sabia rir e nunca mais me lembrei deste momento até este ano, ano em que se comemoram os 100 anos do Parque Mayer e os seus habitantes.
Há tanto por escrever sobre os vários papéis que Mário Alberto contracenou em vida, o aventureiro, o estudante de belas-artes em França, a sua amizade com a pintora Vieira da Silva, a sua estória repetidamente mal-contada em relação à Beatriz Costa que garantia ter-lhe financiado toda a sua estadia em Paris, o barman na Holanda, o pauliteiro na Turquia (sim, na companhia de um amigo bailarino, para ganhar uns trocos bailou as Terras de Miranda numa digressão de mais de 1 ano), o homem do cinema e da televisão, o percursor da “nova” Revista à Portuguesa, o homem de Angola (onde nasce), do Alentejo (para onde migra) e da Invicta (Teatro Experimental do Porto), o fundador de espaços como o fugaz Teatro Ádóque (Martim Moniz, 1974/82), o antifascista, o rezingão absoluto (sim, andava mesmo zangado com o mundo)…
A jeito de homenagem e falta de caracteres, aqui faço um retrato ilustrado, com pernas no cenário.

Nuno Saraiva
Lisboeta empedernido, colaborou praticamente em toda a imprensa nacional. Cartunista político, o seu traço é o traço de Lisboa, é o autor das imagens das Festas de Lisboa de 2014 a 2017, criador dos troféus das marchas, e há 10 dos seus murais nas paredes da cidade. O seu livro Tudo isto é Fado! ganhou o prémio do Festival internacional de BD Amadora. Dá aulas na Lisbon School of Design e na Ar.Co. São dele todos os desenhos na homepage da Mensagem.