Elizabeth Bochmann costumava espreitar pela cortina do Estrela Hall para ver a mãe, Celia Williams, representar em inglês, a língua que aprendera em casa. Aos 11 anos, e depois de muito insistir, pisou o palco daquela que era “a sua segunda casa” e passou assim também a fazer parte da companhia de teatro em inglês de Lisboa: a Lisbon Players.

Hoje, Elizabeth é atriz profissional, encenadora e professora de teatro. É a sua vez de levar o filho recém-nascido, Nathaniel, para os ensaios e espetáculos da nova produção da companhia. E de encenar a própria mãe, que tanto lhe ensinou.

A peça é An Englishman Abroad, com Celia Williams e Mick Greer nos papéis principais, e está em cena até ao dia 16 de abril no Teatro do Bairro. Tem um nome muito apropriado para uma companhia que faz teatro em inglês, em Lisboa. Parte de um texto de Alan Bennett sobre um encontro real entre uma atriz do WestEnd, Coral Browne, e um espião britânico exilado em Moscovo, Guy Burgess. Dupla atualidade, portanto.

Esta peça representa também um regresso: em 2020 a companhia perdeu o seu espaço, o eterno Estrela Hall, um edifício que fora cedido pela rainha D. Maria I no século XVIII às comunidades estrangeiras a viver em Lisboa. A explicação, irónica, é que o “quarteirão inglês” foi comprado por um investidor privado britânico. Depois, veio a pandemia.

O regresso da multiculturalidade aos palcos

Desta vez, o palco, emprestado, é o do Teatro do Bairro onde o elenco se reúne para posar para fotografias. Mobília bem inglesa, um cinzeiro, garrafas de uísque… e um quadro de Estaline. No meio de tudo isto, Vuk Simic toma a ousadia de pôr uma fita-métrica na cabeça, o principal adereço do alfaiate, a sua personagem.

Vuk já faz parte da família multicultural da Lisbon Players há muitos anos: veio para Portugal da Sérvia no final dos anos 90 à procura de Amália. Sim, essa, a Rodrigues. Não a encontrou, mas a viagem apontou-lhe outros caminhos: apaixonou-se por Lisboa e descobriu esta companhia, onde se divertiu durante anos a fazer teatro.

Entretanto, o trabalho de intérprete obrigou-o a regressar à Sérvia, mas volta à cidade do fado sempre que pode. Onze anos depois da última atuação, An Englishman Abroad marca o seu regresso aos palcos, e Vuk não podia estar mais feliz.

Marco Fernandes é a mais recente aquisição da companhia. Recém-chegado a Lisboa de África do Sul e português do lado paterno, Marco sempre quisera vir para a capital portuguesa, mas não sabia como continuar a sua carreira artística – até que encontrou a Lisbon Players, onde conheceu a atriz Celia Williams, mãe de Elizabeth Bochmann, que brinca com o chapéu ao estilo russo da sua personagem.

É ela quem melhor pode contar a história do grupo. Nos anos 1980, era uma jovem atriz inglesa chegada a Lisboa do Brasil, onde estivera durante uns tempos. Vinha acompanhar o marido, músico que aqui arranjara trabalho, e com o sonho de continuar a carreira no mundo do teatro. Só não sabia bem como: afinal, não falava português.

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Vuk Simic, Celia Williams e Marco Fernandes no palco do Teatro do Bairro. Foto: Inês Leote

A mais antiga companhia de teatro de Lisboa?

Celia percorreu Lisboa e os seus recantos, até encontrar a Lisbon Players, no Estrela Hall, o famoso “quarteirão inglês” – que inclui o cemitério, junto ao Jardim da Estrela. Dos seus primórdios, já ninguém se lembra, mas tudo terá começado com uma brincadeira entre expatriados ingleses em 1947, o que a torna a mais antiga companhia de teatro em Lisboa.

Contrariamente ao que se possa pensar, o objetivo nunca foi fazer teatro à inglesa, embora o apego à tradição teatral londrina tenha certamente pesado na criação da companhia. Mas a ideia era uma só: preencher-se a lacuna que existia em Lisboa no que diz respeito ao teatro em inglês. E por isso aqui sempre se fez um pouco de tudo: teatro do absurdo, teatro português, teatro a partir de textos originais.

Quando Celia chegou à Lisbon Players, já não era só de ingleses. Era, sim, uma companhia multicultural, com gente de todos os cantos do mundo, incluindo portugueses, claro. É que para se participar nos espectáculos desta companhia basta apenas cumprir-se um critério: falar-se inglês. O trabalho é de voluntariado e o dinheiro angariado reverte para o próximo espetáculo.

Ao longo dos anos, Celia, que tem hoje uma vasta carreira no mundo do teatro, do cinema e da televisão, assistiu à chegada e à partida de muitos atores. A Lisbon Players foi aliás rampa de lançamento de alguns nomes bem conhecidos do público português como Catarina Wallenstein. Mas os últimos anos foram, claro, complicados.

Agora, a companhia regressa em força, desta vez no Teatro do Bairro enquanto a Associação Desportiva e Cultural da Encarnação e Olivais (ADCEO) (onde ensaiam e guardam o seu material) não está disponível para apresentações.

Ser-se estrangeiro em Lisboa

E regressa com um espetáculo a partir de um texto escolhido por Celia que fala sobre um tema que é querido a muitos dos que estarão na plateia: como é ser-se inglês no estrangeiro. Mas a atriz não escolheu este texto por esse motivo. “Estou em Lisboa há 40 anos, não preciso de estar ligada a casa”, replica.

Celia escolheu-o por ser divertido: é um texto carregado de humor britânico. “Alan Bennett é um autor incrível, cada palavra é muito pensada. Não é o tipo de peça que se queira alterar porque é muito boa e queremos respeitá-la”. Não se trata portanto de fazer humor inglês, mesmo que a peça esteja carregada dele, mas de fazer um espetáculo que seja apelativo para todos os públicos de Lisboa.

Afinal, todos estes atores são um pouco de todo o lado – mas sobretudo desta cidade. Marco Fernandes descreve Lisboa como “uma vila numa cidade” pela facilidade em chegar de um sítio ao outro e pela familiaridade que existe entre as pessoas.

Vuk Simic tem muito para contar, não se cansa desta cidade onde viveu 14 anos: “Lisboa é uma mulher”, diz com uma entoação poética, misturando o inglês com o português que já conhece de trás para a frente. E canta muitas músicas… É aqui que ele quer assentar – isto se ganhar o Euromilhões, pois só assim conseguirá comprar uma casa, remata entre gargalhadas.

Celia, por vezes, quando não está com pressa, tenta lembrar-se de olhar para o céu. Aí, contemplando os edifícios de Lisboa, pensa: “Isto é mesmo bonito!”.

O elenco parte para os camarins. Celia Williams enrola o cabelo e prepara-se para mais uma noite a representar. Daqui a nada, estará atrás da cortina, aguardando o início do espetáculo. Do outro lado, a luz difusa vai preencher o espaço e os copos vão tilintar no bar do teatro em pleno Bairro Alto. A cortina vai subir, as vozes vão cessar e Celia terá a palavra na sua língua materna na cidade que agora considera casa: Lisboa.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt

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