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Quase nunca vou a farmácias, o que se pode interpretar como sendo uma coisa positiva, digo eu, mas a verdade é que naquele dia, mesmo ali ao pé de casa, na Passos Manuel, decidi entrar na farmácia.
Há vários tipos de cheiros que temos gravados no cérebro e que têm a ousadia de despertar vívidas memórias, sem avisar, do nada, quando com eles nos cruzamos. Assim são para mim as farmácias e as drogarias. É como se entrasse numa máquina do tempo. Talvez sejam cheiros parecidos a químicos importados, embalados, cheiro a vozes experientes e monocórdicas, cheiro a mãos ossudas percorridas por salientes veias azuis.
Entrei na farmácia com uma missão muito clara, a de ver o x-acto a cortar meticulosamente o rectângulo de cartão onde está desenhado o código de barras, mas admito que lá no fundo sabia que já ninguém faz isso. E a bem da verdade, jamais entendi porque o faziam, imagino que tivesse a ver com prescrições, burocracias e tais complicações.
O certo é que aquela tarefa, hoje inútil, despertava em mim um furor de sensações estranhamente agradáveis. O barulho da lâmina a percorrer o cartão, o som do código de barras a ser rasgado da embalagem, sem nunca a deixar com um buraco, sem nunca a perfurar de um lado ao outro, deixando-a apenas com pequenas fibras despenteadas de cartolina.
Essa sempre foi, para mim, a verdadeira mestria das pessoas que vestiam aquelas batas brancas, mais relevante ainda do que saber de cor todos aqueles nomes abstractos e o seu respectivo paradeiro naquela sala misteriosa cheia de gavetas que fica atrás do balcão.
Fingi estar interessado em comprar algo, talvez um batom para o cieiro ou uma remessa de máscaras Pf2 de cor original. Estávamos sozinhos na loja e eu estava decidido a perder a vergonha e pedir à senhora da farmácia para levar a cabo aquele ritual tão especial da remoção do código de barras, só para mim, como um favor especial.
É então que soa a campainha que indica a chegada de um novo cliente, uma senhora por sinal.
– Bom dia, em que posso ser útil? – pergunta a senhora da farmácia.
– Venho comprar comprimidos para a felicidade.
– Com certeza, quer a embalagem de 500 mg ou a de 800 mg?
– Eu estou mesmo muito triste.
– Nesse caso pode tomar dois de 500 mg, um de manhã e outro ao fim da tarde, sempre faz mais efeito do que apenas um de 800 mg.
Ainda fiquei na expectativa ilusória de que a farmacêutica sacasse do x-acto, mas tal não aconteceu, foi uma troca fria, acompanhada de sons electrónicos.
Saí da farmácia e interceptei a senhora triste já lá fora. Depois de me desculpar por importunar, perguntei porque razão estava triste. A senhora disse-me que eram todos uns porcos, na vida dela. Reconheci que a senhora era realmente boa observadora, mas alertei para o facto de o mundo estar repleto deles, não somente na vida dela.
A senhora ficou surpreendida pelo meu interesse na sua pessoa.
– Cabe-me perguntar porque razão se interessou na minha tristeza.
– E porque não? – respondi
Caminhámos um pouco, lado a lado, pela rua, passámos por um edifício com uma placa que dizia “Fernando Pessoa viveu aqui com a sua Tia Anica, entre 1912 e 1914”.
– Acha que o Fernando Pessoa andava triste como a senhora? Sempre me pareceu meio tristonho ele – observei.
– Se eu vivesse com a minha tia aos vinte e tal anos, acredite que estaria ainda mais triste – respondeu a senhora enquanto esboçávamos uma gargalhada.
– Porque não se junta a mim e vamos curar a tristeza à moda de Pessoa? – sugeri
– Ajude-me a perceber que maneira será essa, de maneira romântica?; de maneira esquizofrénica?; de maneira esotérica?; de maneira misógina?; de maneira impressionista?; de maneira modernista?; de maneira genial? Qual é o seu prisma?
– Eu pensei numa maneira mais corriqueira, mais vulgar, talvez até mais ortónima. Um copo para começar, num lugar à sua escolha.
– Eu aceito, mas primeiro tem de me confirmar que não acredita em signos, não suporto a conversa dos signos.
– Desgosto de muita coisa, signos estará na cabeça da lista, certamente.
Descemos até à Rua dos Anjos e sentámo-nos numa pequena esplanada. Ao nosso encalço chegou um simpático jovem a perguntar o que desejávamos, eu pedi “uma cerveja” a senhora triste respondeu “felicidade”.
– Atenção que felicidade líquida, misturada com felicidade em comprimido, pode trazer fortes alterações – alertei
– Não foi você que disse para curar a tristeza à moda de Pessoa?
Decidimos fazer um percurso pela cidade de Lisboa, um percurso de bar em bar como se fossemos ambos Pessoa, traçámos como destino final “A Brasileira”, um cliché que teria de fazer parte.
– Acha que Pessoa também tinha a vida estragada pelos porcos à volta dele? – perguntou-me a senhora triste.
– Acho que talvez os papagaios o incomodassem mais – respondi
– Papagaios?!
– Sim, ora repare “é a capacidade de reflectir, porém sem ideias próprias; de criticar, porém com ideias de outrém”
– Realmente de porcos e papagaios, está o mundo cheio.
Fiz de pateta durante a nossa odisseia, de pateta alegre para ver se animava a senhora triste. Já não me lembro em que jardim da cidade estávamos quando senti a temperatura a descer, juntei uma série de galhos, paus e ramos, fiz uma pequena fogueira ali mesmo no meio do jardim, o fumo dos paus a queimar podia sentir-se no ar, cheirava a ousadia, cheirava a atrevimento, isso aquecia mais do que as próprias labaredas.
– Acha que o fogo é triste ou é alegre? – perguntou a senhora.
– O fogo é calor, é luz, é energia, como é que pode ser uma coisa triste? O fogo é alegre, com certeza – respondi
– Mas repare que para que o fogo exista, é necessário que ele consuma a matéria que o alimenta, sem isso, o fogo não subsiste e quando a matéria for consumida na totalidade o próprio fogo vai morrer.
– Talvez valha a pena o sacrifício, digo eu.
Num momento menos agitado, tomei a liberdade de olhar as formas e o rosto da senhora triste com mais detalhe. Tinha a nítida sensação de que a conhecia de outras bandas.
– Sabe que agora que a vejo mais de perto e com mais calma, será possível que nos conheçamos de antes? – a senhora disfarçou e perguntou de que signo é que eu era, acabei por não ter resposta.
Subimos até ao Miradouro da Graça, mas na nossa cabeça estávamos a subir a um outeiro. Eu era um pastor de cajado na mão, a senhora triste era Alberto Caeiro. Olhámos a cidade lá de cima e fingimos ver o nosso rebanho, ouvimos os balidos, os chocalhos, os grunhidos e o palrar. Talvez as coisas não tenham mudado assim tanto, talvez a Lisboa de Pessoa não fosse assim tão diferente da nossa, talvez a tristeza de ontem fosse a mesma de hoje, talvez a felicidade fossem ainda pequenos rectângulos de cartão cortados com x-acto.
Certo é que a nossa viagem com Pessoa nos ajudou a perceber que é preciso abraçar a tristeza para perceber a alegria. Prometemos um ao outro que não seríamos nem cordeiros, nem porcos, nem papagaios, fizemos disso o nosso mote, a nossa motivação.
Acabei por dançar descalço com a senhora triste em vários pontos da cidade, ando com ela de bar em bar e ainda hoje não chegámos à “Brasileira”.
* João Santos Pereira vive entre o Mediterrâneo e a sua querida Lisboa. Fingiu estudar em vários sítios, de onde até um Mestrado em Gestão Desportiva surgiu, mas sempre aprendeu mais com as pessoas do que com o ensino estabelecido. Viaja pelo mundo, a pé sempre que pode, o mesmo aplica na cidade das sete colinas. Gosta de beber vinho tinto e de jogar à bola, acompanhado por gentes de falas várias, sempre que possível. Dedica posteriormente o seu tempo a escrever as aventuras que daí advêm.