Receba a nossa newsletter com as histórias de Lisboa 🙂
A arte que cria nasce das paisagens que acompanham os seus dias. Bruno Gaspar, de 42 anos, fotografou Macau, onde viveu, e desenhou Leiria, onde cresceu. Por agora, e enquanto não parte para nova aventura, são as ruas de Alvalade e, sobretudo, a vida de rua da Avenida da Igreja, o objeto das suas ilustrações, sempre pontuadas por personagens mais, ou menos, inusitadas.
Nasceu em Paris, num meio que lhe deixou “um bichinho” pela criação artística. Licenciou-se em História da Arte e fez cinema de animação, mas não era a sua praia. Precisa de resultados “mais imediatos” e, ali, “um segundo de imagem são 24 desenhos”. Chegar ao final do dia com dois ou três segundos feitos não satisfazia.

Fotografou, pintou, desenhou e o gosto pelo cinema etnográfico levou-o a tirar da gaveta um festival de cinema que, até 2018, teve cinco edições – o cinANTROP. Andou pelo continente asiático e, apesar de estar a pensar mudar-se para a Dinamarca, é em Lisboa que está em casa. Foi a cidade que o recebeu aos 18 anos, vindo da aldeia do distrito de Leiria que, desde os três, foi casa.
Em 2013, arrancou de Caminha para percorrer a costa portuguesa, na sua antiga motorizada Macal. Escreveu sobre a viagem para os jornais Sol e I, acompanhando os seus textos com fotografia e desenho. As suas aventuras, dentro e fora de fronteiras, pararam por agora, e regressou a Lisboa.
Hoje, já é “mais de Lisboa do que de Leiria”. Vive em Alvalade e, antes de ser Bruno Gaspar, de tarde, de manhã é Kasper Andersen. “É uma forma de sair de mim e de fazer aquela viagem dos 40 anos”, diz. É Kasper o responsável pelas ilustrações da vida do bairro.


Desenha a vida da Avenida da Igreja, uma das avenidas de bairro com mais vida da cidade, e pontua as cenas tradicionais através da personificação de animais e objetos curiosos. Os carros que estacionam em terceira e quarta filas, as filas para o frango assado da churrasqueira Rio de Mel, os gelados da Conchanata ou as pessoas que desfilam pelas ruas nas manhãs de fim de semana.
De tarde, abandona o seu alter ego dinamarquês para voltar a assumir-se Bruno Gaspar, no seu atelier na Avenida Gago Coutinho, onde prossegue um trabalho de criação artística diferente, onde se sente “mais confortável” – na pintura.
“É o Kasper Andersen que pensa assim”
Vive ali, por perto, e todos os dias passa de bicicleta pela Avenida da Igreja. Vai absorvendo a vida que encontra e faz a tradução do que vê para o papel, encarnando o seu alter ego. “Há pessoas com quem me cruzo todos os dias, a passear. Depois, fixo-as”. E, depois, conta, há pessoas com quem “embica”.
“É o Kasper Andersen que pensa assim”. É uma figura “muito simples. Tem um bigode e um cachimbo”, mas não tem por hábito aparecer. A figura “não tem grande explicação”, garante. Os animais também “não têm simbologia nenhuma”. É comum perguntarem-lhe: ‘Porquê uma girafa?’. A resposta, fácil, é: ‘por nada’. Mas não deixa de ser possível traçar uma relação entre a natureza dos animais e objetos que escolhe e as circunstâncias da paisagem urbana que retrata.
O vinil, em frente à pastelaria Carcassone, encara a loja de frente por uma razão. “Aquilo já tinha sido uma discoteca, outrora. E como é uma discoteca dos anos 80, estou a imaginar o tipo, parado no tempo, de vinil. Às vezes, há essa ligação”, que se encontra, também, na loja de pastéis de nata, que leva uma bola de Berlim a fazer fila, ou nos gelados Conchanata, com sabores que atraem pinguins.

Na Rio de Mel, churrasqueira da avenida conhecida pelas longas filas para levar frango assado para casa, ao lado de outras churrasqueiras menos concorridas, Bruno Gaspar usa a “contradição”. Um porco, com a sua pasta de negócios, passa pela fila, constituída por uma mulher, uma fatia de pizza e uma salsicha.


É Kasper, porque é Gaspar, e é Andersen porque, recentemente, surgiu-lhe a hipótese de ir viver para Odense, na Dinamarca, onde nasceu Hans Christian Andersen. Se for, “faz de contas que sou o Kasper Andersen”. Enquanto a mudança não se concretiza, o Kasper é “um boneco” seu, é nele que se transforma durante as manhãs em que ilustra a vida de Alvalade.
Entre as pessoas com quem embica na freguesia, estão os condutores que não o respeitam na estrada. Esses, substitui-os, por vezes, por camelos. “Gosto muito de situações inusitadas, ridículas, a cair no nonsense”. “Não me irrito com tudo, mas estas coisas irritam-me: o sôtor, que devia ser um gajo educado, porque é formado, põe [o carro] em quarta fila”.
No Pomar de Alvalade, restaurante junto à Avenida da Igreja onde se comem, entre outros pratos, pregos, encontra-se uma mulher a partilhar mesa com um prego. Na mesa ao lado, está um martelo. “Não são piadas muito inteligentes”, comenta Bruno. “Quem não quiser, não ri. Se gostarem da técnica, ótimo. Se não gostarem, também não há problema”.

A Avenida da Igreja de Bruno Gaspar na Biblioteca dos Coruchéus
Quando desenha o edifício da Biblioteca dos Coruchéus, desenha um gato que lhe costuma aparecer. É precisamente ali que está patente a exposição “De manhã sou Kasper Andersen”.




Até 29 de abril, os trabalhos do alter ego dinamarquês de Bruno Gaspar podem ser visitados naquele equipamento municipal da freguesia de Alvalade, próximo à Avenida da Igreja.
Para breve, conta Bruno, poderá estar a publicação em livro de vários volumes do trabalho de Kasper Andersen.

Frederico Raposo
Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.
✉ frederico.raposo@amensagem.pt