Lorena Travassos arrasta uma mala pela calçada de Lisboa. Quem por ela passar, talvez pergunte: aeroporto, estação de comboio, terminal rodoviário? Mas a paragem de Lorena é outra e aquilo que traz na mala não são roupas. Noutros tempos, os bens que transporta seriam confiscados, até mesmo queimados, se fossem parar às mãos erradas.
Lá dentro, está o catálogo da livraria Greta, uma loja online que vende livros e outros materiais produzidos por mulheres, e que está prestes a inaugurar-se no espaço Valsa, na rua Angelina Vidal, para um evento de poesia.
Chegada ao seu destino, a professora brasileira organiza os livros: Susan Sontag, Simone Weil, Simone de Beauvoir, Judith Butler. Obras escritas por mulheres que lutaram pela igualdade e que surgem ao lado de novos nomes da literatura: Judite Canha Fernandes, Ana Freitas Reis, Carolina Zuppo Abed, Gabriela Abreu.



O embrião de uma livraria
Dar voz a quem não a tem. Neste caso, às mulheres que escrevem e que lutam para serem lidas. Esta foi uma ideia que começou a formar-se durante a pandemia. Lorena, professora de Comunicação Visual na Universidade Nova de Lisboa e especialista em arquivos coloniais e estudos de géneros, sempre quis ter uma livraria. E faltava em Lisboa um espaço dedicado à literatura de autoria feminina. “Quando vamos a uma livraria, são sempre pouquíssimos os livros escritos por mulheres”, diz.
O nome, contrariamente ao que o leitor possa pensar, nada tem a ver com Greta Thunberg. Foi antes inspirado por uma passagem d’As Mil e Uma Noites em que uma personagem diz: “Sou uma mulher de seios e greta”.

O termo agradou a Lorena, mas não quis enveredar pela ideia de “greta” enquanto “vulva”, até porque há mulheres que não a têm, como diz a própria. “Gosto mais de greta como fresta”, explica. “Fresta como um espaço de abertura”.
Assim, com a ideia já delineada, a professora lançou uma campanha de crowdfunding e conseguiu reunir dinheiro para montar o site, que já está operacional desde outubro de 2021. Nascia a livraria Greta, um espaço de abertura que celebra os progressos alcançados pelas mulheres na literatura, divulgando trabalhos já conhecidos sobre o feminismo, mas promovendo também livros de pequenas editoras.
Mais vozes na literatura
“Uma mulher foi esta segunda-feira morta à facada pelo marido em plena via pública”. Judite Canha Fernandes declama como quem sussurra ao ouvido de uma amiga. A comoção abranda e o silêncio impõe-se na sala.

É o primeiro verso do poema “Notícias de qualquer país” do seu livro A Fúria da Loiça da China e que ilustra bem aquela que é a razão de ser da livraria Greta: dar visibilidade às mulheres.
É um extraordinário acaso que o primeiro espaço que acolhe os livros da Greta e as suas autoras se situe na rua Angelina Vidal, o nome da jornalista e escritora do século XIX que desafiou convenções e lutou pelos direitos das mulheres e dos trabalhadores. Escreveu e publicou num tempo em que para publicar uma mulher tinha de pedir autorização ao marido.
Hoje, Judite Canha Fernandes, a poeta que declama, já não tem de esconder a sua poesia em vestes religiosas ou debaixo da almofada para serem encontradas daqui a séculos. Mas a poeta também sabe que ainda há um caminho a percorrer.
É que Judite só conseguiu deixar o seu nome nas páginas dos livros à custa de umas quantas batalhas. Há 15 anos, cometeu a loucura de trocar a Biologia pela poesia e o percurso nem sempre foi fácil, mas não o trocaria por nada: “Sempre gostei dos trabalhos que fiz, mas gostar é uma coisa, ser a tua coisa é muito diferente”.
Escrever é um trabalho difícil para qualquer um. “Ninguém vive só da escrita”, como diz a poeta Ana Freitas Reis, autora do livro Cordão. Mas é ainda mais difícil para quem é mulher. “Ainda há uma diferença em termos de salário e de visibilidade em relação aos homens”, reconhece Judite Canha Fernandes. E essa luta pela igualdade continua a ser política e necessária, dizem.
Judite escreve sobre as suas feridas e encontra na escrita a cura. Ana, que é também psicóloga, datilografa na sua máquina de escrever e da fúria das teclas nascem livros. Mas não pertencem a uma “literatura feminina”, expressão que estas duas autoras abominam.
“Não sei o que é isso do feminino. As mulheres escrevem de forma diferente, pensam de forma diferente, partem de um lugar diferente, por que é se pensa que há uma essência comum?”, questiona Judite.
A poesia como arma política
Gabriela Abreu tem a voz adocicada pelo sotaque brasileiro. Os seus grandes olhos castanhos tudo observam enquanto está em palco. Ela, que é jornalista e responsável pelo evento Sarau Delas, encontra-se entre a prosa e a música, que é como quem diz, na poesia.
“Ao escrever, eu posso compartilhar o que vivo e inventar o que não vivo”, diz a autora de Noite do Meio. “Posso salvar uma mulher que está na esquina. Faço-me nesse lugar”.
A ideia de que a literatura é um veículo para a mudança está bem presente no ADN da livraria Greta. E por isso esta não será eternamente um espaço online, acredita Lorena, que quer montar um espaço físico onde marquem presença aqueles grupos que, durante séculos, foram excluídos da discussão literária: as mulheres, claro, as comunidades LGBTQIA+, migrantes e afrodescendentes.



Um lugar onde as pessoas sintam e pensem a literatura, que é o que acontece com Carolina Zuppo Abed, professora de escrita e autora de Passatempoemas. Ela sente a poesia de forma visceral. Mulher brasileira de origens sírias, diz escudar-se no humor para se defender da sua timidez natural. Mas é incisiva nas ideias – e na escrita. Quer fazer das suas palavras “uma política de vida”.
É ela mesma que diz, em relação ao poema “Notícias de um país qualquer” que Judite declama: “Podemos estar aqui a falar intelectualmente durante horas. Mas o poema da Judite passa pelo intelecto, pelo corpo, pela emoção”.
Os livros passam por todas essas camadas. As palavras transportam os leitores. E aquelas que nem sempre foram lidas “escrevem de um milhão de maneiras” – é o que Judite não se cansa de dizer. A livraria Greta quer abrir “frestas” na literatura para que todas essas mulheres tenham agora voz.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt
Maravilha ver o trabalho de uma amiga, como a Lorena tomando corpo e forma em Lisboa.