António Pereira da Trindade passou a infância a brincar à volta de livros e antiguidades. Desde que se lembra, o pai e os avós, alfarrabistas, compravam e vendiam antiguidades e livros pelo país e por várias cidades europeias.
Em criança, aprendeu a distinguir os livros mais valiosos e também a preciosidade das pratas, porcelanas, mapas e gravuras, habilidade que muitas vezes o fazia destacar-se entre os amigos. Por ter “bebido todo este conhecimento”, foi-lhe natural seguir o negócio de família. É ele que está à frente, hoje, da Livraria Trindade, na Rua do Alecrim, em plena baixa lisboeta.

O negócio tem quase cem anos e não nasceu em Lisboa. No final da década de 1930, durante a Segunda Guerra Mundial, os avós de António Trindade começaram a comprar recheios de casas, bibliotecas e capelas e a negociavam-nos em Alcobaça. Tiveram quatro filhos e três deles seguiram o mesmo negócio e, após a Guerra Colonial, fixaram-se na baixa de Lisboa.
O pai de António estabeleceu-se na Rua da Anchieta e comercializava livros e antiguidades, nunca se restringindo a um só produto. “Houve alturas em que vendia muitos mapas e gravuras antigos e tinha antiguidades, mas havia períodos em que só comprava bibliotecas”, conta António Trindade. Esta diversificação continua a ser seguida por António Trindade. “Eu de certa maneira também não tenho [uma especialização] porque tenho neste espaço pratas, móveis, pinturas, gravuras, porcelanas e mantenho os livros”, diz.
Chiado: o bairro das letras, dos livros e dos alfarrabistas
Em 1988, o pai mudou a loja para a Rua do Alecrim, morada em que outros familiares já estavam estabelecidos. Até ao ano passado, o primo de António Pereira da Trindade, Bernardo Campos Trindade, mantinha uma livraria umas casas acima, que fechou porque a renda se tornou “incomportável“, e, em frente, o tio tem uma loja de antiguidades.
A escolha da família pela baixa de Lisboa prende-se com razões históricas e com a dinâmica da cidade. “Há cerca de 170 anos, foi nesta zona da baixa, do Bairro Alto e do Chiado, que sempre se encontraram as livrarias porque era uma zona de elite, havia muitos palácios e era o centro nevrálgico cultural”, explica o alfarrabista. “No século XIX, era muito comum essa burguesia emergente, de que as personagens dos Maias são exemplo, terem bibliotecas e comprarem livros antigos, portanto houve sempre grandes colecionadores”.
Para além disso, era no Bairro Alto que se concentravam as tipografias. “Os livreiros, as editoras e os jornais, o Século, por exemplo, vinham imprimir a esta zona, que sempre foi um cluster cultural”, afirma, lamentando que o turismo tenha levado ao fecho de muitos alfarrabistas na Baixa devido à pressão imobiliária.
António Pereira da Trindade diz que o facto de o seu negócio ter sido reconhecido no programa “Lojas com História” da Câmara Municipal de Lisboa lhe permite ter uma “renda controlada” e, desta forma, continuar à frente do estabelecimento e impedir que o seu espaço se transforme em mais um “McDonalds”.
O valor dos livros antigos
É esta vontade de manter a identidade da Baixa e do país que o apaixona no negócio. Para o livreiro, ao colecionar livros raros e antigos está a “preservar a nossa história”, já que os livros têm um “valor patriótico”. “Há uma identidade nacional inerente ao texto, aos livros, aos poetas, aos escritores e aos historiadores da nossa língua”, diz.
Para além da sua importância histórica, os livros também têm um valor sentimental, uma vez que passam por várias gerações. “Muitas vezes chegam-me às mãos livros que passaram por cinco, seis ou sete famílias diferentes, foram vendidos, muitas vezes com carimbos e ganham valor.”
No entanto, não basta ser antigo para que um livro se torne valioso, esclarece o alfarrabista. “Por exemplo, quando vou às casas ver o recheio para comprar, há sempre muitas enciclopédias, que eram livros que toda a gente tinha em casa, mas hoje as informações das enciclopédias estão online e, portanto, esses livros perderam totalmente o valor.”

Mas há conhecimento que só se encontra nos livros e, por isso, António Pereira da Trindade vê nos bibliófilos os seus clientes mais fiéis. Estes compradores querem o livro pela “raridade ou pelo interesse histórico”. Podem ser primeiras edições ou livros com dedicatórias assinadas pelos autores.
“Há quem compre só poesia ou só livros de arte ou livros ligados à expansão portuguesa e aos Descobrimentos. Outros só querem livros sobre aristocracia ou sobre heráldica. Há também quem compre só autores do século XIX”, exemplifica.
Para além dos bibliófilos, os estudantes e os professores universitários são também clientes assíduos, já que “o mercado português é pequeno e não há muitas edições e, se se quiser estudar sobre um assunto mais antigo, já não há livros à venda”.
Na Alfarrabista Trindade não faltam livros antigos, sobre história de Portugal, literatura portuguesa, arte e poesia. Há também várias primeiras edições e livros assinados por autores, como um livro de aves portuguesas pintado pela mão do Rei D. Carlos.
* Daniela Oliveira nasceu no Porto, há 22 anos, mas a vontade de viver em Lisboa falou mais alto e há um ano mudou-se para a capital. Descobrir Lisboa e contar as suas histórias sempre foi um sonho. Estuda Ciências da Comunicação na Católica e está a fazer um estágio na Mensagem de Lisboa. Este artigo foi editado por Catarina Pires.
As Histórias destas livrarias levaram -me à Minha Lisboa dos anos 60 e 70 quando era difícil respirar Liberdade. As novas Livrarias sāo a garantia que os Livros nāo morreram. Obrigada por está bela reportagem.