A exuberância do Charleston e do Foxtrot, dançados ao ritmo ditado pelas jazz bands e pelo frenesim que se vivia numa Europa saída da Grande Guerra e de uma pandemia, chegou a uma Lisboa mergulhada em sucessivas crises económicas e políticas, com os governos a sucederem-se a um ritmo de semanas ou até mesmo dias e sedenta do otimismo, progresso, esperança e libertação que ecoavam de capitais como Paris ou Londres, eternas referências da alta sociedade lisboeta.

Despreocupada da miséria do povo e da crise em que estava mergulhado o país, uma elite, chique, endinheirada, a que o Diário de Lisboa se referia como “smart-set”, importou para a capital portuguesa os années foles, de Paris, roaring twenties, de Londres. Deu nova vida ao eixo Baixa-Chiado (e arredores), prolongando o dia pela noite dentro, entre a prática de desporto, as compras nas lojas da moda, o encontro (e o flirt) em cafés e pastelarias “obrigatórios”, a ida às últimas novidades do cinema e do teatro e a música, dança, jogo, álcool e por vezes da cocaína, nos clubes e cabarets exclusivos.

É essa nova vida que a investigadora Paula Gomes Magalhães retrata no seu livro Os Loucos Anos 20 – Diário de uma Lisboa Boémia.

Lisboa era uma festa nos anos 1920?

Era. Depois de os lisboetas terem estado muito fechados e controlados devido à Grande Guerra e à Gripe Espanhola e tudo o que estes acontecimentos condicionaram nas vivências e na sociabilidade, a vida saiu à rua e para espaços como os cabarets, os clubes, os cafés, as pastelarias, etc. O ambiente de festa era uma constante.

Para quem é que Lisboa era uma festa?

Sobretudo para uma elite com dinheiro, claro. Estamos a falar de um nicho da população, mas que se calhar não era assim tão pequeno como isso. Não eram meia dúzia, porque se estes espaços existiam e se iam multiplicando era porque tinham quem os frequentasse. Mas quando falamos da Lisboa boémia, que pode viver sem se preocupar com o dia de amanhã, falamos sobretudo de uma elite endinheirada. A grande maioria da população, no entanto, o povo trabalhador, tinha mesmo que se preocupar com o dia de amanhã e não tinha acesso a este modo de vida hedonista e boémio.

Esse modo de vida chegou cá ao mesmo tempo que ao resto das capitais europeias?

Nós andamos sempre um bocadinho ao ralenti, mas não se consegue definir exatamente quando começaram os chamados “loucos anos vinte”, ou “roaring twenties”, em Lisboa. Os clubes e cabarets nasceram ainda antes do final da Grande Guerra. Ainda não funcionavam como viriam a funcionar, mas já estavam abertos, com o jogo ilegal. As coisas foram acontecendo naturalmente, influenciadas, claro, pelos ecos de Paris ou Londres, e à medida que iam sendo criados mais espaços que proporcionavam essa vivência boémia.

Geograficamente, como é que se delimitava essa Lisboa boémia?

Os clubes e cabarets, nos Restauradores e Portas de Santo Antão, as lojas da moda, os cafés e as pastelarias, no Chiado, onde estavam também os teatros e os novos cinemas, que surgiam. O Chiado continuava a ser a grande centralidade de Lisboa.

Quando o Tivoli abriu na Avenida da Liberdade, nessa altura, os jornais referiram-no como sendo “um pouco longe do centro”.

Porque nasceu como cinema de estreia e de facto o centro era o Chiado. Já não era “Portugal é Lisboa, Lisboa é o Chiado e o Chiado é o Marrare” dos tempos do romantismo, mas não andava longe.

Mas começavam então a surgir novas centralidades. É precisamente nos anos 1920 que nasce a Versailles, para dar vida social a essa nova Lisboa.

O interior da pastelaria Versailles, em 1929, numa reportagem do Notícias Ilustrado, sobre os “estabelecimentos que modernisaram Lisboa”.

Houve uma certa Lisboa endinheirada que se instalou e passou a morar naquela zona da cidade, as Avenidas Novas, habitadas por uma elite, mas onde faltavam espaços de sociabilidade, que se fazia muito na rua e a Versailles veio criar esse espaço. Quem ali vivia tinha que se deslocar ao Chiado para frequentar uma pastelaria da moda, porque era importante ser da moda. A Versailles veio preencher essa lacuna.

Quais eram os lugares que importavam?

A sociabilidade é o elemento central dos “loucos anos vinte”, era preciso estar em determinados espaços, ver e ser visto nesses locais, nos cafés da moda, nas pastelarias da moda, nos hipódromos, onde aconteciam as corridas de cavalo, porque era lá que estava quem interessava ver e por quem interessava ser visto. A Brasileira do Chiado, a Garret, a Ferrari ou a Bénard, o Café Chiado, o Martinho, o La Gare ou o Café Suisso, no Rossio, são exemplos de patisseries e cafés “obrigatórios”, o Bristol, o Maxim’s ou o Magestic, que depois passou a Monumental, onde é hoje a Casa do Alentejo, eram os grandes clubes e cabarets da Lisboa boémia desta década. E depois havia as lojas – a Gardénia, a Casa Eduardo Martins, a Paris em Lisboa, a Casa Ramiro Leão ou a Pompadour –, todas no Chiado, os teatros e os cinemas, o hipódromo do Campo Grande, que abre nessa altura, os espaços de passeio, na zona do Campo Grande ou do Chiado.

Os anos 1920 em cidades como Berlim ou Paris foram um momento significativo para uma libertação em termos de costumes e alguma emancipação das mulheres. Isso aconteceu da mesma forma em Lisboa?

Talvez não da mesma forma, mas há uma libertação feminina, sem dúvida, seja no ocupar de alguns cargos ou funções que antes lhes estavam vedados, seja na indumentária ou nos cortes de cabelo, que, parecendo que não, é importantíssima. Antes da Grande Guerra, as roupas eram muito armadas, assim como os cabelos, e, através da moda, operou-se uma espécie de simplificação da vida, não só nas roupas mais simples, como nos cabelos curtos, à garçonne. O aparecimento dos eletrodomésticos ou do carro, que passou a ser usado por mais pessoas, possibilitaram uma agilização maior da vida, o que permitiu que houvesse mais tempo para a diversão e que tudo fosse vivido com maior velocidade.

Mas no caso das mulheres, essa liberdade nem sempre era bem aceite.

Sim e percebemos isso nos jornais e magazines da época, que são uma das principais fontes do meu livro. As mulheres começaram a conduzir automóveis, a fumar em público, a frequentar clubes e cabarets, mas também percebemos que eram muito poucas as que o faziam porque mesmo os magazines e periódicos, que aparentemente demonstram alguma modernidade e abertura em relação às transformações sociais que essa década proporcionou, dão nota de como essas transformações não eram muito bem vistas pela grande maioria da população. O facto de algumas mulheres cortarem o cabelo à garçonne não era bem visto, conduzir automóveis ainda menos, inclusive por parte de algumas mulheres, o que é sintomático.

As mulheres que frequentavam os clubes e cabarets eram sobretudo aquelas que viviam de os frequentar, não é?

Sim, embora eu ache que, em determinadas circunstâncias, as mulheres que não eram “da vida” também tinham lugar porque os clubes também eram restaurantes, que não eram frequentados só por homens. Dito isto, sim, sobretudo noite dentro, a maioria das mulheres eram as que trabalhavam nos próprios cabarets, as papillons, raparigas cuja função era estar, dançar, conversar, criar ambiente e fazer que os clientes consumissem. A verdade é que muitas delas não ficavam por aí, e estamos já a falar de prostituição, algumas porque tinham muito poucas posses, outras porque acabavam por cair no consumo da cocaína e isso comportava custos avultados e, para sustentar o vício, muitas delas prolongavam as suas funções, digamos assim.

Houve de alguma forma um contágio desse hedonismo e dessas formas de sociabilidade das elites para o povo, para a classe trabalhadora?

Necessariamente terá havido, sabemos por exemplo que além dos clubes de elite, onde só alguns podiam entrar, havia aqueles para quem tinha menos posses e o que uns e outros faziam nesses espaços era mais ou menos o mesmo, dançar, estar, flirtar, com mais glamour nuns que noutros, mas a vivência não seria muito diferente. Muitos dos clubes de coletividades eram frequentadas pelas classes populares e as noites eram igualmente longas com as jazz band que atuavam. A Júlia Leitão de Barros fala muito nisso no seu estudo sobre os clubes de Lisboa, nessa mimetização que os espaços das coletividades faziam dos clubes do centro de Lisboa.

Paula Gomes Magalhães Lisboa Chiado Os Loucos Anos 20 - Diário de uma Lisboa Boémia Foto: Orlando Almeida
A Brasileira do Chiado foi um exemplo da reinvenção lisboeta nos anos 1920. Os modernistas fizeram do tradicional café a sua segunda casa. Foto: Orlando Almeida

Os cafés, que já vinham de trás, mantiveram um papel importante. Em que sentido se transformou a cultura dos cafés?

Alguns cronistas falam de uma perda irrecuperável do espírito dos cafés do período romântico, mas na verdade mantêm-se na versão modernista e a Brasileira do Chiado, frequentada pelos grandes artistas e intelectuais da época, que ali faziam as suas tertúlias, tem aí um papel fundamental. É interessante que alguns cronistas referem que bastava andar uma tarde pelos cafés que havia matéria para escrever no dia seguinte e isso é sintomático de como eram espaços onde aconteciam coisas, onde se debatiam ideias, se conversava, se criava.

Era diferente da patisserie ou pastelaria?

Sim, a patisserie era um espaço mais do flirt e do chá das cinco, que nunca era bem às cinco.

Fala muito do flirt. Flirtava-se muito?

Sim, era a troca de olhares constante. Em algumas delas, como também havia momentos em que a jazz band atuava, havia ali uma espécie de vivência e ambiência próxima do que poderia acontecer nos clubes noturnos e onde aqueles, e sobretudo aquelas, que não os frequentavam, podiam flirtar. Algumas descrições assemelham-se com aquilo que hoje encontraríamos nas discotecas, a movimentação, o fumo dos cigarros, o que se distanciaria de um simples espaço onde iam tomar o chá.

E o tal chá das cinco, afinal, que ritual era?

Era um ritual, mas não muito pontual, segundo se diz, mas que tem que ver com a vivência do próprio Chiado. Ainda se cumpria a tradição, que vinha do século XIX, de subir e descer o Chiado, para ir às lojas da moda, para ir às modistas que também tinham aqui os seus ateliers, onde essa elite podia mandar fazer os figurinos vindos de Paris. Depois desse passeio pelo Chiado, que era uma espécie de desfile de vaidades, a partir das cinco, mais coisa, menos coisa, culminava-se nesse tal chá das cinco, para esse momento de sociabilidade sobretudo feminina.

A noite seria mais masculina. Mas havia duas noites, a dos teatros e cinemas e a dos clubes e cabarets.

Sim, o princípio e o fim da noite, madrugada dentro. Havia a noite dos teatros e dos cinemas, da sociabilidade que se fazia aí e depois havia a dos clubes noturnos, onde se podia fazer a ceia, depois do teatro ou do cinema e continuar, com as jazz band e as danças da moda, noite fora. As descrições até nos dizem que os clubes só começavam a animar depois de as pessoas saírem dos teatros ou dos cinemas.

Foi também nos anos 1920 que nasceu o Parque Mayer, que juntava um pouco de tudo isto, não é?

O Parque Mayer nasce dos ecos, na sociedade lisboeta, das vivências das feiras do centro de Lisboa, que tinham sido proibidas na década anterior e que eram espaços de diversão, que se foram tornando pouco adequados, geravam desacatos e acabaram por degradar-se e ser proibidas. Mas havia ainda a lembrança dessas feiras e especialmente da Feira de Agosto, que acontecia no Parque Eduardo VII. O Parque Mayer surge um bocadinho da ideia de criar uma feira permanente, com o mesmo género de diversões e esplanadas ao ar livre.

O jogo clandestino e a “maldita cocaína” são o lado mais obscuro desta Lisboa boémia dos anos vinte. Foi por aí que a festa acabou?

A noite nos clubes e cabarets era “privilégio” sobretudo dos homens, As mulheres que os frequentavam eram, na sua maioria, pagas para o fazer. E entreter. No Maxim’s, as noites eram invariavelmente de dança e festa.

Não fiz essa análise, mas o jogo era o garante da subsistência dos grandes clubes e cabarets e a cocaína era um pouco o combustível da velocidade e “loucura” daqueles anos. Muitos destes clubes fecham nos anos 1930 porque deixam de poder ter o jogo como atividade, ainda que clandestina, e não têm forma de subsistência. É muito engraçado ler as descrições destes espaços muito polidos e exclusivos, com uma vida dupla, que desaparecia facilmente se havia uma vistoria policial porque havia um conjunto de informadores que saberiam os dias em que essas vistorias eram feitas. Com a instauração da ditadura militar, a coisa mudou substancialmente e houve um encerramento progressivo desses clubes. Os ânimos foram refreando de alguma forma, a partir de 1926. A sociabilidade que se fazia de uma forma muito liberta voltou a fechar-se e a fazer-se de uma forma mais escondida, mais dentro de portas.

Muitos têm feito um paralelo entre os loucos anos 20 do século passado com o que poderá acontecer, em Portugal e no mundo, vencida a pandemia. A história pode repetir-se?

Sim, de uma certa forma, acho que sim. Julgo que hoje podemos, em parte, compreender o sentimento de uma população que se viu privada de quase tudo, durante muito tempo, devido à guerra e à gripe espanhola. Raul Brandão escrevia que, por aqueles dias, todos caminhavam com febre, a febre de quem não confiava no dia de amanhã, porque o dia de amanhã podia trazer novos conflitos e novas privações. Tivemos uma pequena amostra desse sentimento de liberdade, este ano, no dia 1 de outubro. A vontade de regressar à vivência social é muito grande, pelo que julgo que uma parte da população, não toda, claro está, procurará viver dessa forma mais “louca”.


Catarina Pires

É jornalista e mãe do João e da Rita. Nasceu há 49 anos, no Chiado, no Hospital Ordem Terceira, e considera uma injustiça que os pais a tenham arrancado daquele que, tem a certeza, é o seu território, para a criarem em Paço de Arcos, terra que, a bem da verdade, adora, sobretudo por causa do rio a chegar ao mar mesmo à porta de casa. Aos 30, a injustiça foi temporariamente corrigida – viveu no Bairro Alto –, mas a vida – e os preços das casas – levaram-na de novo, desta vez para a outra margem. De Almada, sempre uma nesga de Lisboa, o vértice central (se é que tal coisa existe) do seu triângulo afetivo-geográfico.

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3 Comentários

  1. O meu comentário é simples e muito acertivo era muito bom que de uma vês por todas informarem afinal o vírus que ficou famoso pelo seu nome que é o influenca e que apareceu na grande guerra e que mais tarde se pretendeu clhamar de gripe espanhola seria bom que definissem por uma vês afinal o que foi a gripe espanhola e a sua data será muito importante. Para que seja mais saudável expliquem o que foi a influenca na grande guerra gostava de ser bem informado. JOÃO MAMEDE SERRA BUGALHO

  2. De facto tudo aconteceu como têm sido explicado só que não acabou dessa forma foi sempre prolongada essa forma de vida em especial a vida nocturna que mais tarde desenbocou numa terrível ditadura que se estendeu sobre uma catástrofe que foi a fome a nível nacional e que por força dessa situação só desapareceu com o 25 de Abril e hoje em dia apesar de tudo incluindo os vários vírus desde 2020 não se sabendo muito bem onde tudo o que está a acontecer onde vamos parar coisa boa não vai ser concerteza vão pagar sempre os mesmos. É assim porque sempre desde os tais anos vinte foi exatamente a mesma coisa que se passou. JOÃO MAMEDE SERRA BUGALHO

  3. Amo essas histórias dos costumes do passado, e essa entrevista muito interessante à investigadora, fez-me querer adquirir o livro. Deve ser uma leitura que permite-nos uma viagem no tempo.

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