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Por vezes sinto uma vontade irreprimível de atravessar Lisboa de burro. Teria de escolher o animal mais parecido comigo, nada da espécie protegida de Miranda, com tanto merchandising, tanto sabonete, tantos padrinhos, sobretudo tanta pelagem de Instagram.
Eu quero o burro que cavalguei em pêlo quando tinha oito anos e que, contrariado, me arremessou pela cernelha e ficou a zurrar quando o meu corpo, até à altura indiviso, aterrou no chão e na erva daninha. Eu quero o burro que me partiu o braço.
Nesse burro, que hoje se perderia raquítico entre as minhas pernas, atravessaria a cidade. Mas nem um cavalo eu sei montar, quanto mais um burro imaginário. Suponho que bastaria sentar-me nele e dizer-lhe que ambos temos focinho, que tu e eu comemos a mesma ração, que agora nada resta por partir no meu corpo diviso, que qualquer pala dos teus olhos é pala dos meus – e que nós damos os mesmos passos.
Em Campo de Ourique, aguardaríamos a música que se aproxima. «Dale a tu cuerpo alegría, Macarena.» Nas esplanadas, os estudantes dos Salesianos esticariam o sapato de vela e perguntariam quase para a ponta do pé, perante a música que cresce: «Quando é que este gajo morre?». O gajo da Macarena, o gajo do hino do Glorioso, é um homem de metro e meio que cruza o quadriculado do bairro numa bicicleta enfeitada de Benfica. Ele e a bicicleta são ele e ele mesmo: nunca os vi separados.
Percorrendo assim Campo de Ourique em todos os dias e a todas as horas, permanece contudo misterioso, tem o nome das ruas. Assisto a ele há dez anos sem nunca lhe ter falado, mas decerto montaria o meu burro para juntos o seguirmos antes que a Macarena deixasse de dançar.
Depois apanharíamos o autocarro para o Largo da Misericórdia exactamente no dia em que nele dei de focinho, há uns anos, com um velho berroso. Abanava a cabeça, o capachinho resvalava pela careca e ele ajeitava-o enquanto se cuspia. O meu burro ficaria no lugar das cadeiras de rodas, e eu montado nele assistiria aos gritos do velho: «Bicho, volta para o mato! Bicho, desimpede a passagem!»
Quanto mais berra, mais se cospe, e mais as cabeças de quem quer compreender o que se passa se voltam. O meu burro levantaria as orelhas. Na passagem está uma mulher gorda cuja nacionalidade não é certamente bicho do mato. É o encolher de ombros e o olhar para outra mulher, também negra, que lhe diz: «Estou contigo, irmã». E estavam também com os viajantes do autocarro, que mandaram calar o velho. Mas este prosseguiu lá do fundo da sua guerra até as duas saírem: «És do mato, és do mato». O meu burro nunca permitiria que ele continuasse a berrar. Afiaria os cascos no chão, preparando-se, e eu dir-lhe-ia que há quem mereça partir o braço. Seguir-se-ia o coice que ambos daríamos ao velho.
Depois sairíamos do autocarro no Cais do Sodré, onde em tempos tropecei na mulher dos cacos. Chamo-lhe assim porque os cacos da garrafa de vinho que partira durante a noite lhe serviam de cama. A ambulância tardava em aparecer, já que era sabido que a bebedeira da mulher só passaria com a morte, e isso era com o Instituto de Medicina Legal, onde ela ficaria por reclamar – mais tarde, desacompanhada excepto pela Irmandade de São Roque, seria entregue à cama do talhão. Mas, por enquanto, a mulher dos cacos entretém-se a pedir no chão mijoso do Cais do Sodré por Jesus e por Maria enquanto bate umas palmas sem público.
O meu burro, que perceberia alguma coisa de Maria e de Jesus por talvez ter estado em tempos na Bíblia, aproximar-se-ia da mulher – que para ele seria só mulher em vez de só bêbeda –, cheirar-lhe-ia a cabeça como feno, e deitar-se-ia a seu lado. E assim ficariam, a mulher adormecida com o braço por cima do dorso do burro.
Depois seguiríamos a galope para o Terreiro do Paço, onde os turistas nos achariam muito typical, very português, tal atracção de pé-rapado. O meu burro nunca teria o pêlo dos mirandeses, mas gostaria de ficar em todas as fotos de todos os telemóveis. Eis os turistas a rodear-nos, a perguntar-nos em estrangeiro onde se compram os bilhetes para um passeio. E eu responder-lhes-ia que o burro é só típico de mim, e que me deixassem em paz para lhe dar de beber o Tejo. Os burros imaginários podem beber águas polutas.
Depois de vários cruzeiros atracados quais prédios de parir pessoas, chegaríamos ao viaduto da Infante Dom Henrique, por baixo do qual nunca passei a pé por medo. Mas agora, acompanhado pelo burro, juntar-me-ia a quem se aquece à fogueira. Dizem estes pedintes que as carrinhas de distribuição alimentar estão atrasadas, agora não compensa caminhar até Santa Apolónia. A gente sempre se arranja, né?

Alguns pedintes devem ter participado na cena a que assisti um dia à frente da estação. Os transeuntes faziam a vida de transeunte: entrando e saindo de Santa Apolónia, sentando-se e levantando-se dos bancos, conversando ao lado do Museu Militar. Mas uma carrinha estacionou perto dos táxis, e os transeuntes, desalojados da vida aparente, correram a acolhê-la. O que era paisagem humana tornou-se fome: a fome das pessoas que iam à marmita.
E agora os mesmos afagariam o meu burro, dar-lhe-iam de beber de um garrafão de cinco litros e dir-me-iam sim senhor, tens aí uma bela montada. E eu gostaria de lhos oferecer, não fosse o burro um encargo, não fosse ele inventado, não fosse ele meu.
De seguida, para o poupar, metê-lo-ia num Uber e seguiríamos para o parque do Vale Fundão, local onde o último pastor de Lisboa conduz o rebanho. Como não gosta que lhe fotografem o gado, quero mostrá-lo em pessoa ao burro, que aproveitaria para descansar entre as cabras, as ovelhas e dois póneis enquanto o pastor se queixa das empresas de limpeza florestal. «Querem mas é tirar-me o sustento, até já fizeram queixa na câmara.» Eu respondo-lhe que compreendo porque já pastoreei cabras sapadoras na Serra do Açor.
Nesta altura, o burro e eu já estaríamos cansados. Parecemo-nos nos grandes ímpetos de trabalho, no furor de fazer, e também na queda abrupta de descansar. Ainda assim, avançaríamos para a Expo e continuaríamos até nos doerem os cascos, até ele já não aguentar comigo à garupa, e eu já não aguentar com ele na imaginação.
Depois, por mais que avançássemos, já não seria Lisboa, quase já nem seria Loures. Depois, o burro e eu chegaríamos ao sítio aonde vamos quando estamos sozinhos.

Afonso Reis Cabral
Nasceu em Lisboa em 1990. Cresceu no Porto, mas voltou às origens para frequentar a esplanada da FCSH. Aos 21 anos, escreveu os primeiros capítulos de O Meu Irmão numa mezzanine com vista para a Tapada das Necessidades. Mudado para Campo de Ourique, escreveu os primeiros capítulos de Pão de Açúcar num terraço com vista para as Amoreiras. Há muito destas paisagens nos seus livros, embora Lisboa não esteja lá.
Gostei imenso do texto que escreveu.
Talvez porque há tempos, devido a uma foto antiga sobre um espaço lisboeta, hoje carregadinho de prédios e cheio de gente, onde antes havia gente simples carregando mantimentos no seu burrico… comecei a pensar num burrico, hoje, a calcorrear os mesmos espaços… o que sentiria o dito bicho, como classificaria o presente… como nos remeteria para um futuro…