Local de passagem de milhares de pessoas todos os dias – a pé, de bicicleta, transportes públicos e automóvel -, a Avenida Almirante Reis vai sofrer uma reformulação profunda. Liga a Baixa de Lisboa ao seu planalto e é uma ligação entre algumas das freguesias e ruas mais povoadas da cidade. Em breve, tudo deverá mudar. O novo aspeto de passeios, estrada e ciclovia vai ganhar forma a partir de um processo de participação que se iniciará em breve.

Antes ainda de começar, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), Carlos Moedas, já deu conta da sua visão de futuro: quer “fazer da Almirante Reis aquilo que é a Avenida da Liberdade” e pretende assegurar um perfil de avenida com duas vias de circulação em cada sentido, uma ciclovia e passeios.

Mas quem será servido por essa nova avenida? E por que é que se está a pensar no hoje e não no amanhã. Patrícia Santos Pedrosa, arquiteta, professora na Universidade da Beira Interior, fundadora da Associação Mulheres na Arquitetura e, antes de tudo, moradora na freguesia de Arroios e frequentadora diária da avenida e sua envolvente. Num exercício de crítica e idealização de uma avenida que pense nas “necessidades da cidade daqui a 10 anos”, a arquiteta sugere, para aquele espaço, uma intervenção com diferentes respostas, “troço a troço, quarteirão a quarteirão”.

Fizemos com ela este passeio de futuro.

“Não é possível resolver a avenida toda com um único perfil”, diz Patrícia. Acredita que o foco de uma intervenção de fundo deve deslocar-se de uma visão centrada na primazia automóvel e virar-se para as pessoas, levando em consideração as diferentes necessidades e usos que a avenida, com cerca de três quilómetros de extensão, acomoda ao longo do seu comprimento.

Lembranças de uma avenida “violenta” para as bicicletas e de um processo de gentrificação

As primeiras memórias que Patrícia tem da avenida não lhe permitiam traçar uma imagem completa, como hoje tem. Lembra-se sobretudo da Praça do Areeiro: no seu imaginário, aquele “era o eixo de entrada na cidade”, uma fronteira entre “a cidade rica” e o seu bairro, a Picheleira – “bairro operário, agora disfarçado de Olaias”.

Era pelo Areeiro que, na década de 80, passava todos os dias, quando ia para a escola, a Dona Filipa de Lencastre. Depois, saiu da zona, esteve por Alfama e só regressou em 2006, quando, por sorte, passou pelo Bairro das Colónias e se deparou com uma casa disponível.

Encontrou uma realidade que já “escasseava em Alfama – a existência de uma vida de bairro”. “O bairro que satisfaza as tuas necessidades quotidianas”, conta, lembrando uma Almirante Reis que percorria a pé quando queria deslocar-se à Baixa ou ao Chiado. “Nunca me pareceu que a minha vida urbana passasse por pegar no carro sistematicamente para atravessar a cidade”, diz, acrescentando que o bairro lhe ia permitindo concretizar essa vida de proximidade e de independência em relação ao automóvel.

Nas deslocações pelo eixo da avenida, escolhe, por vezes, outras ruas para a sua travessia, como é o caso da “entusiasmante” Rua do Benformoso. Fazia o caminho menos pela avenida também por causa do ruído e poluição.

Há uma Avenida Almirante Reis diferente a norte e a sul. “Quando vens para o lado norte, tens esta imagem, esta escala”, dz Patrícia, apontando aos edifícios volumosos do Areeiro, da Praça de Londres e da Alameda. Mais para sul, dá-se uma “alteração do modelo. Simbolicamente, uma fronteira. A perceção do que é a cidade, de que cidade estás a falar, começa a tornar-se mais sombria.” Uma realidade que, acredita, deve refletir-se até no preço do metro quadrado, “na diversidade das pessoas” e nas tipologias dos apartamentos.

Uma Almirante Reis à imagem da Avenida da Liberdade?

Antes da ciclovia, em 2020, as experiências de Patrícia com bicicleta na Almirante Reis caracterizavam-se por uma sensação de “violência”. “Foram sempre bastante opressivas e, portanto, acabei por desistir”, confessa.

Almirante Reis é “um canal fundamental de transportes públicos”. Recorde-se que, tal como anunciado pelo próprio no final de março, a intenção do presidente da CML, Carlos Moedas, é a de dotar a avenida de duas vias de circulação em cada sentido, mantendo uma ciclovia e passeios – e a equiparação foi feita com a Avenida da Liberdade, embora haja perfis muito distintos no que respeita à largura. “Como é que temos tão poucos metros para tanto acontecimento?”, questiona Patrícia.

“Quem é que, no final, é maltratado e esquecido?” Para Patrícia, a resposta é óbvia: “Quem caminha e quem, por acréscimo, usa os transportes públicos”. Moradora no centro de Arroios lembra que, “tirando uns troços, não há corredor de transportes públicos”. No futuro perfil da avenida, uma das duas vias que Carlos Moedas pretende assegurar para o trânsito automóvel devia ser, no projeto final, reservada ao trânsito de transportes públicos.

Junto à Alameda, está um dos poucos troços de via reservada à circulação de transportes públicos da Avenida Almirante Reis. Foto: Rita Ansone

Para já, haverá apenas a intenção de manter duas vias de circulação automóvel. Ou seja, o “intensificar da dimensão de canal de comunicação rodoviário, onde as pessoas já não são bem acolhidas, porque alguns dos passeios já não são muito confortáveis, pela dimensão, pelo estado em que estão, pela falta de iluminação ou pela falta de proteção através das árvores. O que Carlos Moedas está a dizer é que as pessoas a caminhar não são bem vindas”.

Uma Almirante Reis para quem caminha

As ciclovias são “fundamentais”, mas são “pouco democráticas”, diz Patrícia, sobretudo em comparação com outros dois modos de locomoção – as deslocações a pé e de transportes públicos. Na avenida, a bicicleta serve estafetas e quem trabalha na “super precarização”, mas também serve “um conjunto de pessoas privilegiadas, que têm tempo e percursos que lhes permitem” utilizar este meio de transporte, diz.

Há, contudo, muitas outras pessoas que por ali passam que a ciclovia não serve. “Não imagino que para uma mulher que saia do seu bairro, na Amadora, para vir fazer limpezas no centro da cidade seja, sequer, exequível, no tempo que ela tem e nas suas condições físicas, na infraestrutura que é preciso”.

“A resposta para a avenida são várias”, diz a arquiteta. “A tentação é desenhar um perfil que é aplicado a todos os três quilómetros e eu diria que, efetivamente, cada troço tem necessidades e estratégias diferentes”.

Enquanto desce a avenida, a pé, Patrícia sublinha que “não é possível resolver a avenida toda com um único perfil”. Para cada troço da avenida, a arquiteta acredita que devem ser encontradas respostas diferentes.

Concentração pela manutenção da ciclovia da Avenida Almirante Reis, a 19 de outubro de 2021.

Em primeiro lugar, e dado o perfil – menos largo do que o da Avenida da Liberdade – “deve desenhar-se para uma diminuição da utilização rodoviária” da avenida. Patrícia Santos Pedrosa idealiza um futuro que nasça de “uma política integrada de cidade que dependa menos da Almirante Reis enquanto pequena auto-estrada doméstica”. O espaço rodoviário que vier a ser encontrado “tem de ser para o transporte público”, afirma.

“A avenida não tem espaço público. Podes dizer que os passeios são espaço público, mas a avenida está genericamente construída em redor da via rodoviária”

“A avenida não tem espaço público. Podes dizer que os passeios são espaço público, mas a avenida está genericamente construída em redor da via rodoviária”. Ao contrário daquilo que se verifica na Avenida da Liberdade, “em que os passeios têm um perfil, uma dignidade, um ensombramento”, na Almirante Reis os passeios “são um acessório”, em vez de contribuírem para  dar “a dimensão de proximidade e da vida de proximidade” à avenida.

Patrícia Santos Pedrosa é arquiteta, feminista ,professora na Universidade da Beira Interior, fundadora da Associação Mulheres na Arquitetura e moradora na freguesia de Arroios. Vive, no seu dia a dia, a realidade da Avenida Almirante Reis. Foto: Rita Ansone

Ao apontar para um trecho da avenida, a arquiteta pensa num esquema de circulação e numa configuração diferentes do espaço, semelhante às super ilhas de Barcelona: “Imagina que fechas o trânsito, daqui até ali. O potencial de espaço público é enorme! A avenida para ser um espaço de confluência e não a avenida para ser um espaço de circulação”.

Acabar com “esta ideia de que uma avenida tem de ser usada em contínuo” para construir uma via com espaços públicos e espaços que conduzam à estadia de quem por ali passa e, ao mesmo tempo, pôr termo à pressão do tráfego rodoviário. “Se acabarmos com a ideia de continuidade rodoviária, acaba seguramente a pressão do trânsito. É preciso coragem para tirar os carros do centro do desenho do que é público, do que é comum.”

Questões a colocar antes de qualquer obra? “Como é que se caminha, como é que se para?”. Quem usa os canais pedonais e se as mulheres se sentem seguras na Almirante Reis? O novo desenho deverá dar resposta capaz, considera a arquiteta. “A peça fundamental [no futuro projeto] é pensar a partir da ocupação das pessoas que caminham no espaço público. É completamente absurdo, retrógrado e um bocadinho bafiento insistir numa Almirante Reis que é para os carros, que são os reis da tomada de decisão”.

A importância de melhorar os corredores pedonais é vista a várias luzes: a da circulação, em si própria, que não deve ser posta em causa pela existência de esplanadas, por exemplo, mas também a da segurança, que sofre com muros que se prolongam em determinados troços da avenida e com a falta de iluminação dos passeios, e do conforto térmico, que pode ser promovido com a sombra de árvores.

Sobre a iluminação, Patrícia Santos Pedrosa constata a realidade atual: “É virada para a estrada. A dimensão daquela iluminação é para os carros”. Os passeios ficam com a escassa luz que sobra das estradas, para onde estão intencionalmente direcionados os focos.

João Castro, arquiteto paisagista responsável pelo desenvolvimento do processo participativo, acredita que a nova cara da importante avenida lisboeta “dificilmente” será concretizada até ao final do presente mandato autárquico.


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt

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