És um apaixonado por Lisboa, voltas sempre, mesmo depois de longas temporadas fora. Estás a regressar do Japão. O que há de tão extraordinário aqui?
As coisas mais simples são as mais extraordinárias. É uma capital que tem uma escala humana, é um gosto quando nos perdemos aqui. Tem muito encanto. É uma cidade incompleta, como todas são… A obra mais incompleta do ser humano é uma cidade. Há sempre coisas em mudança, as pessoas, as lojas, a mobilidade… A magia de Lisboa está na surpresa constante – é uma paisagem urbana que parece imutável, mas não é. Lisboa tem passado e futuro e temos a capacidade de contar as nossas histórias e de sonhar, de olhar para a frente. É cada vez mais uma cidade “sem dono”, permite que as ideias e as comunidades locais, as coletividades de cultura e recreio, as ONGs, as associações juvenis, os clubes desportivos, com mais ou menos recursos, se desenvolvam. Não têm de pedir nada a ninguém, é uma conquista.
Comparando com Tóquio…
Em Tóquio, o espaço público é muito mais formal, mais disciplinado. Por exemplo, nos transportes públicos, ninguém fala ao telemóvel e ninguém come, para não incomodar quem está ao lado. Ninguém fuma na rua enquanto anda, só fumam nas esquinas que têm cinzeiros. Tóquio é a cidade mais populosa do mundo e tem um nível de ruído muito inferior ao nosso – as pessoas falam mais baixo, há mais carros elétricos… Há prédios altos no business center, mas é uma cidade sobretudo de prédios baixos. Os bairros mais populosos de Tóquio têm uma arquitetura semelhante à de Alvalade.
É uma cidade de bicicletas, como a Holanda é, como Lisboa está a ambicionar ser. Há regulamentos de recolha de lixo que os condomínios levam muito a sério. Há uma paixão pelos espaços verdes – há canteiros por toda a cidade de betão, como pequenas hortas junto a vidas sofisticadas. Propiciam-se momentos mágicos ao final da tarde, quando colegas de trabalho e famílias se reunem debaixo das cerejeiras. É também a cidade dos pequenos restaurantes, à semelhança das “tascas” lisboetas, embora se tenha perdido um pouco.
Grande parte da tua vida profissional foi passada no setor do comércio. De que forma é que vês o comércio a mudar em Lisboa nos vários bairros? Como é que isso molda a vida na cidade? O que pode ser feito?
Eu acredito na pequena iniciativa privada de qualidade. Uma pequena loja, que pensa em quem vai servir, pode ter sempre uma proposta atraente, de qualidade, a preços justos. Os bons restaurantes têm sempre clientes… O comércio independente não tem os dias contados. O que falta muitas vezes é conhecimento e uma verdadeira paixão por aquilo que se vai fazer. É muito diferente abrir um snack bar indiferenciado ou oferecer uma especialização de determinado produto.

Torna-se mais difícil para o pequeno comerciante independente manter uma oferta tão especializada…
Sim, mesmo fisicamente. E há outros fatores: o arrendamento comercial, a dimensão e escala da cidade. Em Tóquio, encontramos bairros de vinis, de instrumentos musicais, de alfarrabistas, coisas que podem ser reproduzidas em Lisboa, se falarmos numa escala de bairro. O Beato é uma oportunidade para isso acontecer, num cluster com espaço para indústrias criativas, culturais.
São poucas as lojas com massa crítica para alimentar e então surgem mais lojas indiferenciadas?
Não podemos generalizar, há diferenças entre as áreas do comércio. Por exemplo, os restaurantes que têm um produto único para oferecer serão sempre bem sucedidos. Isso não se aplica àquele tipo de restaurantes que se podem encontrar aqui ou noutra qualquer cidade – esses não têm futuro.
Então, o que falta para se manterem abertas as lojas mais recentes e que continuam a nascer por Lisboa? Há falta de espírito empreendedor? São necessárias mais políticas que as protejam?
No caso das lojas tradicionais e históricas, há a possibilidade de se reinventarem, como aquele quiosque que foi reaberto para vender arte, junto da Barata, na Av. de Roma. Ainda há um enorme espaço para a inovação artística. Na loja do Turismo de Lisboa, encontramos muitos produtos culturais ligados à azulejaria, à poesia… Na nova loja do Figurado de Barcelos temos cerâmica, coisas incríveis de artistas portugueses… São lojas que trazem conteúdos únicos para a capital, que valem pela cenografia que têm e pelas histórias que podem contar.
“A proteção desse tipo de lojas tem de ir mais além, não pode ser só um mero programa promocional. Têm coisas extraordinárias para oferecer e não podem sobreviver com base nas rendas.“
David Lopes
Devia haver regulação do mercado para promover a criatividade e impedir essas lojas de fechar?
Há lojas que são faróis e, quando se apagam, deixam-nos perdidos em temas absolutamente cruciais. Quando a dona da Barata me contou a dificuldade que tinha em manter a sua loja aberta, percebi que era uma obrigação pública impedir que essas lojas desaparecessem – como desapareceu o Cinema Londres. O Estado não se pode substituir na totalidade aos privados, e há um problema de equidade entre os setores no comércio – claro que a Olisipografia e a Academia podem ajudar a interpretar o valor cultural e científico dos projetos de comércio, mas é difícil legislar que determinada loja deve ter apoio estatal e a outra não.
O que farias para que esses faróis não se apagassem?
Com um grande apoio da comunidade, podem encontrar-se soluções. A própria autarquia pode ajudar, a Administração Central também. A bem de Lisboa não se transformar numa Disneyland, apesar de as lojas indiferenciadas também serem necessárias, o pequeno comércio, na minha opinião, tem que ser assumido por uma nova geração. É muito difícil imaginar agora os negócios de família a passar de pai para filho. Há uma crise nesse sentido e temos de nos questionar: como é que podemos envolver os mais jovens, fazê-los pegar nos negócios tradicionais e dar-lhes uma nova vida?
Há bairros em que essa reinvenção acontece?
Alvalade. Alvalade é um case study mundial. É um bairro que tem permanentemente rejuvenescido. Tem tudo aquilo que é o sucesso de uma cidade, tem a combinação perfeita do comércio, habitação e serviços. Tem crianças e jovens e renova-se de geração para geração, as casas passam entre familiares. E tem alojamentos locais, mas não foi avassaladoramente tomado pela onda que atingiu Lisboa…
É uma gentrificação interna?
Hoje o grande problema é a habitação. Se Lisboa fosse mais populosa, o comércio seria mais bem sucedido. Durante o dia, o lisboeta continua a frequentar as pastelarias e os restaurantes, e ao final do dia assistimos a um esvaziamento da cidade. Nas épocas turísticas, não se nota tanto, mas os “locais” são cada vez menos.
Nesse sentido, Lisboa é vítima do seu sucesso turístico?
De certa forma sim, mas também tem margem para o contrariar. Há um exemplo em Portugal de uma cidade com uma estratégia fortemente ligada ao empresariado, à inovação e à universidade – Braga. É o único concelho que cresce em população e cresce em jovens. Há mais exemplos a estudar no país… Em Ponte-de-Sor, reabilitaram-se espaços devolutos porque as acomodações universitárias não eram suficientes e hoje estão a ser arrendados pelos estudantes. Outro exemplo, o Fundão: era conhecido só como a capital da cereja e hoje vivem lá 1500 engenheiros. É um cluster de inovação, um centro de assistência especializado e qualificado, tem call-centers internacionais…
O que é que Lisboa pode ter mais para atrair investimento?
Lisboa não pode ser só pensada do centro, também tem Oeiras, Cascais, tem duas margens… O impacto de uma faculdade NOVA em Carcavelos é brutal e a questão da mobilidade e da intermodalidade é muito importante. Nesse aspeto, Lisboa tem um enorme futuro. É verdade que vivemos na única capital da Europa com praia e que Lisboa é a única capital dos Descobrimentos do mundo, mas Lisboa tem mais potencial e qualificação para atrair futuros investimentos da nova economia da área digital. Vai ser um sucesso: é impossível que os jovens e as empresas que pensam em fixar-se na Europa, não coloquem Lisboa no seu top 3 de opções.

Se assim é, qual é o grande obstáculo?
Temos um problema: a política fiscal… Podemos perder essas empresas devido a essa questão. Há qualquer coisa de extraordinário a acontecer na Madeira, com incentivos para as StartUps tecnológicas, para os nómadas se instalarem com enquadramentos fiscais mais apetecíveis. A questão não é só a carga fiscal, mas também a imprevisibilidade da permanência… tem de haver mais garantias. Na Holanda, há contratos-programa com as empresas: têm obrigações fiscais e de criação de emprego, mas em contrapartida o governo holandês garante uma estabilidade de x anos. Há muitas críticas porque a União Europeia assim acaba por não ter uma política fiscal homogénea e existem aproveitamentos.
E os golden visa?
São precisos, muitos países têm, mas o critério tem de ser focado no investimento produtivo, não na aquisição de habitação. Fiquei muito contente por já não se poderem aplicar dessa forma a Lisboa. Os vistos agora podem ser um fator de coesão territorial, de coesão social no interior do país. Pode ser um empurrão definitivo. Há uma ideia romântica de “Agora podemos trabalhar remotamente, escusamos de passar a vida a correr na cidade”, mas o emprego está lá? A fibra está lá? Ou temos de trabalhar em ADSL (por cabo, através do telefone fixo)?
Quando vou para Cabrela, tenho de andar encostado às paredes de casa para encontrar um tracinho de rede, que me permite fazer um telefonema. A 80km de Lisboa? Fala-se de coesão territorial e nessa vila o posto dos correios é na sala de uma moradora, paga pelos CTT, que à janela serve a comunidade de 600 pessoas, na sua maioria idosos que precisa de receber a sua reforma…
Costuma dizer-se “olhos que não veem, coração que não sente”. Vou abrir uma empresa onde não há serviços, onde não há rede? Não vou. Não pode ser a dimensão de uma comunidade local a determinar se deve ou não existir cobertura de fibra. Se ela existir, vai atrair população, sobretudo agora que há realmente mais pessoas em situação de teletrabalho. Quem não tem essa hipótese e mora fora de Lisboa, por outro lado, também se vê confrontado pela dificuldade de acesso à cidade… São como uma mangueira: podemos alargá-la, mas se a boca de saída for a mesma, a água corre à mesma velocidade de sempre. Nunca haverá capacidade para termos mais carros dentro da cidade, a solução está nos transportes públicos de qualidade, na lógica intermodal, nos parques dissuasores…
E tu tens um projeto fora de Lisboa, em Cabrela. A Casa das Letras, a recriação de uma vida cultural de uma cidade, numa vila no Alentejo, perto de Montemor…
Nasce sobretudo da minha paixão pelos livros e da biblioteca que construí ao longo da vida. Não quis afastar-me muito da cidade, tenho cá parte da minha família, mas gostava que o meu futuro também fosse vivido no interior – onde posso ter uma vida em comunidade, onde as pessoas se tratam pelo nome, onde há um espírito de cooperação e de atenção pelo outro que as grandes cidades têm dificuldade em manter, embora alguns bairros tradicionais ainda os conservem, mesmo com o despovoamento. Continuo a poder usufruir da magnífica cidade de Lisboa, dos bens culturais e dos serviços que ela oferece, mas quis contribuir para a comunidade com literatura e hoje é mais um atributo, mais um conteúdo que pode atrair mais população para a vila. Para visitar e para viver.

E já conseguiste?
Eu não, a comunidade já conseguiu. No verão passado, na Casa das Letras, tivemos uma conversa com o Ricardo Ribeiro – não só um poeta, um filósofo, um extraordinário cantor – e vimo-lo contar a sua vida. Isso gerou na comunidade uma grande empatia e ele sentiu-o de tal forma que, no dia seguinte, já estava a procurar casa em Cabrela. Hoje, passado um ano e meio, vive em Cabrela com a Diana Vilarinho, a fadista, e com o filho de um mês.
Cabrela já ganhou mais três habitantes…
E estarão certamente outros por chegar. A vila já é um destino de vários artistas, cantores e fadistas portugueses. O artista plástico Ai WeiWei, que é persona non grata na China, vive entre Cabrela e Montemor e quer juntar ali todas as obras que tem espalhadas pelo mundo – quer coordenar as suas exposições desde o Alentejo. O interior do país traz estas surpresas… No último mês, tivemos uma sessão na Casa do Povo com o Paulo de Carvalho e o Carlos Daniel, que se tornou num convívio. Conversou-se muito, partilharam-se memórias e histórias, como a carreira de futebol do cantor e a carreira musical do jornalista, na banda “Tertúlia dos 40”.

A necessidade de viver no interior deve-se às pessoas estarem “zangadas” com as cidades? Ou estão em busca de algo diferente?
Não consigo dar uma resposta estatisticamente relevante, mas acho que há um pouco das duas. O senso comum diz-nos que é uma expressão do “estou cansado da vida que levo, da não vida que tenho”. Quem vive na periferia tem um cansaço físico superior, mais miserável do que o de quem vive na cidade. É um grande desalento acordar de manhã, mesmo quando se desperta para um emprego de que gostamos muito. E à noite é um cansaço extremo. A isso junta-se a economia e a vida familiares, as tarefas domésticas, a alimentação… Repetidamente.
É uma questão de optar por uma melhor qualidade de vida, quando não se consegue tê-la na cidade?
Nas pequenas cidades, há mais espaço para isso. Por exemplo, o rendimento dos funcionários públicos é igual aqui (em Lisboa) e na Covilhã, ou em Abrantes, e a qualidade de vida difere de local para local. Poder almoçar em casa nos dias de trabalho confere uma dinâmica muito diferente à rotina. E, ao contrário do que se pensa, nas pequenas cidades também há uma aposta na oferta cultural, quer pelas autarquias quer por habitantes – temos o exemplo de uma atriz que se mudou para Ponte-de-Sor e criou um grupo de teatro com profissionais e amadores. Há sessões todas as semanas.
E sessões culturais desse género têm tido adesão em Cabrela?
Vem gente de Vendas Novas, de Montemor… Encheram sempre a Casa do Povo e Associação dos Reformados e Pensionistas de Cabrela. As pessoas aderem à cultura. Cabrela tem uma banda filarmónica com 100 anos. Os eventos culturais de cariz mais popular, e outros mais eruditos, têm muita adesão.
Dirias que falta a Lisboa ser mais dessa Cabrela que conheces?
Faltam-lhe relações de bairro, que são difíceis de conseguir quando se vivem vidas arrumadas em apartamentos, isoladas umas das outras, com horários pouco flexíveis para a socialização. Nos bairros de baixa densidade, isso muda um bocadinho. Eu já vivi mais dessa Cabrela em Lisboa – numa rua atrás da Avenida da Igreja, em Alvalade, num prédio com quatro andares. As famílias tinham crianças quase com a mesma idade e ao final do dia abriam-se todas as portas de casa para elas se juntarem e brincarem. Ainda hoje mantemos contacto, somos os “Queridos Vizinhos”, e passamos o Natal e alguns fins-de-semana juntos.
Então é possível recriar e resgatar esse espírito aqui?
Esse espírito de comunidade e de mobilização, que também une os moradores. Como a Naomi Klein disse, “a democracia é um assunto local”. É mais fácil mobilizar-me para um micro-acontecimento, defender algo que cause mudança à minha porta, no meu bairro, do que para uma grande causa política discutida no parlamento ou para algo internacional. Em tempos, quiseram construir o maior tanatório do país junto do nosso prédio e gerou-se um movimento que me fez acreditar nas “milícias populares” que podem nascer. Envolveu todos os habitantes do bairro e todos contribuíram como podiam – os advogados estudaram o processo, os arquitetos as soluções, quem trabalhava em comunicação fez campanha, as senhoras idosas tornaram-se as “ninjas” do bairro para vedar o acesso à obra… Foi possível um grupo informal de moradores ganhar uma luta contra uma multinacional a bem da harmonia do bairro. Deixo aqui prometido que um dia transformo esta história num livro.
Trata-se de ouvir mais os cidadãos sobre a organização do espaço nos bairros e na cidade?
É também uma das formas de viver a cidade. Vemos cada vez mais intervenções no espaço público, por exemplo, no Central Park, as famílias oferecem bancos de jardim, adotam-se árvores… Vivi o plantio das árvores no Parque das Nações – é uma obra única – e lembro-me da forma como o engenheiro Manuel Prates Canelas falava das árvores, das suas filhas, “elas entendem-me”. Na cidade, a natureza e a população podem conviver.

Catarina Carvalho
Jornalista desde as teclas da máquina de escrever do avô, agora com 51 anos está a fazer o projeto que melhor representa o que defende no jornalismo: histórias e pessoas. Lidera redações há 20 anos – Sábado, DN, Diário Económico, Notícias Magazine, Evasões, Volta ao Mundo… – e segue os media internacionais, fazendo parte do board do World Editors Forum. Nada lhe dá mais gozo que contar as histórias da sua rua, em Lisboa.
✉ catarina.carvalho@amensagem.pt
Excelente entrevista. Muitos parabéns.
Tenho-o dito (e escrito) – o Comércio, seja ele qual for, é a arte da coincidência, pois só acontece, de facto, quando “Oferta” e Procura” … coincidem, no tempo, no espaço e … nas vontades!
Não podia estar mais de acordo em relação à sua entrevista, sr. Dr. David Lopes. Em relação ao pequeno comércio é triste ver cada dia que passa, a quantidade de pequenas lojas a encerar por vários motivos e interesses, de oportunistas gananciosos. Sou de uma pequena aldeia chamada Chança, sita no concelho de Alter do Chão, nos anos 60 e 70 quase todos os terrenos eram cultivados de ; trigo,centeio,aveia,cevada e milho. Todo este trabalho era elaborado através de esforço humano e manual, as máquinas existentes na altura eram; mulas,burros e bois que, puxavam arados, grades e outros meios alternativos possíveis de adquirir. Os condutores de todos esses trabalhos era, o homem à base da sua força que para fazer uma grande ceara, percorria centenas de Klm. Hoje todos esses terenos estão abandonados, se os nossos governantes oferecessem meios e alternativas financeiras aos , nossos jovens o interior tinha outro encanto e procura. Nos anos 60/70 os celeiros nos meses Julho/Agosto ficavam lotados até ao teto de cereais. Eramos grandes exportadores desses bens essenciais hoje importamos quase tudo por, não termos pessoas competentes e entendidas que, apoiem os interessados ao desenvolvimento agrícola .
Entrevista muito interessante.