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Em 1976, num daqueles tropismos de mar que marcam a existência dos insulares (é ponta-solense), o meu tio Orlando comprou um veleiro de madeira em segunda mão. Apesar de encartado nas artes da navegação, logo encalhou na rota Porto Brandão-Bugio, problema que terá resolvido com as próprias mãos: mergulhou resoluto e depois, já submerso, empurrou o barco com os pés assentes no leito arenoso até soltar a quilha. Fazia 10 metros da popa à proa, mas não é difícil acreditar neste episódio de mitologia familiar; com um porte atlético e barbudo, o meu tio ainda hoje dá ares de Neptuno.
Esse e outros episódios de inépcia, combinados com os aturados trabalhos de rotina antes e depois de cada passeio, levaram-no a vender o veleiro a uns colegas em 1978. Como se sabe, muito melhor do que possuir um barco é persuadir um amigo a comprar um, o que poderá hoje ser confirmado por qualquer oligarca russo com um iate de 50 milhões de dólares apreendido.
Não há conceitos para explicar o que sucedeu depois. Agalmotofilia? Pigmalionismo? Um dos legados mais perniciosos de Freud é a obsessão com as explicações de cariz sexual. Como, então, definir uma paixão assexuada por objectos? Proponho o neologismo “rosebudismo”, uma alusão à última cena do filme Citizen Kane (e mais não acrescento).
Pouco depois de ter sido vendido, o veleiro foi abalroado por uma draga desgovernada que lhe destruiu o casco a bombordo. O barco viria a ser içado do fundo e recomprado pelo meu tio, que pagou o valor residual dos salvados. Durante três anos, aos fins-de-semana, feriados e férias, o barco seria por ele restaurado nos estaleiros do Clube Oriental de Lisboa. Quando, em 1981, ficou pronto para regressar ao rio, optou-se pela doca do Poço do Bispo, que fica perto do Clube Oriental e é gratuita.
Chegávamos ao barco por caminhos cheios dos fios de desperdício usado na limpeza de máquinas e à tona de água havia manchas de óleo que conferiam ao reflexo arco-íris a iridescência exuberante de alguns insectos. Era naquele ambiente operário que fazia sentido ter um barco de madeira bojudo como uma barca e feito anacrónico pela moda das embarcações de fibra, ali para os lados de Xabregas, rodeado por batelões e longe dos longilíneos veleiros de catálogo dos sócios do Clube Naval de Lisboa, em Belém.
A paixão do meu tio seria outra vez passageira, porque ele tem muito mais de carpinteiro do que de velejador. Mas durante dois anos fizemos passeios memoráveis no Tejo, e quem nunca navegou o rio, de veleiro, iate, barco a remos ou cacilheiro, sobretudo durante a noite, quando o ruído dos carros na ponte é um discreto murmúrio que embala, ainda não conhece Lisboa.
Nos Olivais Sul, onde cresci, o Tejo era uma faixa azul e distante. Morei depois num apartamento em Oeiras cujo principal interesse era a vista de rio. Daquelas varandas, fotografei os cargueiros, dei conta de submarinos e vasos de guerra, vi o veleiro que trouxe Greta Thunberg a Lisboa e as obras-primas da engenharia náutica que competem na “F1 dos mares”, mas recordo sobretudo a passagem dos grandes paquetes ao serão, iluminados como no filme de Fellini.
Quando construíram um imóvel que nos roubou a vista, mudámos para uma casa projectada nos anos 1960 por um engenheiro que trabalhou na construção da ponte sobre o Tejo (a 25 de Abril). E esta semana, prestes a começar uma nova etapa profissional que me obrigará a atravessar o rio todos os dias, tenho pensado no Tejo e nas suas margens.
Um rio une de montante a jusante, mas separa de uma margem à outra. As duas grandes pontes sobre o Tejo, os cacilheiros e catamarãs da Transtejo, e também a linha de comboio da Fertagus, aproximaram as margens, mas persiste uma barreira psicológica. Foi uma surpresa perceber que, de carro, demoro de Oeiras ao centro de Lisboa o mesmo que até ao Monte da Caparica.
Fala-se muito da dilatação e compressão do tempo como experiência interior, mas além desse tempo psicológico também o espaço dilata e encolhe em função dos preconceitos, da memória e das emoções. Por isso, um rio é sempre mais do que uma barreira geográfica. E tal como os bichos e as plantas fisicamente separados iniciam um processo de especiação, a separação imposta por um rio contribui para a formação de identidades.
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Ninguém verbaliza hoje uma identidade “margem norte” porque as identidades se fazem por contraste com a identidade dominante e esta não precisa de se assumir. Na Área Metropolitana de Lisboa (AML), a margem norte concentra mais população (61%), estabelecimentos (63%) e emprego (72%), tem uma história milenar e os centros de poder, os monumentos (mesmo não sendo Lisboa uma cidade monumental), a iconografia da Revolução dos Cravos, os principais eventos culturais, os grandes clubes de futebol, quase todas as universidades, os hospitais mais afamados, o tropismo da noite, a fama de destino turístico e uma enorme diversidade socioeconómica, tudo contribuindo para a sobranceria e desapego do lisboeta.
Não é assim na margem sul, que não figura nos livros de História e cuja identidade, ainda hoje, seguramente de um modo caricatural, associamos sobretudo aos operários, mesmo muitos anos após o apogeu dos estaleiros da Lisnave e depois de aprendermos que é na margem sul que encontramos o salário médio por conta de outrem mais alto do país (Alcochete).
Os habitantes da margem sul exibem o orgulho do underdog. É frequente alguém famoso reclamar a identidade “margem sul” para honrar as origens e também frisar a sua ascensão social. Esta assimetria mostra bem que a AML, na sua coroa interna, não é ainda a tão desejada “cidade de duas margens”, como Nova Iorque ou Paris.
Apesar da injustiça da comparação, pois o rio Sena e o East River são mais canais do que verdadeiros rios, sendo o Tejo da AML já um largo estuário, percebemos que dificilmente a margem sul se tornará um polo cultural radiante como foi a Rive Gauche no século XX e se impôs Brooklyn já no princípio deste século, mas a subida do preço da habitação em Lisboa está a tornar a margem sul cada vez mais apetecível. E se as visões estratégicas dos urbanistas forem além da embriaguez das palavras da moda (“descarbonização”, “transição energética”, “sustentabilidade”, “resiliência”, “economia circular”, “coesão social”, etc.) e os grandes projectos de urbanismo não ficarem apenas no papel como manifestações de megalomania inconsequente (a Cidade da Água? O Innovation District?), talvez seja possível chegar a 2030 mais perto do ideal da cidade de duas margens.
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Sendo Lisboa hoje uma cidade saturada, o potencial do desenvolvimento urbano da AML ribeirinha está na margem sul. E nem só de betão se faz o caminho. Além de acções para captar mais fundos europeus, medidas simples como o lançamento do passe social único (o Navegante), grandes eventos culturais regulares na margem sul e a promoção do emprego local, que diminuiria as deslocações pendulares de sentido único, contribuirão para que se esbata a assimetria entre as margens. Até lá, parafraseando Gandhi, a “Grande Lisboa” será apenas uma bela ideia.
Regressei do meu primeiro dia de trabalho na margem sul no ferry que liga a Trafaria, Porto Brandão e Belém. Fi-lo com uma alegria infantil, espreitando de todas as janelas e escotilhas a paisagem em movimento. Um amigo de Azeitão, que vem todos os dias trabalhar a Lisboa, disse-me que é entusiasmo de neófito e que em semanas desistirei da travessia de barco e passarei a ir de carro, como aconteceu com todos.
Só o tempo o dirá. Mas de momento, este entusiasmo que me anima é uma energia que vem do rio, tão concreta como a energia cinética das correntes fluviais e das marés ou a energia potencial gravítica da água de uma barragem. A simples contemplação de um corpo de água tem esse efeito sobre as pessoas, sendo essa a mais-valia de uma cidade de duas margens. E pode ser que numa destas travessias, se continuar a olhar o rio, reencontre o veleiro do meu tio. Terá ainda o mesmo nome? Chamava-se Sunshine.
* Vasco M. Barreto é biólogo. Nasceu em Lisboa, cresceu nos Olivais Sul durante os anos 70 e 80, viveu uns anos no Lumiar e depois seguiu para Paris, onde se doutorou, e a seguir Nova Iorque. É casado e tem duas filhas. Árvores plantadas. Livro a caminho.
* Lia Ferreira nasceu em Lisboa em 1974 e ali cresceu e fez a sua formação artística. É pintora, ilustradora e retratista. Mãe de 4 filhas, leva a vida na Arte.