“A guerra na Ucrânia é uma guerra da Rússia contra a Rússia!”, diz Margarita Sharapova. Escritora e ativista russa a viver em Lisboa, lutou contra Putin e foi perseguida pelas suas ideias e sexualidade ao ponto de ter de exilar-se em Portugal. Mas numa cidade com uma grande comunidade ucraniana, sente-se “entre duas trincheiras!”, diz. “Sou inimiga de Putin, mas os ucranianos vêem-me como inimiga deles. Tenho recebido desprezo, desrespeito, condenação”, lamenta.
Já em 2014, quando chegou, numa outra altura quente, depois da anexação da Crimeia, acontecera o mesmo. Foi parar a um centro de acolhimento de refugiados onde estavam também ucranianos. “Muitos tratavam-me, erradamente, como representante de Putin, embora eu mesma tenha fugido da Rússia do seu regime.”
Agora, com a invasão da Rússia à Ucrânia, a situação piorou. “Não têm tempo para saber quem sou, por que razão estou em Portugal. Vêem-me e ouvem-me, imediatamente como russa, e essa é a raiva que descarregam em mim. Estou pagando pelos crimes de Putin, embora eu seja contra o poder fascista dele! Sou contra esta guerra, mas eles lincham-me como se eu fosse a favor. O mundo inteiro odeia a Rússia, o que faz o russo comum sofrer.”
O mundo também tem visto as manifestações anti-guerra dos próprios russos pelas ruas de Moscovo – que já deram origem a várias detenções – mas é sempre difícil estar no cinzento num mundo que a guerra tende a colorir a preto e branco.
“Não sou só eu. Muitos dos meus amigos sentem-se culpados pela guerra. Sofrem, embora não sejam culpados de nada, são culpados sem culpa. Também me sinto assim. Alguns dizem que têm vergonha de ser russos. Não tenho! Tenho é vergonha de Putin ser russo. O povo russo comum sofre com esse ódio, mas não o próprio Putin. O ódio não o atinge. O golpe está sendo dado a russos inocentes em todo o mundo. Demorará gerações até que a desgraça de hoje sane”.
A guerra de Margarita na Rússia, um retrato do regime
Margarita sabe o peso que tem Putin na sua vida. Pagou-o com a perda, com o amor. E é uma sorte não ter sido com a vida. Foi por causa dele que deixou de poder ser o que era: exercer a sua arte, a literatura, tão pouco de amar, devido à sua sexualidade.

Nasceu em Moscovo, há 59 anos. Tem duas licenciaturas, uma em letras, outra em cinema. Trabalhou no circo, mas foi como escritora que se afirmou, tendo até feito parte da conceituada União de Escritores de Moscovo e recebido diversos prémios literários pelas suas obras – com personagens que agora são entendidas como propaganda. As palavras que escreveu ditaram uma perseguição sem tréguas e com graves consequências que só terminou em Lisboa, em 2014.
Durante o que chama de “período áureo” na Rússia, ou menos persecutório para a comunidade LGBTQIA+, escreveu um dos primeiros livros sobre essa temática, publicado por uma editora estatal em 2004 – Moscovo, Estação Lesbos.

Até foi incentivada a fazê-lo, recorda, para dar resposta à sede de conhecer a realidade de uma comunidade que tivera de se esconder durante muito tempo. Esta abertura a que Moscovo assistia também se fazia notar nos espaços de convívio e descoberta, como bares, saunas e clubes dedicados a um público queer .
“Ninguém escrevia, mas todos queriam saber”, diz.
Com a implementação da lei Anti Propaganda Gay, em 2013, tudo mudou de forma rápida. Para “proteger as crianças” foi criada uma lei que, no limite, dá impunidade até para matar.. E retratar uma comunidade em palavras pode tornar os filhos dos outros homossexuais. As portas que se tinham aberto fecharam-se-lhe na cara. De aclamada passou a infame. Segundo as novas regras, ela escrevia coisas que alteravam as pessoas de tal forma que não podiam ser lidas. Por isso, como outros, não podia voltar a publicar.
O seu nome tornou-se proscrito por causa de um livro, publicado nove anos antes. “Já nem pensava muito nele, escrevi tanto depois disso”, conta. Porém, isso não impediu que as forças ao serviço do poder passassem a esperá-la à porta de casa.
“Pareciam nazis”, diz com tom grave. A roupa dos “guardas” era escura, tinham cabelo rapado e carregavam um símbolo no braço A mensagem, salvo algumas variações, era sempre a mesma: “Estamos numa terra santa. Não és uma pessoa. Tu, com as tuas palavras, sujas-nos”.
Não eram só palavras: Margarita conta que chegaram a partir-lhe o nariz e a incendiar a porta da sua casa. Por várias vezes, escreveram “Aqui mora…” Margarita não consegue acabar de verbalizar o que está escrito na sua memória, desviando o olhar como se estivesse a tentar não ver de novo.
Quando revisita estas memórias ausenta-se. Parece que vive e sente cada murro, cada palavra insultuosa. Retoma a conversa e o olhar quando a imagem já não lhe tolda o pensamento.

O pior desses tempos foi ter perdido a sua companheira de mais de dez anos. Certa vez, estavam a sair de um festival de cinema queer, de noite, quando ela e a companheira foram surpreendidas por polícias, que as insultaram e bateram. Rita pediu à companheira que não falasse, mas esta não conseguiu deixar de perguntar porquê, questionando a lei vigente, um lei injusta.
Foi levada pela polícia e só saiu já à beira da morte – hoje sabe-se que a morte foi causada por uma hemorragia cerebral devido aos golpes que recebera da polícia. A companheira, morreu. À polícia, que a matou, nada aconteceu.
Embora o seu português ainda não esteja totalmente formado, a palavra que encontra para descrever a companheira chega-lhe rápido: corajosa. Morta pela simples ousadia de perguntar porquê.
Guerra e paz
Com tudo isto, o risco de ser presa e de lhe acontecerem mais “coisas más”, como lhe diziam por telefone, não teve dúvidas. Comprou uma passagem com Lisboa como destino.
Nos primeiros dias, nem nesta cidade pacífica se sentia em paz. Sentia-se perseguida por sombras que lhe estavam na memória e no corpo. Sempre que via um polícia, sentia medo, tinha de se desviar, deambulava para longe. Demorou até que a representação de autoridade significasse de novo segurança.
Em Lisboa já teve várias profissões e moradas. Agora guia outros pela cidade, para a Associação Renovar a Mouraria. Diz que tem escrito na sua língua, mantendo-a viva nela, sem saber para quem ou para publicar onde. E voltou, pela falta de conseguir comunicar com palavras, à primeira forma de escrita: o desenho, um dos seus talentos esquecidos. Pinta imagens do passado, a cidade do presente, a água e as cores que lhe dão alento e sustento.
“A Ucrânia também era minha”
Margarita traz uma recordação que a leva de novo à Ucrânia, onde foi em tourné, na companhia de circo de que fez parte. “Estive na Ucrânia muitas vezes, depois participei de vários projetos de filmes, fui visitar amigos, descansar na Crimeia. Sou russa, sou moscovita, mas a Ucrânia sempre esteve perto de mim, era minha. E agora sou um inimigo da Ucrânia! Temo que a amizade entre russos e ucranianos nunca mais seja restaurada na minha vida. Mesmo gerações mais jovens não esquecerão a tragédia, não se sabe quantas décadas ou séculos devem passar antes que a monstruosa desgraça de hoje seja esquecida.”
Margarita vive com o sonho de regressar à Rússia, de olhar para o rio Moscovo – que nomeia a cidade. Faz-lhe falta sentir-se no seu lugar. De viver como escritora, dos cafés, dos colegas, de empregar as palavras que tem nela, das tertúlias onde percebe e é percebida e dos laços profundos que apenas as palavras mutuamente compreendidas asseguram.
Mas já decidiu: só regressa “se e quando o regime mudar.” Talvez a História que estamos todos a viver acelere essa mudança. Ninguém sabe ainda. Por enquanto a história e a vida de Rita é uma das muitas que Lisboa abraçou, e abraçará com esta nova guerra. Com o olhar azul de Margarita posto no Tejo, ela traça-se o futuro. Que quer escrever em russo.
Veja aqui o episódio da RTP sobre Margarita.
*Leonardo Rodrigues é aluno de Ciências de Comunicação, na Universidade Nova, e também autor do projeto Lisboa Quase Verde. É membro da Assembleia de Freguesia de Alvalade, eleito pelo Bloco de Esquerda, e autor do blog Leonismos.com