À espera numa doca da Gira, na Gare do Oriente, vejo-as desbloquear bicicletas e deslizar. São mulheres ciclistas e conhecem bem os caminhos da cidade. Vêm e vão, percorrem Lisboa com agilidade e perícia. E todas elas, que dão aos pedais, terão uma história para contar. Catarina Lopes salta para a bicicleta e encoraja-me a imitá-la. De cabelos soltos (e bem revoltos num dia de ventania), damos uma volta pela Alameda dos Oceanos. Já lá vão os tempos em que eu própria pedalava para a escola, mas nada bate a destreza de Catarina. E não está sozinha: basta reparar na barriga redonda, apesar de escondida pelo seu casaco comprido.
Catarina, utilizadora regular das bicicletas Gira, públicas, da EMEL, e eu, mera novata, participámos na experiência imersiva organizada no âmbito do TinnGo, projeto que promove uma estratégia de mobilidade inteligente e equitativa através da criação de um Observatório Europeu. Esta iniciativa insere-se no Plano de Ação da EMEL para identificar medidas para a utilização da bicicleta pelas mulheres.

Preparamo-nos para a viagem. Carrego no botão para aumentar a assistência – 1, 2… 3. Sou impelida pela velocidade de Catarina que rasga a avenida sem medos. Partimos da Gare do Oriente, seguimos pela Avenida Berlim e subimos a Avenida Luanda em direção ao Mercado Sul dos Olivais.
Os obstáculos à bicicleta na cidade
Hesito quando perco a ciclovia ou passamos para a estrada, mas sigo a minha mentora até onde ela me levar. A meio do trajeto, somos ultrapassadas com grande ímpeto por um carro. “Sempre que ando na estrada, é certo que um condutor vai fazer alguma coisa”, avisa a minha parceira.
Catarina foi recrutada para ser a minha companheira de viagem. Apesar da destreza, a sua relação com a Gira é recente – até há pouco tempo, os Olivais, onde mora, não tinham docas. Agora, finalmente, pode usá-las livremente pela cidade, e deixar a sua ebike (que passou a usar de forma ativa há cerca de três anos) guardada em casa.
Mas a relação com a bicicleta já vem de trás. Há oito anos, para se deslocar dos Olivais para Cabo Ruivo, Catarina escolheu a bicicleta, e, há uns cinco, voltou a arrancá-la da garagem para obrigar o cão a correr. Neste período de tempo, a cidade mudou, e Catarina está ciente da mudança. “Na altura, a cidade não estava preparada, não havia nada que estimulasse o uso da bicicleta”, diz quando nos sentamos, depois de parqueadas as Giras na doca do nosso destino final.
Hoje, a realidade é um pouco diferente, mas há problemas que subsistem. “Eu acho que o maior de todos é a falta de ligação entre os pontos da cidade”, diz Catarina. “O facto de ainda não haver uma estrutura intuitiva que permita a uma pessoa andar de bicicleta é o maior. Percebemos que a rede não é muito coerente, há cruzamentos complicados em que não percebes para onde é que deves ir, e já assisti a pessoas a perder a ciclovia”.
“Outro problema é termos de ir para a estrada e termos de lidar com os comportamentos dos automobilistas”, acrescenta. “Os ciclistas são um elemento mais vulnerável e temos de protegê-los”.
A mãe de Catarina teve dois acidentes de bicicleta nos últimos tempos: de uma das vezes, tropeçou no desnível de uma ciclovia, da outra, caiu ao tentar desviar-se de peões. “O ciclista está muitas vezes em conflito com o peão porque os dois têm de partilhar o pouco espaço de forma ingrata”, diz.


Estas talvez tenham sido as principais queixas das dezasseis mulheres presentes no workshop “Plano de ação – Mulheres GIRAs” que reuniu as duplas que, tal como eu e Catarina, fizeram percursos de bicicleta pela cidade.
Neste grupo de mulheres, havia de tudo: estudantes, juristas, arquitetas, fotógrafas, professoras, nutricionistas, terapeutas da fala – todas com idades entre os 20 e os 52. O que tinham em comum? A vontade de continuar (ou começar) a pedalar por Lisboa.
“Como é que eu levo a minha vida na bicicleta?”
As cidades não foram desenhadas para todos – ou todas. Até há bem pouco tempo, o urbanismo, a arquitetura e a engenharia eram áreas dominadas pelos homens. A realidade feminina foi excluída dos centros urbanos. Mas já são algumas as cidades do mundo a tentar reverter este paradigma, como Viena (a pioneira), Barcelona e Londres.
Lisboa não lhes quer ficar atrás e quer que as mulheres comecem a dar aos pedais.
Com o lançamento desta experiência imersiva, a EMEL revelou que 60% dos seus utilizadores são homens. Já na Velo-City 2021, cujo tema foi esse mesmo – “Cycle Diversity” –, Rosa Félix, investigadora de mobilidade urbana no Instituto Superior Técnico (IST), dizia que, em 2020, eram apenas 26% as mulheres a usarem a bicicleta em Lisboa. É insuficiente, claro, mas é um progresso face ao número de 2017 – apenas 17% dos ciclistas da cidade eram mulheres.

Há fatores que condicionam mais as mulheres na utilização da bicicleta, e Maria Coutinho, designer de serviços da EMEL, resume o principal desafio: “Como é que eu levo a minha vida na bicicleta?”. Afinal, ainda são elas quem habitualmente mais trabalha em casa e quem assume ter mais dificuldade em conjugar a vida profissional com a pessoal.
As mulheres que participaram no workshop da EMEL apontam como principal falha do sistema Gira precisamente o facto de as bicicletas ainda não terem forma de transportar crianças, cães ou compras. E têm sugestões: a criação de pontos com acessórios para atrelar às bicicletas ou até mesmo a inclusão de cargo bikes no sistema, como as alemãs Muli Cycles, com cestas desdobráveis.

Para isto avançar, seria preciso continuar a trilhar caminho, até porque todas as mulheres presentes no workshop concordam que ainda há um certo estigma em relação ao uso da bicicleta pelo sexo feminino. Fala-se em saltos altos, em roupas e até mesmo em assédio.
Um artigo recente do New York Times aborda estas questões: “ainda se espera que as mulheres cheguem ao trabalho mais bem vestidas, o que pode ser um desafio depois de uma viagem a transpirar. As suas viagens também costumam implicar mais paragens para fazer recados e levar as crianças em comparação com as viagens dos homens”.
Segundo um outro artigo do The Guardian de 2019, 49% das pessoas em Londres sentiam que pedalar não era para “pessoas como elas”. Mas estas perceções já começam a ser desafiadas. O We Bike NYC promoveu eventos de ciclismo para mulheres, transexuais e pessoas não binárias em Nova Iorque, e, em Londres, o Bike Project ensina mulheres refugiadas a pedalar, tal como o Bikeygees em Berlim.
Em Lisboa, a experiência imersiva e o workshop estão a dar os primeiros passos para uma cidade mais inclusiva. E há quem não tenha medo nenhum, como Catarina que, mesmo grávida, continua a montar a bicicleta e a acreditar no futuro da micromobilidade para as mulheres.
A única diferença é que agora tem mais cuidado com as escolhas que faz: “Passei a privilegiar percursos mais seguros, e não mais rápidos. Se houvesse uma melhor rede ciclável, isto nem sequer seria uma questão”.
Se, em Nova Iorque, em junho de 2020, o CitiBike conseguiu que 53% dos seus utilizadores fossem mulheres (muito graças à pandemia), talvez possamos acreditar que, um dia, o mesmo acontecerá em Lisboa.
Texto originalmente publicado a 5 de janeiro de 2022.

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt
Vejo por algum tempo as milhares (milhões) de bicicletas que circulam nos Países Baixos de todo o tipo, parece que há mais bicicletas que automóveis devido ao terreno ser plano nesses países do mundo e depois vejo algumas bicicletas a rodarem numa cidade com Sete colinas, nem toda, claro e o trabalho parece Hérculeo e dificil, mas “elas” não se deixam ficar para trás. É só muita saúde. Mas bonito vê-las.