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Avenida Grão Vasco, 33. As memórias de Ana Bacalhau despertam quando chega à sua rua. “Muitas vezes sonho com a minha casa, com Benfica, com estar em Benfica, no meu quarto. Só percebo que é um sonho quando tento ligar as luzes do quarto e elas não acendem”, recorda a cantora, a Mata de Benfica feita divã e a interpretação possível de que, sendo uma estrela, a única luz a brilhar será sempre a dela.
O regresso ao bairro onde cresceu e viveu até à adolescência não se dá apenas nos sonhos. “Inevitavelmente, é o lugar aonde volto sempre”, diz a cantora, hoje freguesa do Areeiro, onde vive com o marido Zé Pedro e – atenção, freudianos de plantão – a filha… Luz. Volta não apenas a Benfica, mas à avenida Grão Vasco, a sua primeira morada, a rua que Ana Bacalhau elegeu para um passeio com os leitores da Mensagem.
“Estamos aqui pois foi a minha primeira casa, aquela que, porventura, teve mais impacto na minha vida”, justifica, diante do número 33. “Neste prédio, vivi no sétimo andar, o último. Foi onde comecei a construir o meu mundo interior, que ainda hoje me inspira para muitas coisas que faço. Portanto, até mais do que a zona onde vivo agora, o Areeiro, para mim era importante falar de Benfica.”

A avenida Grão Vasco é a quintessência dos 43 anos da cantora e o leve passeio de duas horas percorreu a infância e a adolescência no sétimo andar do número 33, mas também os tempos do liceu que leva o nome da via, as brincadeiras com o avô na Mata de Benfica e, por fim, num desvio de rota tipo licença poética, o muro onde o rosto de Ana Bacalhau figura ao lado de outras celebridades do bairro.



“Vivi aqui de 1978, quando nasci, até 1996, na altura que entrei na faculdade. Fiz aqui a primária e o secundário. Os meus pais hoje moram na Venda Nova, aqui perto, e a minha filha quando fica com os avós muitas vezes vem brincar aqui, ou seja, vai ter as mesmas referências que eu, o que me deixa muito feliz”, conta a cantora, que arriscou os primeiros agudos e acordes na guitarra no número 33 da Grão Vasco.
“Foi onde comecei a construir o meu mundo interior, que ainda hoje me inspira para muitas coisas que faço”
Ana Bacalhau
“Comecei a aprender a tocar guitarra na Junta de Freguesia de Benfica. Foi o primeiro contacto com a música a sério. Era o início dos anos 1990 e lembro-me perfeitamente de estar no meu quarto a tocar uma música das 4 Non Blondes. Então, pensei: bom, se consigo cantar como a Linda Perry, é porque a minha voz não é má de todo”, lembra, antes de entoar o refrão de What’s Up em plena Grão Vasco, como pode ver no vídeo.
Ana Bacalhau, a aspirante a cantora que fingia cantar
A poucos passos do prédio onde morava ainda está o Liceu Grão Vasco. “O ensino era muito bom e ainda deve ser”, lembra. “Sempre fui mais forte em português e inglês, mas dos números e tal nunca fui tão amiga”, reconhece. “Fiz também ballet, dancei uns pliès, fiz ginástica e aulas de música. Pertencia ao coro”, conta, antes de uma confissão impensável numa futura cantora.
“Numa daquelas festas de final de ano, em que os meninos vão apresentar as suas habilidades aos pais, eu estava lá no meio do coro, só que não cantava, fingia que cantava. Estava lá, só a abrir a boca”, diz, entre risos, antes de rematar com uma constatação filosófica. “A vida é irónica, não é?”.
É, sim, Ana Bacalhau.
Tão irónica que a menina que apenas fechava e abria a boca no coro, a fingir cantar, cresceu e tornou-se cantora a sério, ao ponto de ser reconhecida como um dos rostos ilustres do bairro. A prova está à vista de todos, estampada no enorme muro a poucos metros da avenida Grão Vasco, nas traseiras do prédio onde vivia a cantora.

Pintado em 2020, o mural retrata a efígie de 15 personalidades eleitas pelos fregueses do bairro, numa iniciativa da Junta de Freguesia. Entre os rostos, está o de Ana Bacalhau, ao lado de outros ilustres moradores do Benfica, como o músico Carlos Paredes, o ator Vasco Santana, o escritor António Lobo Antunes, o humorista Nuno Markl, a atriz Beatriz Costa e a cantora Lena D’Água.
“Muitas vezes ficava a olhar da janela do meu quarto para este muro, que era cinzentão, enquanto me imaginava a tocar e a cantar. Tanto dirigi esse pensamento para aqui que ele se materializou. Eu não podia estar mais feliz com a minha imagem aqui”, afirma a cantora, que só soube da homenagem quando a tinta já estava a secar.

“Na verdade, a Junta nem teve tempo de informar oficialmente. Estavam aqui os artistas a acabar de pintarem e, como hoje em dia tudo se espalha ao minuto, alguém passou por aqui, fotografou, postou e identificou o Nuno Markl, que por sua vez repostou no Instagram e quando acordei de manhã, abri aquilo, vi e pensei: ai, ai, estou no mural”, lembra.
Regresso ao passado em busca de inspiração
A força da imaginação, a mesma que fez do outrora muro “cinzentão” moldura para o reconhecimento do seu talento, de alguma forma também se faz presente no mais recente trabalho da cantora, Além da Curta Imaginação, lançado noutro do ano passado. Parte da inspiração para o álbum veio dos passeios de Ana Bacalhau pela Mata de Benfica, o pulmão do bairro em plena avenida Grão Vasco.

“Há fundações muito fortes que se criam nestes sítios onde nós vivemos e experienciamos coisas na infância.”
Ana Bacalhau
“Há fundações muito fortes que se criam nestes sítios onde nós vivemos e experienciamos coisas na infância. Na minha expressão artística, quando vou buscar coisas para dizer, inevitavelmente, também vou ter a estes sítios na altura de criar. Venho ter não só no dia a dia, quando estou acordada, mas também volto aqui no meu subconsciente, nos meus sonhos.”

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Olá, eu também cresci no nr 33 da Av Grão Vasco. Eu e a Ana éramos vizinhas e depois até fomos colegas na Faculdade de Letras, embora eu fosse um pouco mais velha. E também eu, como a Ana, andei no Externato Grão Vasco, só que, ao contrário do que diz a notícia, não era um liceu mas uma escola primária. Um beijinho para a Ana.