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Filho não de um, não de dois, mas de três bairros populares, de S. Jorge, da Damaia e, hoje, de Benfica, António começou curioso, em maio do ano passado, a explorar as raízes de um outro bairro, de máquina fotográfica na mão: o Bairro da Boavista.

No início dos anos 2000 António trocou a televisão, onde trabalhava em imagem, pela fotografia e tirou um curso na Ar.Co, no Centro de Arte e Comunicação Visual. Desde então tem colaborado com vários grupos informais de fotografia e participado em várias exposições coletivas, sempre com um denominador comum: retratos de pessoas e vivências.

Já expôs o seu bairro de infância, realizou um projeto sobre os fregueses de Alcântara e, agora, tem, no primeiro piso do Palácio Baldaya, até 24 de fevereiro, a sua primeira exposição individual, que é também o primeiro projeto do Grupo de Fotografia de Benfica, que atualmente conta com quatro membros, António, Teresa, Carol e Miguel Rodrigues, Professor e Investigador no Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes, o curador desta exposição.

Teresa e Carol, membros do Grupo de Fotografia de Benfica, ajudaram à produção da exposição sobre o bairro da Boavista. Foto: Inês Leote

A ambição é “expandir o grupo e realizar mais projetos pessoais” em colaboração com a Junta de Freguesia.

“Cheguei lá forasteiro”, diz António Veloso, “mas fui sempre bem recebido no Boavista”.

A sua intenção de expôr as fotografias no bairro tem que ver com devolvê-las “às pessoas que contribuíram”. Selecionadas em conjunto pelo grupo, estas pretendem transmitir a importância da identidade bairrista que se vê nas suas pessoas, nas suas relações, nos seus lugares e nos seus hábitos. António procurou entre o que foi outrora construído no Boavista e o que todos os dias se constrói. E se cultiva.

Pelas hortas dentro no Bairro da Boavista

No dia da visita guiada à exposição, António levou José, de 68 anos de vida e de bairro, a ver-se nas paredes do Palácio Baldaya. “Isto sou eu na minha horta”, diz orgulhoso o retratado, “e esta é mesmo a minha”, na parede oposta, “está aqui o meu palhaço”, e sai-lhe uma gargalhada pela máscara – era do seu espantalho que falava.

Planta batatas, alfaces, cebolas e tomates, mas não é novo neste lavor, já plantava na “encosta”, num terreno vadio de um amigo, e nunca vendeu o que produz, sempre foi tudo para si “e para os filhos”. Esperou um ano na lista para ter lugar na horta que agora é sua há dois anos.

No Bairro da Boavista há 16 hortas, cada uma para dois vizinhos, e as “barraquinhas” para as ferramentas são divididas por quatro pessoas. As inscrições para as eco-hortas abriram em 2014 no âmbito do programa Eco-Bairro Boavista Ambiente+ e desde então têm sido atribuídas “só a pessoas do bairro”, explica Cabral, que também veio ver-se na exposição a “dar de beber” à sua horta.

Cabo-verdiano, traz no sangue das tradições familiares o gosto pela agricultura e divide o seu tempo livre entre a horta, a cozinha e o futebol, paixões que começou a cultivar antes de se mudar para o bairro. Até hoje, Cabral passou por dois hospitais como cozinheiro chef e somou quase dez anos como jogador do Estoril.  

Aos sábados cuida a horta e aos domingos joga com os Veteranos do Estoril, mas durante a semana reserva as quartas-feiras para dar uma perninha no “ringue” do bairro. Ali, ora joga pelo Social, o Clube Social e Desportivo do Bairro da Boavista, ora organiza o jantar para a equipa.

A claridade que entrava pela sala da exposição naquele dia esmoreceu de repente e começou a chover. A mudança do clima alegrou logo Cabral, seria “tão bom para a horta”, já que as últimas semanas em nada facilitaram o cultivo.

“Tivesse apenas chovido um dia” e Cabral teria passado quase uma semana sem precisar de regar. “Uma queda de água equivale a três ou quatro regas” e a seca que Portugal vive, até para pequenas hortas urbanas, é um sinal preocupante da perda do “grande ingrediente da natureza”.

Emolduraram-se os sinais do tempo

O Bairro da Boavista passou a integrar a lista de Bairros de Intervenção Prioritária de Lisboa (como parte da Carta BIP/ZIP Lisboa) em 2011 e desde então viu muitas mudanças acontecer: reabilitação de espaços, demolição de antigas casas e construções de casas e edifícios “eco”, com sistemas de aquecimento solar de água, isolamento térmico e soluções arquitetónicas com capacidade evolutiva, que permitem ajustar a tipologia ao crescimento das famílias.

Comemorou-se no último mês de outubro o 80º aniversário do Bairro, e findos esses 80 anos ainda se repete aquilo que o fez nascer durante o Estado Novo: o realojamento de famílias. Antes por imposição, hoje por programas comunitários e municipais com preocupações sociais e ambientais.

A ditadura de Salazar fez desaparecer os “amontoados de barracas, verdadeiramente inabitáveis” em várias fases, realojando os “ocupantes de bairros de lata”, como lhes chama o Decreto-lei nº 28912 de 1938, no Bairro da Boavista em moradias “cheias de ar, de luz e de alegria”, que na verdade eram casas desmontáveis de lusalite (fibrocimento), sem portas no interior, mas já com talhões onde se podia cultivar, a fazer lembrar uma linha de montagem, casa após casa, rua atrás de rua, sem lugar para o convivío.

Foram entregues já mobiladas e, divididas por tipologias de um, dois e três quartos, são hoje recordadas por cores: o bairro da mobília azul, da mobília verde e da mobília vermelha.

Na exposição, a fotografia de um quadro da Associação Recreativa dos Moradores e Amigos do Bairro da Boavista (ARMA-BB) dá a ver uma casa do bairro azul. A Associação é um dos pólos que marcam a identidade do bairro e é presidida por “Bela”, fotografada de avental e patente numa das paredes na segunda sala da exposição.

Rosto a rosto, constrói-se a família Boavista

António visitou a cozinha comunitária da Associação de Moradores para fotografar Anabela, que dirige a associação desde 2008, e que lidera um coletivo de moradores muito envolvido no apoio de todos os vizinhos.

Com o retrato de Bela, vemos o de Bruno e Manel, dois produtores de pombos, columbófilos do Boavista. Manel veste o camuflado dos comandos e António conta que a boina foi ideia sua, só para a fotografia. José informa que “ele não tem horta, tem pombal e esteve na guerra em Angola”. É o retrato de um paraquedista dos pés à cabeça, mas de pombo em riste. Se fosse uma pomba, seria como se agora segurasse a paz, mas é um pombo que é “muito precioso”, diz Teresa, garantindo que chegam a valer “milhares” os que “vão em camiões até França para serem largados”.

O “senhor Manel”, sócio nº 1 do Clube Desportivo Lisboa e Águias, posa ao lado do “senhor Faria”, envergando camisola e cachecol do Clube Social e Desportivo do Bairro da Boavista. Foto: Inês Leote

Entre os rostos, há uma fotografia que destoa. Quem nos observa, guardando o campo de futebol atrás de si, é uma águia. A rivalidade que há no bairro mora ali, é “entre o Águias e o Social”, mas na exposição estão lado a lado. O “senhor Manel”, sócio nº 1 do Clube Desportivo Lisboa e Águias, posa ao lado do “senhor Faria”, envergando camisola e cachecol do Clube Social e Desportivo do Bairro da Boavista, que na tarde da visita à exposição estaria assim vestido em Algés, prestes a festejar a vitória dos seniores do Social por um golo.

Imaculados na parede por António, os símbolos do convívio do bairro emocionam quem lá mora e quem se cruza com eles todos os dias. Foto: Inês Leote

Vivia-se o ano de 1945 quando o clube das Águias foi criado e já nesse ano o fibrocimento começava a deteriorar-se, razão para, em 1961, começar a ser utilizada a alvenaria. No ano seguinte, iniciava-se a construção da Ponte de Salazar sobre o Tejo e as famílias realojadas aumentavam a população do bairro da Boavista em 50%.

António também fotografou algumas dessas casas, das que ainda tentam segurar o seu próprio teto, mas que o programa de intervenção planeia eliminar. “Antes saíam de lá famílias e as casas eram logo ocupadas sem controlo”, agora “fecham-nas e tapam portas e janelas”. Os realojamentos são feitos nas eco-casas e embora as condições sejam melhores, Cabral conta que “a adaptação à novidade e às tecnologias” não foi fácil. Muita vida ficou na alvenaria que já se destruiu.

António Veloso provou que o convívio ainda mora ali

A história que a exposição tenta contar é uma de “unidade, de pertença”, como explica António a quem a visita. É um olhar curioso que procura em Benfica as vivências do seu bairro mais antigo, construído isolado, como uma ilha, e que, graças a António Veloso, tem agora mais pontes para a Freguesia e para Lisboa.

As casas mais antigas por demolir ainda se avistam no Bairro da Boavista.

“Os problemas e as fragilidades há em todo o lado, o que eu quero mostrar é o que há de bom.”

António Veloso, fotógrafo e membro do Grupo de Fotografia de Benfica

Ao olhar para as fotografias dos grelhadores e das cadeiras alinhadas na rua, Cabral lembra Maria Odete, “a cabo-verdiana que organizava tudo”, desde os churrascos do bairro às festas de Santo António, e que faleceu há pouco menos de um ano. Em 2021, já não celebraram o Santo como dantes e Cabral não sabe como se festejará o próximo.

O “sentimento de família e o ambiente de rua”, que foram determinantes na seleção e na montagem desta exposição, representam para o Grupo de Fotografia “algo que vemos pouco nos dias de hoje”.

Os retratos carregam anos de vida de bairro e mostram pais e avós das crianças que, geração após geração, fazem das suas ruas recreio. Espera-as agora uma escola renovada, uma “super-escola”, como lhe chama Teresa, para os “muitos miúdos” que ainda há no bairro e que também o festejam ali, nas fotografias expostas no Palácio Baldaya.

A parede mais colorida da exposição mostra a Associação de Moradores e o festejo de aniversário do bairro mais antigo da Península Ibérica. Foto: Inês Leote

As hortas “são um pólo importante” e os moradores mostram como essa união se faz para festejar, construir e cultivar em família. Em 25 molduras, abrem-se as portas para a “riqueza do bairro” que cativou António Veloso. É uma ilha, mas tem um ecossistema próprio, com muita cor e que ainda respira.


* Inês Leote nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 21, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas.

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3 Comentários

  1. Muito bom artigo, belo trabalho. Jornalismo de qualidade, que faz a diferença na divulgação de vivências e projetos que nos enriquecem em conhecimento, valorizando o que existe e vai acontecendo na área de Lisboa. Grato à Inês e a toda a equipa, que faz este projeto “A Mensagem”.

  2. “Em 2021, já não celebraram o Santo como dantes e Cabral não sabe como se festejará o próximo.”

    Temos a certeza, que o vosso artigo (tão generoso, meigo e envolvente) vai elevar o espírito da comunidade e haverá a celebração das festas de Santo António em 2022 e em todos os próximos anos (muito bem-vindos)! Esses são os votos da família “Nuga Best de Benfica” 🙂

  3. Fiquei intrigado com o Bairro da Boavista, para mais, via Marchas Populares deste Santo António, pelas casas de Lusalite, seria o antigo Bairro do Charquinho ?

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