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Concluo que já devo ser muito velha quando descubro que passei a infância numa Lisboa onde as lavadeiras ainda iam buscar a roupa branca às casas das famílias grandes (os tanques não chegavam para tanto lençol), o soalho era encerado de joelhos, havia portas principais e portas de serviço, os andares tinham quartos contíguos à cozinha para as empregadas – e quantas vezes sem janela – e, tristemente, ainda se ouvia falar de «sopeiras» e «magalas».
As primeiras usavam farda e avental, trabalhavam de manhã à noite e saíam apenas aos domingos a seguir ao almoço, tendo de voltar a tempo de servir o jantar. Os segundos deambulavam pela capital a ver se catrapiscavam uma delas enquanto faziam a recruta, já que depois da viagem para África não teriam tempo para frivolidades: era a guerra e mais nada.
A coisa podia dar certo ou dar para o torto. Quando o soldado partia, a rapariga guardava uma fotografia dele fardado e, a partir daí, trocavam cartas e aerogramas – se soubessem ler e escrever, o que nem era garantido.
Podia acontecer ela descobrir-se grávida pouco depois e então casarem-se por procuração – sucedeu em casa de uns vizinhos nossos. Podia acontecer a rapariga engravidar muitos meses depois e dizer que era de tanto olhar para a fotografia do soldado – sucedeu em casa de uns primos nossos e tornou-se uma anedota. Podia acontecer a rapariga engravidar mas decidir não ter o filho – sucedeu em nossa casa e não teve graça nenhuma.
Tinha sido um ou dois dias antes, num sítio infecto, como imagino que fossem todos os lugares onde se faziam abortos clandestinos nesses longínquos anos sessenta, sobretudo para quem não podia pagar.
Assustada, mas determinada a não ter a criança, a rapariga sujeitara-se a um perigo que passou rapidamente da hipótese à realidade; e, na manhã em que foi levar o meu irmão a pé à escola, a dois passos de casa, já não conseguiu regressar, à conta de uma valente hemorragia que lhe sujou pernas e roupa e a deixou à beira do desmaio.
Da escola telefonaram à minha mãe, que foi logo buscá-la de carro, munida de toalhas e interrogações. E a rapariga contou-lhe tudo: o sexo bruto numa tarde de domingo numa pensão às portas de Lisboa, a descoberta aterradora da gravidez e o que uma suposta parteira lhe enfiara entre as pernas para provocar o desmancho. Mas a coisa não estava a correr como planeado…
Podiam (e deviam) ir para o hospital, mas naquele tempo o aborto era crime e o mais certo era haver perguntas difíceis e as respostas implicarem uns meses de cadeia para a rapariga. Então, a minha mãe decidiu telefonar para o seu próprio obstetra a pedir ajuda.
Por acaso, ele não se encontrava na clínica naquele dia, mas atendeu-a outro médico que estava de serviço. Apesar de o conhecer mal, a minha mãe sabia que era um excelente profissional e um homem aberto e explicou-lhe o drama que tinha em mãos. Ele ouviu-a atento e mandou-as ir imediatamente para lá.
Assim que chegaram, a rapariga foi levada para a sala de partos, e parece que no limite de voltar a desfalecer. Tanto quanto se sabe, a ocorrência foi sempre tratada como um caso de aborto espontâneo para evitar fugas de informação, pois nesse tempo havia bufos em toda a parte.
Ao fim de um tempo, o médico veio dizer à minha mãe que estava tudo bem e já podia ir ver a rapariga, que fora para um quarto e, em princípio, teria alta em breve. A minha mãe agradeceu-lhe muito a atitude e a discrição; e, quando perguntou quanto lhe devia (nessa altura não havia Multibanco nem as mulheres andavam com livros de cheques), ele respondeu apenas:
– Então a senhora faz uma caridade destas e eu não posso fazer o mesmo?! Deixe-se disso.
A história é bonita (apesar de feia), porque acaba bem. Mas que mundo cão era esse em que passei a infância, embora sem noção do fosso entre classes, porque nascera do lado melhor e as empregadas que passavam por nossa casa pareciam-me tão alegres: riam, dançavam, levavam-nos às cavalitas a bailes e procissões e davam-nos groselhas e pirolitos; eu chamava «mamã Fernanda» a uma delas e chorei uma semana inteira quando ela se casou, sem saber que a rapariga seria muito mais feliz sem mim na casa dela…
Bendito 25 de Abril. Agora, que os tempos difíceis ameaçam regressar, votem, por favor.

Maria do Rosário Pedreira
Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.
Votem, não deixem que o passado regresse.
Adorei a história! Viva 25 de Abril!
Simplesmente, memórias que o vento não leva e são cativantes…