Nunca foi escrita a sério a história do cineclubismo em Portugal e é uma tarefa que urge empreender, enquanto alguns dos seus principais dirigentes ainda se encontram vivos e com hipóteses de recordarem os aspectos mais marcantes dessa história.
O cineclubismo teve um papel essencial na história da cultura e da política portuguesas, sobretudo entre os anos 40 e 70 do século passado. Nesses anos, essencialmente até ao 25 de Abril de 1974, o cineclubismo teve uma função importantíssima em vários domínios do associativismo nacional.
Foi uma inegável fonte de sensibilização para a cultura cinematográfica do povo português, através das suas sessões, com criteriosa selecção de obras a apresentar; através dos textos e das apresentações efectuadas antes dos filmes que eram facultadas aos seus sócios; através dos debates que proporcionava a seguir a muitas exibições; através do apoio ao incipiente cinema nacional, promovendo antestreias e colóquios; através da exibição, muitas vezes clandestina, de filmes que estavam proibidos pela censura, etc.

Foi igualmente uma importante forma de discussão política e social, numa altura em que as mesmas eram sistematicamente proibidas. Os cineclubes, de várias tendências, foram, no seu conjunto, uma poderosa fonte de esclarecimento e, de certa forma, de provocação sobre a opressão do regime imposto pelo Estado Novo.
A grande maioria dos cineclubes tinham direcções e orientações de frente democrática de oposição ao salazarismo, sendo que era possível verificar que o Partido Comunista Português era, em muitos casos, aí a força dominante, pela sua capacidade organizativa.
Depois, havia cineclubes de orientação católica, como o CCC, mas que facilmente se poderiam classificar de católicos progressistas.
Finalmente, e vítima da cisão provocada pela exigência de um regulamento oficial imposto pelo governo, alguns cineclubes aceitaram esta obrigação, tornando-se assim “oficiosos”, mas nem desta maneira se afastando de algum criticismo (veja-se, por exemplo, o caso do Cine Clube de Rio Maior).
O cineclubismo fomentou ainda uma boa onda de associativismo, gerando uma generosa entreajuda, com um voluntariado activo que levou muitos dos melhores cinéfilos da nossa praça a colaborar graciosamente com os diversos cineclubes espalhados pelo país.
Falando agora da minha experiência pessoal, esta iniciou-se logo que entrei para a Faculdade de Letras, em 1961, e me inscrevi, pouco depois, no Cine Clube Universitário. Não muito tempo depois, estava a escrever uns textos para os programas, e pouco depois era convidado para a direcção do ABC Cine Clube de Lisboa, onde me mantive, nas mais diversas funções, até atingir a presidência da direcção.

Foram anos de trabalho e aprendizagem, com camaradas (sim, eram quase todos “camaradas”, excepto eu, que nunca fui comunista), como o Manuel Neves, Manuel Machado da Luz, o David Lopes, a Maria Teresa Horta, o Raúl Boaventura e tantos outros.
Esta experiência manifestou-se profundamente enriquecedora, pela forma organizada e sistemática que obrigava a pensar e repensar o cinema. Os filmes eram integrados no seu contexto histórico, no interior de uma cinematografia, de um género, na visão global de uma obra autoral.
Era-nos permitido reter de diversas obras um conjunto de características que passavam de umas para outras com certa coerência. Para um ciclo sobre western, escrevi um longo ensaio para sair num dos boletins, analisando as diferentes fases deste género, desde os iniciais filmes de cowboys, a preto e branco, até aos complexos westerns dos anos 1950 e 60, carregados de influências psicanalíticas, sociológicas, políticas, etc.
Foi um magnífico período de formação, que foi muito importante para várias gerações de cinéfilos que passaram então pelo cineclubismo e que se notabilizaram depois como críticos, ensaístas, realizadores, programadores de festivais, etc. Estão neste caso nomes como os de Ernesto de Sousa, Neves Real, Manuel de Azevedo, Henrique Espírito Santo, Eurico da Costa, Vasco Granja, José Borrego, Artur Avelar, Fernando Duarte, Alves Castela, Roberto Nobre, citando apenas aqueles de que me recordo sem grandes pesquisas.
Deve dizer-se ainda que algumas revistas de cinema foram criadas pelo cineclubismo, como “Imagem”, “Celuloide”, “Visor”, “Cinema”, etc. Finalmente, saiu, não há muito, um livro de memórias cineclubistas, assinado por Manuel Pina, que é uma das melhores referências destes tempos heróicos.
Ao longo da minha vida, quer como crítico, quer como realizador, devo ter passado pela grande maioria dos cineclubes do país, e mesmo de alguns fora de portas, dinamizando debates, apresentando obras, pertencendo a júris, enfim respondendo às mais diversas solicitações.
De todos retenho momentos a não esquecer. Uma noite, nos anos 1960, na sede do Universitário, vi pela primeira vez, estoicamente de pé, de tal forma enfaixado que mal tinha os pés no chão, o “Couraçado Potemkin”; no Cine Clube do Porto, dirigido pelo saudoso Henrique Alves Costa, assisti e participei com uma comunicação numa Semana de Cinema Português, histórica, que iria marcar o dealbar do Cinema Novo Português e dos Anos Gulbenkian; no ABC, a antestreia de “Belarmino”, épica, entre tantas e tantas outras iniciativas inesquecíveis; no Cine Clube do Barreiro, uma sessão com Zeca Afonso, muito bem acompanha por pides vários; enfim, um nunca mais acabar de recordações…

Nessa época gloriosa do cineclubismo, em que a assistência às sessões chegava a lotações esgotadas em salas que ultrapassavam os quatrocentos lugares, exibiam-se filmes imortais, italianos, franceses, ingleses, norte-americanos, alemães, e de algumas origens mais. Eram filmes que ficaram na história do cinema e que, ainda hoje, são considerados dos melhores.
Agora fora do cineclubismo, mas mantendo-me intransigentemente na defesa de um cinema de autor, de intervenção social, de pesquisa estética e de renovação narrativa, vou continuando, enquanto crítico e realizador (em mim as duas facetas surgem indissociáveis), a organizar iniciativas que permitam preservar o melhor da história do cinema, quer seja norte-americano, quer seja de outras origens, mantendo a herança do cineclubismo, sem espartilhos ideológicos, e aberto a uma saudável diversificação de propostas.
Em Lisboa existiam vários cineclubes, mas os mais destacados foram o ABC Cine Clube de Lisboa (fundado em 1 Novembro 1950, e ainda em actividade), o Cine Clube Imagem (criado a 20 de Junho de 1951, e, neste momento, sem actividade), o Cine Clube Universitário (CCUL, lançado em Março de 1952) e o Cine Clube Católico de Lisboa (1958),
Parece que o mais antigo cineclube criado em Lisboa terá sido o Cineclube de Portugal (Lisboa, 1931). Conhecem-se vários outros, como o Círculo de Cinema de Lisboa, (CCL, 1946) ou o Centro Cultural de Cinema (Lisboa, 1956).
Para se tentar perceber melhor a vida do cineclubismo em Portugal, será de todo o interesse consultar a obra de Manuel Pina, “Memória do Cineclubismo”, e, entre outros, os textos de Paulo Granja, “Cineclubes e cinefília: entre a cultura de massas e a cultura de elites”, e de Paulo Cunha, “Cineclubismo e Censura em Portugal 1943-65” (2013).
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*Lauro António é realizador e crítico de cinema – lendário em Portugal. Lisboeta de gema, foi a cidade que também cunhou o seu gosto pelo cinema, e ele próprio mudou a história do seu cinema.
Li com apreço o bem delineado texto de Lauro António, sobre o cineclubismo em Lisboa, que em muito pontos e aspectos se assemelha com as atividades dos brasileiros, notadamente no século passado e mais de perto, no período da Ditadura Militar (1964/1985), no Brasil.
Assim como no Brasil, a história da memória cineclubista, ainda prevalece a oralidade, embora, as duas primeiras décadas do século atual, muito se registrou das experiências contemporâneas, especialmente em função dos acenos que os governos do Partido dos Trabalhados – PT -, fez ao cineclubismo, até porque, alguns ministros e a presidente Dilma, tiveram suas formações cinematográficas nos cineclubes.
Por outro lado, gostaria de solicitar autorização, para publicar o texto no site: cncbrasil.art.br, do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros.
Caro Diogo Santos,
Pode transcrever à vontade. Abraço. LA
No dia da morte de Lauro António o meu lamento , um abraço à família e um texto que escreveu há tão poucos dias . Finalmente, eu que tive o privilégio de o conhecer um forte abraço a todos os amantes de cinema .