Para nove cinéfilos lisboetas, a magia do cinema não termina quando se acendem as luzes da sala de exibição. Nem a magia nem o trabalho.
Amigos de longa data, Sónia Trincheiras, Bruno Castro, Ana Pinto Gonçalves, Cláudia Lomba, Sofia Machaqueiro, Julieta Pracana, João Borges, Inês Bernardo e José Mário Silva são as estrelas do Alvalade Cineclube, um projeto concebido com as pretensões de uma curta-metragem, mas que após dois anos cresceu e agora programa uma sequela com espírito arrasa-quarteirão.

Até dezembro, o cineclube ocupou o teatro do Centro Cívico Edmundo Pedro, um simpático prédio de arquitetura modernista, antiga sede da Junta de Freguesia de Alvalade e hoje um centro de convivência comunitária. A reforma programada para o espaço, entretanto, forçou uma mudança de morada e a partir de 13 de janeiro as sessões semanais acontecem na sala Fernando Lopes, na Universidade Lusófona.

A mudança não representa apenas uma alteração de cenário. “Pretendemos fazer deste desafio uma oportunidade e dar um passo à frente”, adianta o gestor de projetos Bruno Castro, um dos nove fundadores do cineclube. O guião para a nova temporada prevê o retomar das sessões infantis aos domingos e a criação de uma campanha de fidelização de sócios para ajudar a cobrir os custos operacionais.
A memória dos cinemas de rua
Concebido a “dezoito mãos”, o cineclube não está em Alvalade por acaso. Todos os nove integrantes viveram no bairro em alguma fase da vida – quatro ainda vivem – e guardam lembranças afetivas da freguesia, além das memórias das tardes de cinema numa das várias salas que se estendiam pela avenida de Roma.
Entre elas, o mítico Cine Alvalade, na esquina com a avenida dos Estados Unidos da América, próximo de outro ex-libris do bairro, o café Vá-Vá. Aberto na década de 1950, com lotação para 1.485 espectadores, o espaço funcionou até meados dos anos 1980, quando os cinemas dos centros comerciais começaram a “matar” as salas de rua.
Destino semelhante conheceram outros cinemas, como o Quarteto, na vizinha rua Flores de Lima, e os cine Vox (depois, King), Roma e Londres, já nos limites com o Areeiro. Atualmente, há apenas um cinema de rua em Alvalade, o Cinema City, com quatro salas a funcionar desde 2009, no número 100 da avenida de Roma.
“O cineclube nasceu para manter viva a tradição lisboeta dos cinemas de rua, de bairro”, conta Bruno. Isso em parte explica a principal estratégia de divulgação dos filmes, através de cartazes fixados em cafés e demais estabelecimentos comerciais de Alvalade, para além das postagens nos perfis do cineclube no Facebook e Instagram.
A atmosfera do cineclube de ponto de encontro entre os vizinhos confirma-se pela familiar repetição de rostos a cada sessão ou quando um dos cineclubistas é reconhecido por um dos frequentadores durante um passeio pelas ruas de Alvalade. “Apesar disso, há pessoas que vêm da Margem Sul, por exemplo. Além dos estrangeiros, é claro”, explica Bruno.
A expetativa dos cineclubistas é a de que os frequentadores fiéis acompanhem a mudança para a sala de cinema Fernando Lopes
Os estrangeiros, aliás, encontram no Alvalade Cineclube a possibilidade de assistirem a uma sessão de cinema mesmo sem o domínio completo da língua portuguesa. Como muitos filmes passam ao largo do circuito comercial de Portugal, às vezes chegam à programação com legendas noutros idiomas, como o inglês ou o francês.

Foi o caso da longa E a vida continua, que fechou o ciclo “Godard vai morrer”, o último de 2021, uma produção iraniana do realizador Abbas Kiarostami, legendado em inglês. “Às vezes, é a única opção para um casal composto por um cinéfilo português e um estrangeiro de irem ao cinema juntos”, comenta Bruno.
A expetativa dos cineclubistas é a de que os frequentadores fiéis acompanhem a mudança do cineclube do teatro do Centro Cívico Edmundo Pedro para a sala de cinema Fernando Lopes, na Universidade Lusófona. “Há sempre um risco, mas penso que as pessoas entenderão e vão aprovar as vantagens da nova casa”, aposta Bruno.
As vantagens da nova “casa”
As vantagens da nova “casa” são realmente uma boa aposta. Se o centro cívico teve o mérito de reconhecer o valor do projeto e abrigá-lo durante os primeiros dois anos, o cineclube precisou de lidar com algumas restrições inerentes a um espaço pensado para ser um teatro e não um cinema, o que de certa forma é a razão da reforma.
A reportagem acompanhou a última sessão na antiga casa e percebeu as limitações na acústica da sala e no sistema de som – na qualidade e no volume – e testemunhou o esforço de uma das cineclubistas ao operar o projetor do tipo datashow para acionar o ficheiro com o filme. Um pormenor que nestes dois anos em nada desmotivou os organizadores, cientes do perfil “guerrilha cultural” do cineclube.
“O tempo no centro cívico foi fantástico, mas a verdade é que agora estamos realmente numa sala de cinema”, reconhece Bruno, em relação à nova casa. Para já, as projeções estarão a cargo de um profissional da universidade, a partir de um projetor igualmente profissional. A sala Fernando Lopes também tem a acústica própria para a exibição audiovisual e as poltronas são mais confortáveis do que as cadeiras do teatro.
Sem falar na ampliação da capacidade, já que o número de assentos duplicou, de 80 do teatro para os 160 lugares do cinema.
Os herdeiros de Fernando Lopes
Para além das vantagens técnicas e ergonómicas, a mudança tem para dois dos cineclubistas um sabor especial: os irmãos Sofia Lopes Machaqueiro e João Lopes Borges são netos do realizador Fernando Lopes, que dá nome à sala de projeção da Universidade Lusófona.
“A escolha do local foi uma coincidência, mas não deixa de ser um orgulho”, diz Sofia, posando ao lado do irmão e dos filhos, Carmo e Vasco, diante da efígie do avô estampada na entrada da sala. “O meu avô aprovaria o cineclube. Ele nunca deixou de partilhar conhecimento. Sempre que um estudante de cinema o parava, na rua ou num café, pacientemente conversava, ouvia, explicava algo, tirava uma dúvida”, recorda-se.

Nem Sofia nem o irmão, entretanto, assistiram a filmes na sala que ostenta no nome o ADN dos seus apelidos. “É uma falha, mas agora não faltarão oportunidades”, diz a neta que na infância ia ao cinema na companhia do avô. Neste sentido, o cineclube pode tanto ajudá-la a corrigir a tal “falha” como lembrar-se das matinées em família.
Afinal, a sala Fernando Lopes abriga a memória de uma das grandes “catedrais” da sétima arte em Lisboa, o cine Monumental.
“As poltronas e o projetor vieram da sala 2 do cinema, graças a uma parceria com o produtor Paulo Branco”, revela o professor e diretor do departamento de cinema da Lusófona, José Manuel Damásio.

Damásio explica que a sala, inaugurada em 2019, foi aberta para que os alunos da graduação e pós-graduação em cinema da universidade pudessem assistir aos filmes que produziam durante o curso não no pequeno ecrã de uma televisão ou computador, mas na escala e condições profissionais de um grande ecrã.
A sala recebeu filmes de festivais como o Leffest e chegou a ter programação própria, interrompida pela pandemia, mas com promessa de ser retomada 2022. Atualmente, acolhe um outro cineclube, de caráter académico e destinado aos alunos da instituição. “A chegada do Alvalade Cineclube reforça a vocação da sala como um espaço de debate, reflexão e amor ao cinema”, resume José Manuel Damásio.
Um novo ciclo para o cineclube
O Alvalade Cineclube estreia-se na nova casa com o início de um novo ciclo temático, “Vai Brasil?”, como o nome sugere, dedicado ao cinema brasileiro. Até o fim de fevereiro estão programados sete filmes, a começar por Cinema Novo, no dia 13 de janeiro, seguido de A Grande Cidade, Paraíso, Pendular, Terra em Transe, Indianara e Divino Amor (detalhes da programação no site do cineclube).
“Assim como acontecia na antiga casa, as sessões acontecem às quintas-feiras, a partir das 21h, seguidas de um debate”, explica a cineclubista Inês Bernardo, que ao lado de Bruno entrevistaram o realizador de Cinema Novo, Erick Rocha. “Por questões do fuso horário, não havia como tê-lo a participar por streaming, mas a conversa gravada servirá de mote para se debater com os presentes”, explica.
O ciclo dedicado ao Brasil, como os anteriores organizados pelo cineclube, exibirá filmes produzidos em épocas distintas, mas que costuram reflexões sobre o contemporâneo. Como foi o caso da série “Ai Portugal, Portugal”, focada no cinema português. “Queríamos olhar para as faces múltiplas do audiovisual em Portugal e acredito que conseguimos alcançar o objetivo”, explica Inês.
O ciclo sobre o cinema português contou nos debates com a participação de atores, produtores e realizadores dos filmes exibidos nas sessões, como Tiago Pereira, Cláudia Varejão, Stefan Lechner e Jorge Pelicano, “o que atesta o prestígio dos cineclubes entre os profissionais como um espaço para pensar o cinema. Para nós, foi um indício de que estamos no caminho certo”, diz Inês.
A série programada em “Vai, Brasil?” quer aproveitar o ano eleitoral brasileiro para perceber se o cinema produzido atualmente no país comunica com o Cinema Novo, o movimento audiovisual que marcou uma crítica ostensiva durante a ditadura militar. Não por acaso, o realizador que abre a série de debates, Erick Rocha, terá o seu filme exibido ao lado do icónico Terra em Transe, assinado pelo pai dele, Glauber Rocha.
A qualidade dos filmes apresentados nos ciclos exige capacidade de negociação do cineclube com as distribuidoras. “Muitas delas são sensíveis ao cineclubismo e facilitam a exibição, mas há sempre um custo envolvido”, explica Inês. Até então, o “custo envolvido” – entre 100 e 200 euros pelos direitos de cada filme – era repartido entre os nove integrantes, mas a intenção é de dar um passo rumo à uma rotina um pouco mais profissional.
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Para isso, a partir de janeiro a entreda ns sessões deixará de ser gratuita. “Passará a custar 2 euros para o público em geral e 1 euro para os sócios”, explica Inês. O desconto – extensivo também a um acompanhante do associado – é parte da estratégia de fidelização, que prevê ainda outras valias, como participar na escolha dos ciclos e dos filmes a serem exibidos no futuro.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Excelente iniciativa, não podemos deixar morrer o cineclubismo . A Julieta é familiar do meu saudoso amigo Zé Pracana?
Interessante notícia sobre um tema importantíssimo, a participação na criação da cidade. Parabéns aos cineclubistas. Contudo, de referir que o Cine City Alvalade se encontra no local onde anteriormente se situava o Cine(ma) Alvalade que não se localizava na esquina com a Avenida dos E.U.A. Mas sem na esquina da Avenida de Roma com a Rua Luís Augusto Palmeirim.