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Enquanto subíamos a Saraiva de Carvalho em direção aos Prazeres, eu não queria acreditar no que me estava a acontecer. Tinha perdido a minha mãe de manhã e agora caminhava de mão dada com a Menina, lado a lado, como marido e mulher.
O meu coração não aguentava tanta emoção naquele dia e o raio da gravata estava tão apertada que me custava a respirar. Quando a Menina viu que estava em dificuldades olhou para mim e disse:
– António, vira-te para mim. Deixa-me arranjar essa gravata.
Fiquei logo vermelho que nem um tomate, mas quis fazer-me de forte e independente, sobretudo porque era o que o Manel me tinha dito para fazer.
– Obrigado, Menina, mas estou muito bem. Olhe nem calor tenho, imagine. Sei bem o que tenho de fazer agora que a minha mãe morreu: vou para o mar com um barco, como o meu pai, para me tornar no maior marinheiro que Portugal já viu!
Depois deste discurso, achei por bem arranjar a gravata de modo confiante e teatral, mostrando à Menina que era um homem forte e que podia tratar dela no futuro, quando tivéssemos uma casa. Mas ao arranjar a gravata, não sei bem como, puxei demasiado de um dos lados e quase que me asfixiei sozinho.
– Não és muito bom com gravatas, pois não? Disse-me ela com um sorriso enquanto me salvava da forca.
Não era um sorriso qualquer. Há sorrisos que carregam dias e aquele sorriso continha toda a minha dor daquele dia. Era um sorriso que exorcizava o trauma dizendo apenas “deixa-me ajudar António, que a gravata é só o início de uma longa jornada de obstáculos na tua vida”.
Não era um sorriso daqueles que resolvem coisas – como os sorrisos malandros que confirmam amores ou os sorrisos sozinhos da saudade – mas era um sorriso de esperança. Os sorrisos de esperança não resolvem muito ou quase nada porque são sorrisos de futuro, preocupados com o que virá e não com o que foi. São sorrisos prospetivos que dizem ‘aqui estarei contigo, para o que vier no amanhã’. E era desses sorrisos que precisava. A minha mãe, essa ninguém a traria de volta.
Assim que me arranjou a gravata deu-me um beijinho na testa. Eu quase que desmaiei e desconfio que não fosse da gravata.
– Olha está ali o 20! Corre, António, anda, anda!
Correr para apanhar elétricos não era a minha especialidade. Havia miúdos que faziam daquilo religião ou desporto e eram Peyroteos da corrida ao Elétrico. Mas eu nunca dominei bem a arte da corrida entre carris nem do salto em altura final necessário para se agarrar o corrimão. Agora, vestido de fato e gravata, o desafio parecia 10 vezes maior. Enquanto a Menina se escapava em direção ao elétrico que fugia, pensei para mim mesmo:
– António a tua vida decide-se aqui, numa última corrida, na derradeira perseguição, na luta entre homem e máquina!
E puxando mais uma vez o raio do fio errado da gravata (tornando a corrida ainda mais difícil) desatei a correr atrás da menina.
Foi talvez aí que me apercebi que podia parar o tempo. Quando desatei a correr, a Menina, o elétrico, as senhoras da Moda, os cães e os gatos, tudo ficou mais lento, deixando para trás um rasto de luz verde-marinha.
Era como se quanto mais corresse mais eles abrandavam e mais forte ficava a cauda verde que deixavam. Corri, corri, corri e como por magia agarrei a mão da Menina que já se atirava ao 20 e apanhei o carro a tempo.
– Assim é mais fácil não é António?
– Assim como?
– Correndo contra o tempo.
O 20 deixou-nos rapidamente à porta do cemitério dos Prazeres onde eu raramente me aventurava porque era território de outros miúdos com quem não nos dávamos. Os miúdos de Santa Isabel historicamente tinham tido problemas com os putos dos Prazeres e dessas históricas batalhas de pedrinhas ainda se contavam cicatrizes e galos na cabeça.
Não estava por isso muito confortável naquela zona e resolvi dar o meu chapéu à Menina para a proteger de alguma bala perdida que pudesse cair por azar.
– António quero apresentar-te alguém. Chama-se Maria e vive no 61 da Estrada dos Prazeres. É muito minha amiga.
– Se é sua amiga, minha amiga é, Menina.
A Maria era uma menina que vivia à janela. Tanto quanto sabíamos estava sempre em casa e nunca ninguém a tinha visto em lado nenhum que não fosse à beira da janela da sua mãe.
Era franzina e muito branca, sem dúvida fruto da ausência de luz que nunca apanhava, e tinha o olhar mais triste do bairro. Enquanto miúdos nunca percebemos bem porque não saía de casa e, sempre que lhe perguntávamos, ela replicava dizendo ‘a minha mãe não deixa’.
Quando chegámos ao topo da rua, a menina virou-se para mim e disse:
– António esta é uma missão de salvamento. Vamos raptar a Maria e mostrar-lhe o mundo.
– Olhe que a mãe não deixa! E a senhora está sempre em casa… não acho boa ideia.
– Ai, não achas? Está bem. Se és um cobarde, pronto, não és o António que pensava.
– Cobarde?! Eu?! Saiba a menina que a minha família lutou contra espanhóis e mouros, no século XII…
– Mas salvar meninas parece que não.
– Pronto, diga lá o plano.
E passámos o resto da tarde a planear aquele que seria o resto das nossas vidas.
* Lisboeta de gema, dividido entre o Saldanha e Campo de Ourique, Francisco de Abreu Duarte é doutorando em Direito e Tecnologia, fotógrafo amador e viajante profissional. Viveu em Bona, Nova Iorque, Bruxelas e Florença. O coração esteve sempre em Santa Isabel onde passeava com o seu avô.
Muito interessantes as suas crónicas. Parabéns!