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Em todos os passeios que dava com o meu avô, pelas ruas e travessas do nosso bairro de Campo de Ourique, havia sempre uma paragem obrigatória. Às vezes no início da caminhada, como quem quer arrumar rapidamente o assunto, às vezes no final do passeio, como que fechando um capítulo da nossa vida, todas as aventuras desembocavam naquela casinha cor-de-rosa da Travessa da Arrábida.
É difícil explicar o que o meu avô sentia quando parávamos naquele lugar. Chegávamos sempre vindos da Saraiva de Carvalho, pela Rua de São Joaquim, contornando a Igreja de Santa Isabel pela esquerda e descendo depois para aquela travessa estreita e lisboeta que era a sua. Nem por uma vez, ao longo de duas décadas de passeios, chegámos àquela casinha cor-de-rosa vindos da Rua do Arrábida. A razão – especulo eu, que nunca lhe perguntei – era a de que esse era o caminho da sua infância e o que melhor lhe lembrava a sua mãe.
Afinal, a casinha cor-de-rosa era a sua casinha cor-de-rosa, onde passara os primeiros oito anos de vida, onde conhecera o Manel, o Tozé e o Chico, e de onde recentemente tinha partido em busca da Menina dos Olhos Verdes de Campo de Ourique. E se o seu amor sempre vivera para os lados do Cemitério dos Prazeres, era para cima, nessa direção, que todos os seus dias deveriam começar.
A casa era modesta, com dois andares minúsculos, entalada numa travessa que se chamava assim por atravessar duas ruas e nada mais. O meu avô vivia com a sua mãe nas águas-furtadas e no rés-do-chão viviam duas velhas solteironas. O pai – de quem vos falarei mais tarde – andava no mar e por lá ficava meses a fio sem voltar a casa. Era, portanto, uma casa de dois, de uma mãe e de um filho, que viviam tal qual tantas famílias pobres do nosso bairro nos anos 1940. Segundo o que o meu avô contava, era uma casa cheia de amor, mesmo que vazia de pessoas e móveis.
– Já te contei a história do dia da morte da minha mãe?
– Acho que não, avô. Mas adorava ouvir.
Era mentira. Já a tinha contado e eu já a tinha ouvido uma centena de vezes. Estas eram só as palavras que trocávamos, como se de um ritual se tratasse, antes de o meu avô começar a difícil tarefa de contar a história daquele dia. Não era pela história que ele a contava. Ou seja, não era pelos factos que se tinham passado naquele fatídico dia que mudaria para sempre a vida do meu avô, nem era pelos detalhes de quem tinha vivido e testemunhado a sua dor. Essa descrição já a sabíamos e pouco importava. Ele contava a história daquele dia para que a sua mãe, minha bisavó, soubesse que era recordada, que não a tinham esquecido ao final de 80 anos. Duas gerações paravam de fronte da varanda daquele segundo andar do número 10 e partilhavam a dor do dia da sua morte. Ela escutava, da varanda, o filho e o bisneto a falarem dela.
Acordei naquele dia com um tremendo alvoroço à porta de casa. Deviam ser para aí umas sete da manhã quando ouvi os primeiros gritos da minha mãe à janela. Embora a minha mãe sempre tivesse falado muito alto – era uma senhora forte, grande e com um grande vozeirão –, naquele dia achei que era demasiado até para ela e levantei-me a correr. Quando entrei na salinha, dei com a minha mãe à janela a ouvir outra senhora do bairro que, em tom desafiador, lhe dizia:
– Mas acha normal?! Acha normal atirar assim pó para cima das pessoas?
– Mas o que quer que faça, diga lá? Que deixe o pó aqui em casa nos tapetes? Sabe que eu tenho um filho pequeno aqui em casa, está a ouvir? Não posso deixar aqui tudo por fazer!
– E não me vê quando faz essa porcaria? Realmente a gentinha deste bairro é cá de uma laia, de atirar pó para cima de quem passa!
– Ah, vá dar banho ao cão, minha senhora, que pó já a senhora tinha em cima desde o dia em que nasceu!
A minha mãe não gostava nada de conflitos e eu sabia, pelo que fiquei logo preocupado com a zanga. A outra senhora fechou a discussão dizendo que ia à polícia e que nos tiravam a casa – o que era uma valente mentira e ninguém acreditaria não fosse o estado de nervos da minha mãe – e isso afetou bastante o humor da minha mãe naquele dia. Quando se voltou da janela com o tapete nos braços deu comigo a olhar para ela um bocadinho assustado:
– Ó Tózinho, o que andas a fazer aqui acordado? Não te preocupes meu querido, é gente rica e parva. Rica e parva.
Deu-me um abraço e foi arrumar o tapete no seu quarto.
Não me lembro bem de quando terá acontecido nem exatamente qual terá sido o momento que terá causado a morte da minha mãe. Possivelmente terá sido a perspetiva de lhe tirarem a nossa casa, tudo o que tínhamos, que já era pouco. Talvez tenha sido a reação à prepotência da senhora rica, que revoltou a mente da minha mãe e o corpo não acompanhou. Não sei. O certo é que, em menos de nada, ouvi um tombo grande no quarto. Um tombo profundo, mas nenhum suspiro de quem deixa a vida, nem um esgar de dor, nem o meu nome. Nada. Só um tombo, assim, pum. Corri desalmado para o quarto e encontrei a minha mãe caída no chão, de olhos abertos, sem reagir.
Na altura não existia nenhum serviço de ambulâncias nem telefones que o pudessem contactar e, portanto, o máximo que podia fazer era correr em busca de ajuda. Desci as escadas duas a duas e bati freneticamente à porta das velhas do rés-do-chão:
– Ajuda! Ajuda! A minha mãe caiu, a minha mãe caiu!
As velhotas receberam-me com muita calma e, ao explicar-lhes a situação, recomendaram que fosse à drogaria do Zé buscar sais de frutos. Achavam que devia ter sido uma indigestão e que a mãe se teria deitado para descansar e que ficaria tudo bem. Eu, ouvindo o que as velhas diziam, achei tudo aquilo muito estranho, porque a minha mãe nunca dormia no chão do quarto, muito menos de olhos abertos. Por isso fui a correr ao Zé pedir os sais de frutos, mas ao mesmo tempo usar o telefone dele para ligar ao Dr. Mello para que fosse ver a minha mãe. Quando voltei a casa a minha mãe não se tinha mexido um milímetro, mas estava branca e pálida como as paredes da nossa casa.
– Que idade tinhas, avô?
– 8 anos. Não sabia nada.
Quando o Dr. Mello chegou era obviamente demasiado tarde. A causa da morte teria sido ‘comoção’, fruto da zanga que eu tinha retratado o melhor que podia, e que era causa comum de mortes quando as pessoas se exaltavam. A minha mãe tinha morrido de comoção naquele dia, e eu tinha ficado sem ela, por causa de um tapete. Naquela sala, quando o resto da minha vida foi pronunciada, éramos cinco: as duas velhas, o médico, eu e a minha mãe. Tudo se passou com tal rapidez que nunca saberei bem descrever:
– E o que é que se faz com o miúdo?
– Ai, Dr., nós não podemos ficar com ele… ele tem pai, tem de se contactar o pai.
– Bom, as senhoras tratem disso, que eu vou falar com o Padre.
Depois de discutidos todos os detalhes, mandaram-me sentar nos degraus de Santa Isabel à espera. E eu esperei pela minha mãe – desconfio que o meu avô continuou à espera dela uma vida inteira –, mas ela nunca voltou. Nem me lembro bem se chorei naquele dia ou se chorei só depois, muitos anos depois, mas o certo é que passei o dia todo naqueles degraus de Campo de Ourique até o Sol finalmente começar a descer.
Quando me preparava para ir ter com o Manel, para lhe contar do sucedido, vejo uma luz a vir ao meu encontro. Era a mesma luz da outra vez, de cor esverdeada, como se a luz do sol atravessasse um vitral verde-marinho. Quanto mais se aproximava mais certeza tinha de que só podia ser a Menina dos Olhos Verdes. Desta vez vinha sozinha, de vestido de linho branco, olhando diretamente para mim. Quando se aproximou, fiquei todo nervoso e vermelho e tentei ajeitar a gravata e o fato que as velhas me tinham vestido. Ao chegar perto de mim, a luz dos seus olhos parou e ficaram só as esmeraldas que a produziam. Ficou só a Menina, linda como a tinha sempre imaginado.
– Já soube da tua mãe, António. Lamento. Anda, vamos dar um passeio.
E fomos, de mão dada, bairro acima.
* Lisboeta de gema, dividido entre o Saldanha e Campo de Ourique, Francisco de Abreu Duarte é doutorando em Direito e Tecnologia, fotógrafo amador e viajante profissional. Viveu em Bona, Nova Iorque, Bruxelas e Florença. O coração esteve sempre em Santa Isabel onde passeava com o seu avô.
Linda crônica. Leitura com sentimento.
Nada tendo a ver os locais e acontecimentos, levou-me ao mundo das histórias do meu avô. Obrigada.