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A processar…
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Apesar de ter nascido na capital e ter vivido sempre em prédios, não foi por isso que não tive contacto com animais vivos, até porque na minha infância os aviários estavam ainda por explorar e, se queríamos comprar um peru ou um frango, tínhamos de ir à praça (era assim que a minha mãe chamava ao mercado) e escolher, entre muitos exemplares vivos, aquele que iria dar-nos de jantar.

Lá mesmo, a vendedora (eram normalmente mulheres que se ocupavam dos animais de capoeira) cortava-lhe a cabeça, depenava-o às três pancadas e, quando o cadáver do bicho chegava a nossa casa na alcofa de palha, trazia ainda penas agarradas ao rabo e sangue fresco na goela.

Não nos fazia impressão: estávamos familiarizados com o processo que hoje chocaria decerto muitas crianças alfacinhas, bem como a ver regularmente tripas, vísceras ou uma enorme língua de vaca pousadas na banca da cozinha e até, num dia especialmente festivo, um crustáceo entrar vivo numa panela com água a ferver…

Mesmo no colégio, apesar de sermos todas senhoras e meninas, não havia grandes delicadezas: quando a professora de Ciências começou a dar a matéria de Zoologia, mandou-nos para o laboratório e matou um coelho com uma cachaçada ali à nossa frente (até para explicar como se fazia, se viéssemos a precisar); e, depois de uma incisão com um bisturi, mostrou-nos o coração, os pulmões, o estômago e até as caganitas secas que o animal ainda tinha nos intestinos (não houvera tempo, enfim, para se borrar de medo). Não me lembro de lágrimas ou desmaios: a Lisboa daquele tempo era mais selvagem, e não uma cidade de cãezinhos, gatinhos e comida embalada.

Até os animais domésticos eram diferentes. Um amigo nosso tinha, por exemplo, um sagui que andava ao ombro (e mordia) e havia um vizinho snob que domesticara uma raposa; também conhecíamos quem houvesse optado por cágados, camaleões e porquinhos-da-índia.

Lá em casa, além de um periquito amarelo que adorava tomar banho debaixo da torneira e fingia que cantava para agradar à minha avó paterna, alguém oferecera ao meu irmão um grilo numa gaiolinha de plástico que pendurámos na escada das traseiras – e esse, sim, cantava como ninguém. Foi uma choradeira quando alguém o encontrou morto, vítima de um balde com água e sabão despejado do andar de cima… O meu irmão ficou inconsolável.

Por sua vez, a minha avó materna tinha um papagaio brasileiro, o Louro, que a acompanhava ao piano quando ela cantava e até respondia aos seus apelos de «alto» ou «pianinho» modulando a voz para o volume pretendido. Mas toda a gente embirrava com o espécime, não apenas por repetir constantemente palavras feias ouvidas aos malandros da Sé, mas também porque quando alguém batia à porta ele respondia invariavelmente «Já lá vai!», estando ou não gente em casa, e as pessoas ficavam eternamente à espera de que viessem abrir…

Nesse tempo, era também comum pagarem-se favores com caixotes de fruta, dúzias de ovos de galinhas do campo, ou mesmo porcos inteiros desmanchados. Ora, tendo o meu pai ajudado já não sei quem a resolver um diferendo jurídico pro bono, a mostra de reconhecimento não se fez esperar. E já não sei como terá chegado ao nosso sexto andar um cabrito com um focinho lindo de morrer que foi preciso aceitar para não fazer desfeitas, mas ficou a viver na varanda um ror de dias, pois ninguém era capaz de o imaginar em costeletas depois de lhe ter feito festinhas… Quase se tornou o nosso animal de estimação, até que a minha mãe começou a adivinhar os pinotes que a cabra daria daí a uns meses e decidiu que o melhor era ir vendê-lo à praça…


Maria do Rosário Pedreira

Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.

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2 Comentários

  1. Pese eu não ter nascido em Lisboa ou em qualquer outra cidade grande ou pequena todo o texto me remete para as minhas vivências na exacta medida da sua interpretação. Não havia substancial diferença entre o modus vivendi numa cidade e a vidinha numa terra a Norte onde se chegava após 9 ou 10 horas de comboio a carvão que as crianças viajantes transformavam em infantário as vetustas carruagens de tal modo legitimo que até os peúgos, as mãos e as caritas chegavam enfarruscados ao fim da viajem. Isto para nada ser dito a respeito das desancadas e impacientes mães! E, porque é que tudo sendo diferente era tão igual? Simples: Tanto na cidade mesmo capital da Nação como lá a 300km de distância não havia frigoríficos. Por todo o reino as mães iam à praça e a comida era feita de coisas frescas e boas a que agora chamam “caseiras” porque as Mães estavam em casa1

  2. Cara Maria do Rosário Pedreira, com cabrito ainda tenho uma história mais curiosa. Durante alguns anos da minha juventude, entre os 7 e os 15, vivi em Portalegre, onde o meu pai, professor, fora colocado. Habitavamos um primeiro andar, com varandas, na rua de Elvas. Também eu tive um cabritinho em casa que se transformou em animal de companhia e de estimação, tal a sua dedicação, o que impossibilitava qualquer mau pensamento.
    Eu frequentava o liceu na época e saía de casa de manhã, subia a rua em direcção às aulas. O cabrito normalmente vinha à varanda despedir-se. Um dia, para meu espanto completo, resolveu saltar do primeiro andar para a rua e perseguir-me até ao liceu. Felizmente não se feriu. Tive de voltar atrás, devolver o cabrito à casa e fechar a janela da varanda. Casos de dedicação extraordionária. Abraços.

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