Naquela que é hoje uma cidade faminta e a apodrecer – Caracas, na Venezuela –, há vinte e cinco anos, num restaurante banalíssimo, recusaram a entrada a dois amigos com quem eu viajava por não irem de casaco, apesar de a temperatura cá fora rondar os 35 graus. Demos meia volta e falámos em procurar outro sítio para jantar; percebendo então que éramos estrangeiros, o funcionário lá concordou em arranjar-nos uma mesa, mas foi pendurar dois blazers emprestados nas costas das cadeiras, não fosse a reputação do restaurante ficar beliscada. (Lá dentro, o ar condicionado estava, de resto, nos 15 graus, decerto para manter os clientes de casaco vestido.) 

Nessa altura, já se andava de sapatos de ténis em Lisboa mesmo para ir trabalhar, mas na minha infância os lisboetas ainda se vestiam formalmente para jantar fora – e os homens, claro, de gravata. Se a saída era para o Coliseu, o Casino ou a casa de algum embaixador ou anfitrião mais ilustre, lembro-me inclusivamente de a minha mãe usar vestidos até aos pés, lantejoulas, tafetás e brincos compridos. Tratando-se de baptizados ou casamentos, não faltavam luvas e chapéus.

A globalização tratou de simplificar tudo, com a vantagem do conforto e de apagar as diferenças sociais massificando a moda e criando roupa gira para todos os bolsos. Que bom. Perdeu-se, mesmo assim, esse lado glamoroso e chique que, podendo ser considerado fútil, enchia o olho e também não deixava de representar um certo respeito pelo acto a que se assistia ou pela pessoa que convidava.

Talvez a informalidade tenha vindo da América – e digo isto por causa de uma história que se passou lá em casa teria eu uns cinco anos. O meu pai trabalhava então para a Standard Electric e um dos seus colegas – um americano que vivera uns tempos em Lisboa – escreveu-lhe a pedir guarida durante uns dias para dois filhos adolescentes que andavam a viajar pela Europa. A minha mãe apressou-se a ceder-lhes o quarto onde a minha irmã e eu dormíamos, que tinha duas camas, e esvaziou gavetas e metade do varão do armário para os rapazes terem onde guardar as suas coisas.

Ora, quando eles chegaram, não só se percebeu que teriam de dormir com os pés de fora (mediam quase dois metros) mas também que fora completamente escusado arranjar-lhes espaço para a roupa. Segundo a minha mãe, vestiam sempre as mesmas T-shirts encardidas e umas calças de ganga amarrotadas, tendo ela de lhes levar do quarto à sorrelfa a roupa interior para ser lavada, pois também não a mudavam com a frequência desejável. E uma bela noite, quando saíram para ir beber uma cerveja ao bar do Monumental, regressaram quase logo a seguir, explicando, verdadeiramente incrédulos, que não os tinham deixado entrar. A razão? Iam de ténis…

Um destes dias, recebi um livro de um senhor brasileiro de certa idade; vinha acompanhado de um cartão-de-visita, no qual estavam impressos, em tipografia cuidada, o seu nome e o da mulher. Lá em casa, quando eu era pequena, também havia desses cartões com os nomes dos meus pais. E agora, que penso nisso, creio que serviam, entre outras coisas, para agradecer jantares em que a elegância marcava lugar.


Maria do Rosário Pedreira

Nasceu em Lisboa e nunca pensou viver noutra cidade. É editora, tendo-se especializado na descoberta de novos autores portugueses. Escreve poesia, ficção, crónica e literatura infanto-juvenil, estando traduzida em várias línguas. Tem um blogue sobre livros e edição e é letrista de fado.

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2 Comentários

  1. Viajei mais uma vez para o interior do mundo imaginário com a sua escrita
    Fiquei a pensar em como Venezuela se tornou e em como tudo muda
    Hoje somos bem mais confortáveis no nosso corpo.

    Fiquei curiosa em saber como está a correr a vida desses dois jovens que não precisaram do armário de vossa casa!

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