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Arlindo Santos fala com a linha presa entre os dentes, enquanto as mãos ágeis preparam o isco no anzol. A brisa fresca que sopra na Doca do Pedrouços e espanta por um nanossegundo o calor intenso convida ao dolce far niente. Entretanto, para os pescadores alinhados diante do Tejo, não há tempo a perder: o dia é de competição.
Ou quase isto.
“Viste aquele?”, pergunta o homem ao lado de Arlindo. “É mais um que apanhei e não conta”, prossegue, a lamentar o peixe que lhe escapou. “Ainda anda por aí”, encoraja-o Arlindo, apontando com o queixo para o rio. “Tens é que pôr a minhoca menor, senão os gajos puxam e não mordem o anzol”, ensina, com a linha entres os dentes.
— Eu sei lá meter estas tretas! — desabafa o outro.

Arlindo prontamente interrompe o que faz e agora está com linha do pescador ao lado entre os dentes. Numa das mãos, a tesoura amputa parte da minhoca, deixando o isco do tamanho certo para que os “gajos” não o puxem sem morder o anzol. Em alguns segundos, devolve-a ao outro, pronta para riscar o Tejo.
É dia de competição, mas o pescador ao lado não é um inimigo. Há um sentimento que une aqueles homens, maior que o Tejo, maior ainda que a imensidão do oceano que se avista da doca ao pé da Fundação Champalimaud. Um laço firme como o que prende o anzol à linha, urdido pelo conforto de estar entre os seus, em boa companhia.
Para além do cheiro a peixe e sal, foi possível respirar o ar de alegria e fraternidade durante as cinco horas de disputa do III Torneio de Pesca Desportiva de Santa Maria Maior, que levou, no fim de semana, cerca de quatro dezenas de pescadores à Doca do Pedrouços, nos limites entre Belém e Algés.
A competição regressa após ter sido cancelada no ano passado, assim como tantos eventos, pelas tormentas da pandemia. A última edição, em 2019, foi realizada na Cova do Vapor, na outra margem do Tejo. A intenção era marcar o regresso com uma prova em “casa”, em Alfama, mas o mar da burocracia não estava para peixe.
A terceira edição foi a que teve o maior número de inscritos, 47, todos vacinados contra a Covid e testados para o torneio
“Havia um simbolismo de fazê-la na Doca do Jardim do Tabaco, mas não obtivemos autorização”, explica Ricardo Dias, vogal do desporto na Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, responsável, entre outras coisas, por dividir os competidores pela extensão da doca, em nome do distanciamento físico exigido pela saúde pública e para que as canas não se emaranhem entre elas.
Coube também a Ricardo a importante missão de pesar os peixes, alguns assim que são pescados, para serem imediatamente restituídos ao Tejo. Na casa dos trinta, é o mais jovem na doca. A maioria dos pescadores tem idade para ser seu pai ou tio e a verdade é que alguns deles dividiram a infância em Alfama com o pai e o tio de Ricardo.

“O teu tio andava comigo aos ombros”, diz Mário Matos, um bem-humorado morador de Alfama que acompanha tudo abrigado do sol na tenda armada pela Junta. Não foi à pesca, mas garantiu o seu quinhão na pescaria, ao fazer da navalha o abridor das minis sacadas a um barril, crucial hidratação para os pescadores castigados pelo sol.
A terceira edição foi a que teve o maior número de inscritos, 47. “Todos vacinados e testados”, reforça Ricardo. Dois concorrentes foram desclassificados após o teste positivo. A prova reúne seis coletividades, que disputam o troféu entre si. Há ainda prémios individuais para o maior exemplar e a maior quantidade de peixes pescados.
História de um pescador: o morto-vivo
Arlindo Santos defende o Grupo Sportivo Adicense, a maior equipa presente no torneio. O que não é garantia de vitória certa. O pescador ao seu lado, aquele com pouco jeito para iscos e anzóis, é o presidente do Adicense, Paulo Bolgarim, que como um bom líder, participa da competição sobretudo para dar apoio moral aos demais.

Após um desentendimento com a cana de pesca, Paulo passou boa parte da pescaria a acompanhá-la à distância, protegido do sol, sob a tenda da Junta. “O Paulo trouxe uma cana com wi-fi”, provoca um dos pescadores, um tipo divertido cuja missão na pescaria é destilar breves comentários jocosos sobre os outros pescadores.
— Fulano nunca pescou nada na vida — alguém comenta, sobre outro pescador.
— Pescou só a mulher. E mal pescada — responde, sem pestanejar.
É ele quem insiste em chamar o Arlindo de “Penalty”. Pergunto se a alcunha deriva de jogar à bola e ser um ás das grandes penalidades. “Até jogou. Foi central n’Os Onze da Rua de São Miguel, mas não é por isso”, responde, lembrando com um gesto de mão que a punição máxima do futebol batiza o estilo de se esvaziar um copo de imperial num só shot.
A competição regressa após ter sido cancelada no ano passado, assim como tantos eventos, pelas tormentas da pandemia.
Arlindo também é conhecido em Alfama por uma outra alcunha, esta ainda mais intrigante. “É o morto-vivo”, comenta Mário, abrindo outra mini com a sua navalha. “Há cinquenta anos, ele era um miúdo e estava a brincar num dos barcos na Doca do Jardim do Tabaco quando escorregou e bateu com a cabeça com toda a força”, conta.
A história prossegue com o pequeno Arlindo dado como morto. “Levaram-no para a porta 18 do São José”, continua Mário, referindo-se à temível e mítica entrada da morgue do hospital. “E Arlindo despertou lá, sozinho e com frio, no meio da noite, deitado na pedra”, finaliza, os olhos arregalados, a navalha a tirar a carica a mais outra mini.
O resto quem conta é o próprio Arlindo, já depois da pescaria. “Confundiram-me com um miúdo que se afogara numa doca em Belém”, explica, sem mais, enquanto exibe, orgulhoso, aos colegas de trabalho do Museu de Fado, o linguado com mais de 500 gramas iscado por ele, o maior exemplar na conta do Adicense no torneio.
O polícia e o biólogo em ação
Os mais de cinquenta anos de Arlindo, o pescador que desafiou até a morte, contrastam com o iniciante André Pedralva, 30 anos e apenas dois de pescaria. “Os amigos iam ao Barreiro, Montijo e Sado, e comprei a cana para os acompanhar. Acabei por ganhar o vício”, conta o sorridente agente da PSP da esquadra da Rua da Prata.

Os poucos anos de pesca não o impediram de fisgar o segundo maior peixe do dia, um sardo com cerca de um quilo, que contribuiu para que Academia de Recreio Artístico da Baixa de Lisboa fosse a coletividade campeã, deixando o Adicense de Alfama em segundo lugar, seguido pelo Centro Cultural Doutor Magalhães Lima.
“Os peixes respeitam a autoridade”, alerta o pescador-contador-de-piadas, admirando o sardo a nadar no balde ao pé do polícia, antes de ser pesado e devolvido ao rio. “Tens é que ver se não há um amigo dele com um escafandro ali por baixo a dar-lhe uma mãozinha”, completa, desaparecendo em seguida para não incorrer em desacato.
Mesmo ao longe, é ainda possível ouvi-lo em ação:
— Sicrano apanhou alguma coisa? — quer saber alguém.
— Apanhou, sim, apanhou muita água — responde.
Quem apanhou muita coisa foi Filipe Romão, 42 anos, um pacato biólogo de fala pausada, porém eloquente com a cana na mão, que garantiu ao Adicense o troféu de primeiro lugar na categoria Maior Quantidade. Doutorado em biologia, Filipe somou os seis anos de pescaria aos tantos outros de academia para pescar nove exemplares.

O segredo parece estar no isco, um “engodo” preparado com ciência e sardinha. “É preciso amassar bem amassado para fazer uma papa e enganar o peixe”, ensina o biólogo que trocou as ondas da Nazaré natal pela terra firme. O gracejador está de volta e, ao mirar o balde cheio de Filipe, não resiste: “Este passou antes no Pingo Doce…”
Para além da pescaria, a alegria
Perto do fim, à hora da entrega de prémios, chega o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho. E chega no melhor estilo da manhã de pescaria, a bordo do próprio barco. “Gajo fino!”, reconhece o humorista amador, acenando da doca para a embarcação que reluz no rio.
— Há caldeirada ou não há caldeirada? — grita do barco o capitão Miguel Coelho.
— Isto de peixe ’tá muito fraquinho hoje — responde um dos pescadores.
— Mas já aí peixes a marcar para falar consigo — avisa o incansável humorista.
Mesmo que o dia não estivesse fraquinho para peixe, a tradicional caldeirada não iria acontecer, pois as medidas de sanitárias impedem o tradicional “recobro” da pescaria, em tom de confraternização. A má notícia já era esperada e coube ao vogal Ricardo Dias reforçá-la, com a promessa de retomá-la no ano que vem.

A entrega de prémios, por sua vez, decorre como de costume, com a pesagem final, a divulgação dos resultados, a indefetível fotografia dos vencedores ao lado do presidente da Junta e a merecida salva de palmas. De repente, alguém se lembra de perguntar ao pescador piadista o que ele pescou:
— Uma tainha, doze minis, duas médias e uma sandes — responde.
Esse é o espírito. Após um ano de pandemia e as canas, linhas e anzóis trancados no armário, o sentimento entre os pescadores, cada um à sua maneira herói no dia a dia, é de naquele sábado ter testemunhado um pequeno milagre. Para além da pescaria, celebrou-se alegria de estar vivo para contar a história.
Nem que seja história de pescador.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
É uma legria saber que em plena pandemia, devidamente cuidado, um grupo de alfacinhas entre canas, iscos, linhas, águas do meu Tejo, anzois e outras coisas mais , tais como minis, médias, sandes e uma caldeirada gorada, passaram um dia de pescaria e de amizade. Gostei que tenha sido um irmão “brazuca” a contar a história, potrque vive entre nós.
Excelente manhã de convívio.
Boa organização.
Parabéns ao pelouro do desporto da JFSMM