Sempre gostei da Rua Morais Soares. Nasci e cresci no Bairro da Penha de França ali ao lado. Sempre adorei aquela rua. Quem a conhece sabe do que falo. Sempre movimentada devido ao comércio, sempre viva, alegre, iluminada e com carisma…

Milhares de pessoas percorriam diariamente a Rua Morais Soares em ambos os sentidos dentro da sua azáfama característica. E dezembro tinha chegado. E com dezembro chega o Natal, embelezando ainda a mais a rua com os seus arcos de enfeites luminosos desde a Praça do Chile até ao Alto de São João.

Quando anoitece, a Rua Morais Soares é um dos ex-líbris da nossa cidade. Faltavam poucos dias para o dia 25, estávamos a 20 para ser mais exato. Quantas vezes no passado, por esta altura do ano, subi aquela rua para comprar as prendas, o bolo-rei, o “meu cabrito assado favorito” pois não gostava de peru, e terminar alegremente junto à Praça Paiva Couceiro para beber uma ginjinha numa célebre tasquinha que lá havia…

Era com estes pensamentos que subia agora a Rua Morais Soares, quase que me arrastando, nostálgico… Uma nostalgia acompanhada com um sentimento de dor. Mas acreditem que subia a rua como sempre subi desde criança, olhando para os arcos enfeitados e luminosos, sentindo o cheiro do Natal, passando pelas pessoas a entrar e sair das lojas alegremente.

Sabem, quando se é um sem abrigo vagueando por essas ruas e vivendo na miséria, conseguimos ver mais facilmente a alegria nos rostos alheios, mas eu tentava afastar nessa noite esses pensamentos. Dormia na rua, sim. Vivia na miséria. Mas o meu espírito natalício de garoto esperando a prenda dentro do sapato permanecia ingenuamente dentro de mim.

Parei à porta de uma loja onde o meu pai me tinha levado pela mão há muitos anos para escolher uma pista de carros elétrica, prometendo-me falar de mim ao Pai Natal. Agora era uma loja de conveniência. Que idade teria? Seis ou sete anos. De súbito, sussurro para mim próprio um palavrão e decido pôr cobro às possíveis lágrimas que pudessem sair dos meus olhos. Fazia isso já muito habilmente. Viver na rua ensinou-me a não chorar.

Os sem abrigo aprendem a não chorar. Entre nós chorar é um sinal de fraqueza, e nas ruas quem é fraco não sobrevive. Alguma vez viram um sem abrigo a chorar na rua? Provavelmente, nunca.

Além do mais, eu tinha ido à Rua Morais Soares com um objetivo: comprar um blusão, pois andei quase 15 dias a arrumar carros e a pedir moedas para o comprar, poupando dinheiro cortando por vezes em comida e apanhando muitas beatas de cigarros. O blusão que tinha vestido já estava roto e coçado e o inverno estava no seu auge. Andava por isso a “namorar” um blusão numa lojinha barata ali na rua. Finalmente tinha a nota de 20 euros para o comprar.

Durante os oito meses que vivi na rua, sempre me preocupei com o meu aspeto. Para mim era fundamental para manter a minha dignidade, que já era muito fraca e quase inexistente. Mas fazia tudo para manter o meu bom aspeto. Tomava banho regularmente num quartel de bombeiros e nos balneários públicos. A minha preocupação era sempre ter moedas para lavar a roupa nas lavandarias automáticas. Mas é caro lavar a roupa e era muito difícil cheirar bem.

Acham estranho isto? Ser difícil cheirar bem? Para um sem abrigo não é. Para quem não tem acesso regular a água, é muito difícil. Mas lembro-me que, nesse final de tarde, tinha tomado banho e tinha lavado a minha roupa, que já era muito pouca. Tinha somente duas calças de ganga ainda em estado razoável, penso que três t-shirts já bastante usadas, um pullover e uma camisola grossa ainda em bom estado, tipo polo. Era o que restava da roupa que tinha trazido do último quarto alugado onde vivera.

Viver na rua gasta a roupa depressa. Também vendi alguma e roubaram-me muita roupa também. Olhei para os meus pés e tinha calçados uns ténis ainda em bom estado que me tinham dado nos carros de apoio uma ou duas semanas antes. Olhei de soslaio para o espelho de uma montra e até me senti satisfeito, pois não estava com muito mau aspeto. Ainda podia entrar numa loja. O blusão é que já estava indecente, mas também bastava deitá-lo no lixo antes de entrar na loja.

Dei por mim a pensar que no meu passado, houve dias em que a minha preocupação seria escolher a loja. Num passado mais recente, outros houve em que a minha preocupação seria ter ou não dinheiro para comprar na loja. E a minha preocupação presente era se me deixariam lá entrar…

Mas ponto final! Era Natal e eu ia comprar um blusão, com uma nota de 20 que tinha me tinha dado o António do quiosque em troca do meu “meio quilo” de moedas, como ele disse brincando ao trocar o meu dinheiro. Desse “meio quilo” ainda fiquei com cerca de 2 euros, que dei ao Zé, que não quis vir comigo dizendo que não estava apresentável para vir às compras com ninguém. E de facto, não estava. Secretamente, agradeci-lhe por ter tomado essa decisão.

O Zé não se cuidava como eu. Tinha mais tempo de rua. Certos valores começam a desaparecer, como podemos observar em pessoas que já andam há anos na rua. Mas eu adorava o Zé. Era um excelente ser humano, que nunca colocou condições para ser meu amigo. E só eu sei o que ele me ajudou.

Apesar dos desentendimentos que por vezes tínhamos e das “birras” inevitáveis de dois homens que vivem ao lado um do outro nas ruas vinte e quatro horas por dia, eu e o Zé éramos bons amigos. Ao final do dia, éramos sempre o porto de abrigo um do outro.

Finalmente, chego ao meu destino. Ainda não eram 19 horas, por isso decido descansar um pouco sentado no peal da porta ao lado da loja. Eu caminhava quilómetros por dia e já tinha passado os 50 anos de idade. Lembro-me de pedir um cigarro a um jovem que passava. Acendi o cigarro e comecei a fumar tranquilamente até que a minha atenção começa a centrar-se na churrasqueira um pouco mais abaixo no outro lado da rua, ao sentir aquele cheiro característico de um bom frango assado. Decerto, conhecem esse cheiro.

Ainda não tinha jantado, pois só mais tarde é que iria aos carros de apoio no Largo da Estação de Santa Apolónia, e tinha almoçado mal nesse dia. Muito mal mesmo. Vezes sem conta, passava à entrada dos restaurantes, sentindo o cheiro da comida e à porta das padarias, sentido o cheiro do pão quente e dos bolos. Passava eu e os outros que me acompanhavam, mas depressa nos afastávamos. Sabíamos que não podíamos comer. E a nossa atitude era de simples resignação, embora sofrida. Muito sofrida. Não sei se conseguem imaginar o que é sentir o cheiro de comida deliciosa quando se passa fome.

Mas, naquele princípio de noite, eu senti o cheiro a invadir-me de uma forma diferente. Estava fragilizado pelo Natal e tinha 20 euros no bolso. E o cheiro era “terrível” … Era uma das melhores churrasqueiras da Morais Soares. Aquele cheiro começou a invadir-me os sentidos. A fome aumentou e a saliva na boca também. Levantei-me de imediato. Eu precisava do blusão e precisava de o comprar! Fumei o resto do cigarro mais depressa, aspirando o fumo com mais força, para tentar ficar agoniado e não me sentir afetado por aquele cheiro.

Ao deitar a ponta do cigarro para o chão, lanço ainda um inevitável olhar masoquista para a montra da churrascaria, lendo o letreiro: “vendemos para fora”. Caramba, eu já não me lembrava qual tinha sido a última vez que tinha comido frango assado no churrasco… Quentinho, apetitoso, tenro, com molho. E batatas fritas? Senti-me a fraquejar, não sei explicar como nem porquê. Sentia de repente a fome ser maior do que minutos antes. Voltei-me para a loja, mas não consegui entrar. Há meses que só comia comida quase fria e de fraca qualidade dos carros de apoio acompanhada com as massas duras e insossas ou com arroz cru ou espapaçado. Se quisesse alguma coisa melhor tinha de roubar, pois o meu dinheiro não dava para comprar nada melhor e por vezes nem sequer comia.

Olhei para o vidro da loja e vi o reflexo das luzes de Natal. E um pensamento mais rápido do que uma bala invadiu a minha mente: “é Natal. Vai comprar este momento, Jorge. Sacia a fome nem que seja só por esta noite! Vai comprar prazer! Vai comer a merda de meio frango assado!” E veloz como esse pensamento, atravessei a rua, entrei na churrasqueira dirigindo-me rapidamente ao balcão e, penso eu que sem dizer sequer boa noite ao rapaz que me atendeu, peço: “quero meio frango assado com batatas fritas para levar, por favor!” Lembro-me de ele me olhar com uma certa surpresa, devido à minha entrada e pedido repentino.

Mas foi com cortesia que me perguntou: “com piri-piri ou sem?” “Sem!” respondi eu! Ele sorriu e perguntou: “só com o molho da casa então?” “Isso!”, respondi eu, feliz da vida.

O cheiro a frango no churrasco era inebriante. Minutos depois entregou-me o saco com as duas cuvetes fazendo a pergunta da praxe: “para beber, vai desejar alguma coisa?” Eu devo ter ficado com uma cara a quem perguntam se quer a companhia de uma mulher bonita ou algo parecido, porque pisquei ligeiramente o olho e com uma “voz de cama” pedi uma Sagres de litro bem fresquinha! Paguei e fui automaticamente, em passo apressado, em direção ao jardim da Praça Paiva Couceiro, que eu tão bem conhecia. Que melhor sítio para se jantar?

Sento-me num dos bancos do jardim e tiro as cuvetes para fora do saco. Não consigo descrever o que foi aquele momento. Foi com certeza a melhor refeição da minha vida! Nunca tinha comido com tanto prazer e com tanta satisfação e tenho a sensação de que nunca mais vou comer assim. Não tenho vergonha de o dizer, mas gemi a comer. Escusado será dizer o que é um frango assado de uma das melhores churrasqueiras do bairro, com batatas fritas quentes e estaladiças para uma pessoa como eu, naquela condição.

Devorei o meio frango em poucos minutos, ignorando os talheres de plástico. E de seguida, mais calmamente, comi as batatas o mais devagar que conseguia intervalando com a cerveja de litro bebendo pelo gargalo da garrafa. Não consigo encontrar palavras para vos descrever aquela refeição. E vou continuar sem vergonha ao dizer que após comer a última batata e beber o último gole da cerveja, dei um longo arroto e uma sonora gargalhada! Feliz Natal Jorge! Só minutos mais tarde realizaria que continuaria vestido com um blusão que já metia nojo.

Caros leitores, há cerca de duas semanas, enviei um email aqui para A Mensagem de Lisboa, anexando uma das crónicas mensais, como é costume. Nesse mail, fiz um aviso à direção do jornal: disse que as minhas crónicas iriam entrar numa fase nada simpática, porque os sem abrigo não são simpáticos.

O sem abrigo é uma pessoa que se senta num banco de um jardim público, come meio frango assado com as mãos, arrota no fim e ainda se ri por isso, como eu o fiz na minha noite de Natal, pois até ao fim desse ano não tive outra noite melhor do que essa. Um sem abrigo é uma pessoa que pode ser avistada a cortar as unhas dos pés na via pública. Um sem abrigo pode ofender as outras pessoas ao tentar lavar-se numa casa de banho pública, por isso cheira mal. Um sem abrigo aprende a roubar nos hipermercados para comer. Um sem abrigo incomoda as pessoas quando numa atitude anti social pede esmola nas ruas.

Os sem abrigo dormem à porta de museus, edifícios públicos na cidade, debaixo de viadutos e prédios abandonados para se abrigarem da chuva e do frio. Alguns sem abrigo falam sozinhos nas ruas, porque estão a perder a sua estrutura humana e alguns a enlouquecer. Os sem abrigo podem andar armados. Não para atacarem alguém, mas para se defenderem uns dos outros e dos criminosos e delinquentes aos quais não podem fugir, pois dormem na rua! Um sem abrigo pode andar armado porque durante a madrugada pode morrer por causa de um telemóvel ou de uma nota de cinco euros, porque a criminalidade e a delinquência, na maioria dos casos, nada tem a ver com os sem abrigo. São coisas distintas. Podem é estar misturadas como todas as espécies de animais que sobrevivem na selva. E um sem abrigo, no meio da selva, com o tempo, pode tornar-se num animal para sobreviver. E pode ser irreversível.

A direção da Mensagem não respondeu ao que eu disse no email e publicou a minha crónica. E fico feliz por isso. A minhas crónicas estão a entrar na reta final, no entanto, ainda faltam algumas coisas que eu pretendo partilhar com todos aqueles que me queiram ler. Mas sempre da mesma forma. Com sinceridade, verdade, sem reservas e tentando ser o mais fiel possível a todos os acontecimentos aqui por mim descritos.

Como disse uma vez à Catarina Reis, brilhante jornalista aqui da Mensagem, vou escrever o que passei, vou relatar como se vive nas ruas, nem que caia no ridículo. Eu, felizmente, já saí das ruas. E sei o que sofri. Mas muitos ainda lá vivem! E estas crónicas são a voz de todos eles.


Jorge Costa

Jorge Costa

Morreu aos 55 anos em abril de 2022. Nasceu em Lisboa, cidade onde sempre viveu. Na Mensagem, partilhou a sua experiência da vivência nas ruas, sem teto para viver e para dormir. Foi sem abrigo durante 8 meses, até maio do ano passado. Escreveu sobre esta “difícil experiência, indigna e quase desumana”. Publicou um livro póstumo, Diário de Um Sem Abrigo, na Oficina do Livro.

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11 Comentários

  1. Leio com imenso interesse todas as suas crónicas, e só assim é porque nos faz falta a todos abrir um pouco os olhos para aqueles que estão na rua e que, muitas vezes, não vemos ou escolhemos não ver.
    Tenho também muito interesse em perceber como conseguiu sair da rua. Espero que continue a partilhar a sua história connosco, por muito “nada simpáticas” que sejam.
    Obrigado a si e à mensagem

  2. Obrigado pelo seu comentário, Ricardo. E grato por me ler. Posso já responder à sua questão. Em Maio do ano passado, devido à pandemia, consegui inserir-me no programa Casas Primeiro, uma iniciativa da CML. Eu e muitos sem abrigos que passaram pelo Centro de Acolhimento do Casal Vistoso no Areeiro, na altura coordenado pela Dra. Teresa Bispo. Centenas de nós já temos uma casa. Abraço.

  3. Vivo no Rio de Janeiro e acompanho os seus relatos com grande interesse. Peço que reconsidere o fim da coluna. Você contribui para abrir os olhos dos “com abrigo”. Ou, pelo menos, continue escrevendo até ter material suficiente para compor um livro de crônicas.

  4. Nunca cairá no ridículo Jorge. Nunca!
    Tenho uma extrema admiração por si, e pela sua resiliência.

  5. Obrigada Jorge pelas palavras, pela sua coragem. Confesso que chorei ao ler, pela cegueira que nos atinge no nosso dia a dia demasiado focados nas nossas vidas e que tantas vezes a lamentamos. Nós é que caímos no ridículo. Só espero que continue Jorge, a contar-nos as suas vivências, o seu testemunho com as suas crónicas, enchem o coração. E que seja feliz.

  6. Obrigado pela coragem de partilhar a sua história.
    Espero que tenha encontrado o seu final feliz.

  7. Olá Jorge,
    Tenho tido o privilégio, por si oferecido, de ler o que os seus olhos viram e o que as suas emoções desabafaram nesta sua outra vida. Emocionei-me por vezes e muitas outras vezes reconheci na pele os seus relatos. Na minha tenra juventude vivi também nas ruas do Norte da Europa, por escolha diga-se, por aventura. Um telefonema para os meus irmãos e num instante tudo aquilo acabava, e acabou. Não quero sequer comparar a resiliência psicóloga que em mim havia por ter essa segurança, por comparação com o desespero, que imagino, possa ter ocupado a sua alma em alturas. Mas sim, revejo nos vários episódios de tua que fala. Lembro-me do desespero em que fiquei quando me roubaram tabaco enquanto dormia, de pedir comida de porta em porta, de ser expulso de estações de comboio e simplesmente não dormir nessas noites, de andar às boleia e receber propostas indecentes. E sobretudo, neste seu último relato, revi-me no sei frango. Passados 23 anos, ainda hoje tenho para mim como a melhor refeição da minha vida um “English breakfast” com feijão preto e salsichas e pão fresco e manteiga. Depois de juntar tostões pedidos de porta em porta, para apanhar um ferry do reino unido para a Dinamarca, aquele pequeno almoço foi demasiado tentador depois de meses de carência. A viagem ficou para mais tarde. Lia o que o Jorge escreveu sobre esse frango e veio-me o sabor daquele feijão ao goto.

    Mas é importante lembrar que o conceito de dignidade não é estanque, é algo do nosso imaginário. Um sem abrigo também se pode sentir digno de assim interpretar o conceito de dignidade. Muitos conheci perto da Av. Liberdade que se sentiam dignos à sua maneira. Tudo depende de como nos vemos perante o mundo.

    O seu testemunho é impagável e continue! Muito boa sorte e um abraço

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